A tutela jurisdicional como instrumento de concretização do direito humano fundamental à não discriminação do empregado portador do vírus da aids

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas287-295

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Apresentação

Ao longo da história foi alçado ao patamar de direitos humanos fundamentais um rol de direitos imprescindíveis ao ser humano, nas perspectivas individual e coletiva, para uma vida minimamente digna, dentre os quais citamos a igualdade ou não discriminação. As normas internacionais e internas garantem o referido direito, inclusive na relação entre empregado e empregador, sendo vedada qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha por efeito destruir ou alterar a igualdade de oportunidades ou tratamento em matéria de emprego. A despeito do farto amparo legal dado ao tema, ainda hoje, em pleno século XXI, em meio a tanta modernidade, avanços tecnológicos e globalização, nos deparamos, diuturnamente, com situações de discriminação ao trabalhador, especificamente aquele portador de doença grave que suscite estigma ou preconceito, como a AIDS. A prática ofende diretamente os princípios da dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e função social da empresa. Neste contexto emerge o importante papel da tutela jurisdicional como instrumento de combate aos efeitos danosos da dispensa do trabalhador no momento em que sua colocação profissional e rendimentos são de extrema importância emocional e material. A presunção da dispensa discriminatória, a inversão do ônus da prova, a reintegração e a indenização são a resposta judicial à conduta patronal. Por meio de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, serão analisados os citados princípios constitucionais pertinentes ao tema, as suas repercussões e aspectos processuais. O objetivo do presente trabalho é mostrar o papel da tutela jurisdicional na promoção do direito fundamental à não-discriminação do trabalhador portador do vírus HIV mediante sua manutenção no emprego e indenização por danos sofridos, proporcionando ao obreiro tratamento compatível com o padrão jurídico assentado para a situação concreta por ela vivenciada.

1. Introdução

Analisando a história da humanidade e dos direitos a ela inerentes observa-se uma ampliação gradativa e complementar do rol das garantias mínimas e fundamentais do homem e a alteração do modo de interpretá-los e aplicá-los, deixando de ser apenas um direito formalmente previsto na lei para ser um direito concretizado na vida do destinatário que dele efetivamente usufrui.

Neste contexto, passa a ser compreendida a necessidade de promover o direito humano fundamental da igualdade ou não discriminação, previsto em normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais.

Originado no século XVII, no período denominado liberalismo, ligado à Revolução Francesa e Industrial, o direito à igualdade nasceu como uma garantia de todos perante a lei como forma de trazer segurança e paridade nas relações com o Estado e intersubjetivas, especialmente em prol da classe burguesa ascendente, sendo ignoradas as especificidades e diferenças pessoais.

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As desigualdades e injustiças geradas por este estado de coisas foram o móvel para insurgências e reivindicações, em sua maioria capitaneadas pelos trabalhadores organizados através de sindicados, que resultaram, dentre outras coisas, em uma conotação ativa e positiva do direito à igualdade, passando a ser dever do Estado — e mais tarde também dos particulares, a partir da noção de eficácia horizontal dos direitos humanos fundamentais — corrigir as desigualdades fáticas e garantir a todos os meios para uma vida minimamente digna.

A relação empregatícia não ficou imune a este novo entendimento, sendo necessária a concretização do direito à igualdade ou não-discriminação do empregado subordinado, especialmente aquele acometido do vírus HIV ou outra doença grave causadora de preconceito ou estigma e que se vê diante da ruptura do vínculo empregatício exclusivamente em virtude do seu estado de saúde que, muitas vezes, sequer compromete a prestação de serviços.

O tratamento discriminatório nesta situação é combatido por meio da tutela processual que, por meio da Súmula n. 443 do TST cria uma presunção favorável ao obreiro e com isso inverte o ônus de prova da licitude da dispensa e garante a sua reintegração, além de indenização, quando caracterizada a conduta patronal abusiva.

Nesta ordem de ideias, no presente artigo, mediante pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, será analisado o direito humano fundamental à igualdade ou não discriminação e sua relação com os princípios da dignidade da pessoa humana, valor social do trabalho e função social da empresa. Em seguida, aquele direito será analisado dentro da relação empregatícia, especialmente na hipótese de empregado portador do vírus HIV para, por fim, ser demonstrado o papel da tutela jurisdicional como instrumento de promoção do direito fundamental à não discriminação deste trabalhador por meio da inversão do ônus da prova, reintegração e indenização.

2. O direito humano fundamental à igualdade ou não-discriminação

Brasil. Ano de 2016. Vivemos, há mais de 27 anos, sob a égide de um Estado Constitucional de Direito. O leitor menos atendo poderia questionar a validade dessa afirmativa, afinal se desde a independência jurídico-política em relação a Portugal, que remonta ao primeiro quarto do século XIX, o Estado Brasileiro funda sua estrutura normativa a partir de textos constitucionais formais1, como podemos afirmar que apenas no final do século XX passamos a viver sob a égide de um Estado Constitucional de Direito?

De fato, se a expressão Estado Constitucional de Direito fosse compreendida apenas a partir de seu aspecto formal — até tempos atrás o único cogitado —, isto é, pela verificação da existência ou não de uma norma constitucional formal-mente aprovada e em vigor (FERNANDES, 2014, p. 42), nossa fala inicial jamais encontraria respaldo. Não é esse, porém, o referencial teórico sobre o qual nos sustentamos. Nós compreendemos o Estado Constitucional de Direito pelos contornos que lhe são conferidos pelo movimento constitucionalista contemporâneo, cujos primeiros e mais importantes traços foram construídos a partir do segundo pós-guerra e que, no Brasil, de fato, somente encontrou terreno fértil a partir da segunda metade da década de 1980, com o enfraquecimento do governo ditatorial militar e florescimento do movimento de redemocratização.

O marco histórico do novo direito constitucional, na Europa Continental, foi o constitucionalismo do pós-guerra, especialmente na Alemanha e na Itália. No Brasil, foi a Constituição de 1988 e o processo de redemocratização que ela ajudou a protagonizar. [...] A reconstitucionalização da Europa, imediatamente após a 2ª grande guerra e ao longo da segunda metade do século XX, redefiniu o lugar da Constituição e a influência do direito constitucional sobre as instituições contemporâneas. A aproximação das ideias de constitucionalismo e de democracia produziu uma nova forma de organização política, que atende por nomes diversos: Estado democrático de direito, Estado constitucional de direito, Estado constitucional democrático. (BARROSO, 2005, p. 3.)

Movimento este que se caracteriza, além de seu contexto histórico, por dois marcos: o seu marco filosófico pós-positivista, com centralidade nos direitos fundamentais e na ética; e o seu marco teórico, com a atribuição de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e o desenvolvimento de uma nova dogmática para interpretação constitucional2.

Podemos, portanto, definir o Brasil como um Estado Constitucional de Direito somente a partir de 1988, posto ter sido a promulgação da Constituição Federalatualmente vigente, datada daquele ano, o elemento ruptural com a ordem anterior e de estabelecimento de um novo pacto jurídico-político-social, o qual passou a estabelecê-lo como um Estado Democrático de Direito em sentido amplo. Isto é,

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organizado politicamente sob a expressa disposição de que o poder emana do povo, que o exerce, conforme o caso, tanto diretamente como por seus representantes eleitos, respeitador e limitado pelos direitoscivis e políticos do cidadão e fomentador do exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais (MENDES; COELHO e BRANCO, 2008, p. 149).

Perceba o leitor que conceber o Brasil como um Estado Constitucional de Direito, portanto, não significa apenas enxergá-lo como um Estado estruturado jurídica e politicamente sobre um texto constitucional formal. Tampouco significa compreendê-lo somente a partir de um ideário de proteção aos direitos civis e políticos do cidadão. Muito mais que isso, implica em reconhecê-lo estruturado sobre um texto constitucional vivo — e não apenas um instrumento normativo-formal frio — que tem na edificação dos direitos fundamentais seu ponto nevrálgico e sua força motriz.

No mesmo sentido, Lenio Luiz Streck afirma que

Sendo a Constituição brasileira, pois, uma Constituição social, dirigente e compromissória — conforme o conceito que a tradição (autêntica) nos legou —, é absolutamente possível afirmar que o seu conteúdo está voltado/dirigido para o resgate das promessas (incumpridas) da modernidade (“promessas” entendidas como “direitos insculpidos em textos jurídicos produzidos democraticamente”).

Daí que o direito, enquanto legado da modernidade — até porque temos (formalmente) uma Constituição democrática —, deve ser visto, hoje, como um campo necessário de luta para implantação das promessas modernas (igualdade, justiça social, respeito aos direitos...

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