Tributação e novas tecnologias

AutorÁlisson José Maia Melo
Ocupação do AutorDoutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC)
Páginas1-32
TRIBUTAÇÃO E NOVAS TECNOLOGIAS
Álisson José Maia Melo
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Professor Titular do
Centro Universitário 7 de Setembro (UNI7). Especialista em Direito Tributário pela
UNI7. Advogado.
Sumário: Parte I – Software: mercadoria, serviço, ou realidade nova? Parte II – Criptomoedas
e Tributação. Parte III – Tributação e disponibilização de conteúdos. Parte IV – Inteligência
Articial e Tributação. Referências.
Em boa hora o Instituto Cearense de Estudos Tributários (ICET), sob a presidência
do Professor Hugo de Brito Machado, decide enfrentar um tema deveras espinhoso na
seara do Direito Tributário, a saber, relativamente aos atuais problemas oriundos dos
avanços tecnológicos decorrentes do desenvolvimento eletrônico e digital característi-
cos do século XXI. Agradeço o gentil convite em poder contribuir, mais uma vez, para
o debate de ideias.
Como de praxe, a proposta metodológica ora adotada consiste numa abordagem
inovadora em matéria de Direito Tributário, que busca superar o modelo reducionista
do passado, até então baseado na análise sintática e semântica da linguagem do Direito
Tributário positivado na legislação (FOLLONI; BONAT, 2015, p. 218-219). O objeto de
pesquisa, por sinal, contribui bastante para isso, já que as novas tecnologias, ao pôr em
xeque conceitos e institutos até então consagrados, desaf‌iam o pensamento tradicional
na área.
Antes de responder às perguntas, que giram em torno de quatro temas – software,
criptomoedas, plataformas de conteúdo e inteligência artif‌icial (robôs físicos e digitais)
–, entendo necessário discutir em que bases serão construídas as interpretações dos
fenômenos que são objeto de estudo. Para tanto, não é possível escapar da abordagem
desta pesquisa, a saber, o Direito Tributário. Nesse sentido, deve-se ter como f‌iel da
balança a aplicação do art. 116 do Código Tributário Nacional, pelo qual se diferenciam
os fatos geradores dos tributos em situações de fato e situações jurídica. Em se tratando
de situação de fato, deve-se cotejar, em paralelo as circunstâncias materiais e a natura-
lidade dos efeitos (inc. I) – embora pareça redundante, no tema das novas tecnologias
essa relação pode entrar em xeque. Na lição clássica, a situação de fato é identif‌icada de
modo negativo:
Caracteriza-se o fato gerador do tributo como situação de fato quando em sua denição não sejam
utilizados conceitos jurídicos como elementos essenciais à conguração da situação descrita como
hipótese de incidência tributária. Em outras palavras, tem-se uma situação de fato quando o conheci-
mento dela independe do conhecimento especicamente jurídico. E por isto mesmo esse fato gerador
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considera-se ocorrido, nos termos do art. 116, inciso I, do Código Tributário Nacional, desde o momento
em que se veriquem as circunstâncias materiais necessárias a que produza os efeitos que normalmente
lhe são próprios. Momento que se identica sem que para tanto se faça necessário o conhecimento das
normas e dos conceitos jurídicos, mas simplesmente o conhecimento dos fatos, em seus signicados
metajurídicos. (MACHADO, 2008, p. 341-342)
No caso de situação jurídica, sobressaem as características da relação jurídica travada
(inc. II). Novamente, conforme o entendimento mais abalizado:
Assim, se a lei dene como hipótese de incidência tributária uma situação cuja conguração depende
da celebração de um contrato, ou de sua execução, ou de uma formalidade qualquer da qual a lei faz
depender a produção de efeitos jurídicos relevantes na conguração daquela situação tomada como
hipótese de incidência tributária, certamente o fato gerador desse tributo será uma situação jurídica
[...]. Exige-se, portanto, a presença de todos os elementos materiais ou objetivos da situação jurídica,
seja um ato ou negócio jurídico [...]. (MACHADO, 2008, p. 342)
Diz-se isso, pois, em torno dos temas destacados subsiste a compreensão do que seria
a realidade no mundo digital. Na prática, quando se fala em software, em moedas digitais,
em plataformas online e em inteligência artif‌icial, há por detrás disso uma programa-
ção, consistente numa série de códigos, escritos em um ou vários arquivos digitais que,
com o suporte de equipamentos de processamento, com reprodução de sons e imagens,
permitem a realização de funções. Tais arquivos digitais, analisando-se mais a fundo,
são textos que contemplam comandos a serem seguidos por esses processadores, mas
tais textos, digitalizados, conf‌iguram-se como uma sequência bem ordenada de bytes
que, ao f‌im e ao cabo, representariam reações elétricas nos equipamentos e devidamente
gravadas em dispositivos magnéticos.
No outro extremo, trago ilustrativamente a situação dos títulos de crédito eletrôni-
co. Como bem coloca Tomazette (2017b, p. 54-56), ao analisar os limites do princípio
da cartularidade, deve-se diferenciar a noção de documento da noção de matéria. Nesse
sentido, a situação jurídica de crédito pode ser tanto incorporada num pedaço de papel,
como também pode ser desmaterializada e incorporada num documento eletrônico. Veja
que, tratando-se de situação jurídica, a alteração do substrato não desnatura a essência
da relação.
Uma situação intermédia, localizada numa zona mais cinzenta, pode ser vislum-
brada a partir do exemplo do livro eletrônico (e-book). Objeto de imunidade tributária,
o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a identidade entre o livro no formato
impresso e no formato eletrônico. As palavras do texto constitucional, especialmente
em matéria de imunidades tributárias, devem permitir uma interpretação compreensiva
dos termos usados. Embora os livros eletrônicos sejam, como visto acima, um código
sequenciado, uma série binária de estímulos elétricos, os equipamentos de reprodução
permitem que disso se possa extrair manifestações no mundo físico e captáveis pelos
sentidos, como uma imagem ou um áudio, que contenham o resultado de uma atividade
intelectual (YAMASHITA, 2014, p. 53-54). Nesse caso, o tratamento jurídico corres-
pondente dependerá de se reconhecer ou não esse código como o seu resultado útil. Há
quem considere que o livro eletrônico não passaria de uma metáfora do livro impresso
(TORRES, 2012, p. 213).
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Discordando desse respeitável ponto de vista, parece que, quando se fala de bytes de
dados e estímulos eletroeletrônicos estaríamos discutindo, na mesma medida, da celulose
que faz o papel e da tinta que faz a impressão do livro. São manifestações do mundo con-
creto que, organizados pelo homem, produzem bens culturais, como o livro (impresso
ou eletrônico). Então, para todos os efeitos, o substrato físico pode ser diferenciado de
seu produto cultural, ou seja, do sentido e o valor que o ser humano dá à manifestação
que esses dados provocam. Algumas delas correspondem a fatos institucionais, aos quais
o Direito dá um tratamento específ‌ico.
É no mínimo espantoso como o Fisco brasileiro busca encontrar fatos geradores
de tributos. No setor da tecnologia da informação, isso é bastante incômodo quando
percebem a perda de receita em virtude da evolução das práticas negociais do mercado.
Questiona-se se de fato o Estado brasileiro deveria tributar as tecnologias da informação,
haja vista que a Constituição determina ao mesmo Estado o desenvolvimento do parque
tecnológico e o estímulo às empresas que investem em pesquisa e criação de tecnologia
(art. 218). A tributação burocratiza, gera custos de transação e promove desestímulo
empreendimentos que visassem o desenvolvimento tecnológico nacional. Considerando
que o Brasil é um país com graves déf‌icits de tecnologia em diversas áreas, com baixo
índice de patentes e dependente da tecnologia estrangeira, a tributação nesse setor talvez
seja, nesta fase de subdesenvolvimento, indesejável.
PARTE I – SOFTWARE: MERCADORIA, SERVIÇO, OU REALIDADE NOVA?
1.1. O software pode ser considerado uma mercadoria, de modo a que sua comercialização
possa sofrer a incidência do ICMS, ou um serviço a ser alcançado pelo ISS, ou, ainda, uma
terceira realidade econômica passível de ser tributada pela União Federal no exercício
de sua competência residual?
Para responder a esta e a todas as perguntas introdutórias de cada parte, faz-se
necessário def‌inir os termos da discussão. O conceito de software, em sua pureza, está
ligado ao conceito de hardware. Enquanto o hardware remete aos equipamentos físicos,
elaborados a partir de minerais e polímeros, o software seria tudo o que corresponde a
dados eletrônicos e as formas com as quais esses dados se expressam. Então, para não
entrar nas minúcias de diferenciação, tanto o programa de computador – quando os
dados são construídos sob a forma de comandos que funcionam of‌iciosamente a partir
de partidas –, como conceituado no art. 1º da Lei 9.609, quanto um f‌ilme gravado num
DVD – quando os dados são construídos sob a forma de informação a ser acessada por
um programa – seriam software nesse raciocínio.
Num passado remoto do desenvolvimento da tecnologia da informação, não exis-
tiam livremente no mercado, e a um preço acessível, equipamentos de armazenamento
de dados, e, em virtude disso, as programações deveriam ser elaboradas (digitadas) toda
vez que a máquina era reiniciada, que f‌icavam armazenadas temporariamente, enquanto
a fonte de energia estivesse presente. Com o avanço das tecnologias de hardware, e a pos-
sibilidade de armazenamento dos dados em f‌itas cassetes, discos e disquetes magnéticos,
unidades de disco rígido (HDs), todos magnéticos, o surgimento dos armazenamentos
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