A tutela cautelar de intervenção em sociedade anônima

AutorRicardo Padovini Pleti
Páginas166-185

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1. Introdução

O presente trabalho tem por objetivo realizar um estudo panorâmico da intervenção judicial em sociedade anônima, tema estranho ao ordenamento jurídico brasileiro, mas que tem sido delineado pela doutrina e jurisprudência pátrias.

Para bem cumprir esta meta, procurou-se reunir o número máximo possível de orientações doutrinárias sobre o assunto e, no que tange à jurisprudência, selecionar as principais decisões que admitiram a aplicação da medida. Todavia, ante a escassez destas fontes, serão consideradas, indistintamente, manifestações sobre procedimentos de intervenção judicial promovidos tanto em sociedades anônimas quanto em sociedades limitadas. Isso porque a utilização deste mecanismo jurídico num ou noutro tipo de sociedade empresária não apresenta distinções no que diz respeito aos tópicos ora abordados (requerimento, requisitos, fundamentos da tutela interventiva, etc.).

Como o Direito argentino apresenta disciplina legal específica do assunto, em vários momentos serão mencionados ensinamentos de doutrinadores deste país, além da análise sucinta dos arts. 113a117da Ley 19.550 (Ley de las Sociedades Comercia-les), que tratam especificamente da matéria. Assim, com o auxílio das conclusões provenientes da experiência argentina, pro-ceder-se-á à avaliação da compatibilidade do instituto jurídico da intervenção para com o sistema jurídico brasileiro, com o intuito de tentar teorizar algumas de suas principais questões.

Desta maneira, será realizada uma abordagem do assunto sempre a partir de uma perspectiva favorável em relação à sua admissão no Direito brasileiro, mas sem perder de vista as dificuldades que sua extrema novidade pode gerar tanto no que diz respeito à delimitação de seu conteúdo e principais contornos, quanto à sua aceitação pelos juristas nacionais. Saliente-se, contudo, que ante a impossibilidade de maior aprofundamento do assunto em tão poucas páginas, nesse texto serão trabalhados apenas alguns dos seus principais aspectos.

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2. Noções gerais
2. 1 Delimitação do instituto

A intervenção judicial em sociedade empresária com fundamento na conduta lesiva dos administradores1 é tema de grande relevância para o Direito Societário que, até o momento, foi pouco explorado pela doutrina e jurisprudência pátrias. Tal importância decorre da necessidade de, em determinados momentos, obstar e prevenir danos provocados à sociedade por seus administradores e, dessa maneira, garantir a continuação da atividade empresária.

Deve-se levar em conta que a extinção de uma sociedade empresária traz benefícios ao mercado somente quando ocorrida em razão da livre concorrência. Nestes casos, pode-se até mesmo dizer que é salutar para a economia e para a sociedade que aquelas empresas que não conseguem manter um padrão de qualidade compatível às exigências dos consumidores venham a desaparecer.

Entretanto, quando uma sociedade mercantil desaparece por razões alheias ao conhecimento dos sócios - como, por exemplo, devido à má administração -, tal fato pode surtir drásticas repercussões tanto para o patrimônio dos sócios quanto para a cole-tividade.2

Por outro lado, ao se atentar para o fato de que as sociedades anônimas são so-ciedades que, em regra, concernem a negócios de médio e grande porte e que, por consequência, a quebra destas pode gerar sérios problemas para a economia, percebe-se que são elas que mais necessitam de mecanismos ágeis para evitar sua dissolução despropositada.3

Além disso, as sociedades anônimas, por prescindirem da existência de proximidade pessoal entre seus sócios, são mais suscetíveis à intervenção do que as sociedades limitadas, como ensina Luiz Fernando C. Pereira, "Por razões óbvias, a intervenção judicial é prioritariamente indicada para as sociedades por ações. As sociedades de pessoas, porque constituídas intuito personae, pressupõem estrito relacionamento entre seus sócios; as sociedades por ações, ao contrário, se constituem em atenção preponderante ao capital social. Isso quer dizer que a continuidade das sociedades pessoais, comumente, resta comprometida com um processo traumático de intervenção, o que em regra não prevalece nas sociedades por ações".4

Logo, é especificamente nas situações em que a sociedade anônima está sob risco que a intervenção judicial assume relevante papel, qual seja, o de impedir que a conduta lesiva do administrador provoque o fim da sociedade. Por conseguinte, um dos meios de alcançar tal desiderato é intervir na sociedade para fazer cessar os prejuízos atuais e iminentes ocasionados pela administração ruinosa.

Assim, são estes prejuízos o real motivo da intromissão do Poder Judiciário nos negócios particulares para que se suspenda a atuação do administrador ímprobo e, em determinados casos, se proceda à nomeação de administrador provisório. Eis, então, o conteúdo específico da tutela in-terventiva: a remoção ou limitação dos poderes do dirigente e a nomeação de admi-

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nistrador judicial para gerir ou fiscalizar os negócios sociais.

Entretanto, desde já, é necessário exprimir essencial advertência. A intervenção judicial em sociedade anônima, nos moldes acima descritos, é medida de cará-ter notadamente excepcional e que deve ser admitida somente em casos de demasiada urgência, como última ratio, sob pena de desvirtuamento do instituto. Sendo assim, se o magistrado, ao considerar pedido de intervenção, não o fizer com máxima parcimônia, essa poderá provocar muito mais problemas que soluções para as companhias que se pretende tutelar.

Tome-se como exemplo os inconvenientes que podem ser gerados pela concessão da medida interventiva simplesmente para efetuar o pagamento de dívida vencida a determinado fornecedor. Tal intervenção seria nitidamente indevida ante seu caráter arbitrário, haja vista que, para cobrança de dívida vencida, existem outros meios jurídicos disponíveis além da intervenção na administração societária.

Carlos C. Malagarriga, ao comentar o instituto no Direito Argentino adverte que "se trata de una medida de gravedad y tras-cendencia inusitadas y que únicamente ha de autorizarse en casos extremos" e, em seguida, explica que "requiérese - se ha di-cho - que el gobierno de la sociedad esté tan desquiciado y las relaciones entre los socios sean tan hostiles que hacen peligrar la existencia de la misma".5 Além disso, esse mesmo autor, ao tratar da intervenção em sociedades anônimas assinala que "el nombriamiento de un interventor y administrador de una sociedad anónima debe responder a una necesidad efectiva y actual y debe procederse al respecto con previ-sióny prudencia".6

Também é oportuno, neste primeiro momento, elucidar qual o caminho jurídi-co processual adequado para que se promova a intervenção judicial. Para tanto, indica-se a ação cautelar inominada ou a execução específica de decisão que antecipa a tutela como instrumentos apropriados para a realização do requerimento de destituição provisória do administrador e/ou de nomeação de interventor.

Logo, como será elucidado a seguir, o procedimento interventivo tem sempre caráter acessório, ocorrendo para garantir o sucesso de outra demanda como, por exemplo, a ação de dissolução da sociedade ou de destituição de administrador.

No entanto, a intromissão nos negócios particulares não é algo usual nas Cortes brasileiras, principalmente em tempos como o de agora, no qual os últimos governantes têm assumido orientações políticas de caráter neoliberal. Consequentemente, alguns obstáculos são suscitados pela doutrina contra a realização de interferências nos negócios particulares. Analisem-se agora alguns desses empecilhos apontados pelos juristas pátrios.

2. 2 Óbices contra a intervenção

A primeira dificuldade encontrada pelos advogados que pretendem resguardar os interesses de seus clientes mediante a ingerência na administração societária encontra--se na perspectiva liberal predominante no pensamento dos magistrados brasileiros.7

O posicionamento de Ernane Fidélis dos Santos sintetiza bem referido pensamento liberal:

"O Tribunal de Alçada de Minas Gerais, no Agravo de Instrumento 201.152-7, de 28.9.1995, reformou, corretamente, a decisão que nomeara dois representantes da Justiça para gerir uma sociedade, quando se pleiteava gestão para o interessado em medida antecipada, verbis:

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“‘A antecipação da tutela jurisdicio-nal - instrumento processual novo - deve ser aplicado com parcimônia; evitando-se perigosos prejulgamentos e intromissão do Poder Judiciário no andamento da administração privada, o que se mostra intolerável. Nomeação de representantes do Judiciário para administração conjunta de destinos de uma associação, que se cassa'."8

Como já mencionado, a intervenção é instituto jurídico que exige extrema cautela por parte do juiz que deve decidir sobre sua aplicação. Entretanto, data maxima venia, dizer que não é recomendável a "intromissão do Poder Judiciário no andamento da administração privada" é não deixar margem para a aplicação da medida que, muitas vezes, é o único meio de defesa contra os malefícios que uma má administração pode causar.

Aqui, vale lembrar o que enuncia o princípio da proteção judiciária ou da ina-fastabilidade do controle jurisdicional estatuído no art. 5°, inc. XXXV, da Constituição da República Federativa do Brasil, o qual dispõe que "a lei não...

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