Tutelas de Urgência: uma Reanálise do Fumus Boni Iuris e do Periculum. In Mora à Luz de seus Objetivos Específicos

AutorAmaury Rodrigues Pinto Júnior
Páginas11-21

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1. Harmonização de princípios constitucionais: efetividade e segurança jurídica

Quando o Estado proíbe a autotutela generalizada1 e chama para si a responsabilidade de solucionar os confiitos de interesses não resolvidos espontaneamente entre os particulares, faz promessas que, muitas vezes, são difíceis de cumprir. Trata-se das garantias constitucionais estampadas no art. 5º, incisos XXXV2 e LV3, da Constituição Federal, as quais, em que pesem a lógica e a obviedade resplandecentes, em muitas situações, mostram-se incompatíveis e inconciliáveis.

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O inciso XXXV assegura acesso ao Poder Judiciário para todos aqueles que se dizem lesionados ou ameaçados em seus direitos subjetivos. Esse compromisso não se esgota na simples possibilidade de obtenção da tutela jurisdicional, sendo indispensável que ela seja eficaz e que realmente concretize o direito vindicado quando reconhecido. É nesse sentido que Bedaque registra, com toda a propriedade, que "o direito de ação deve ser visto como garantia de efetividade, isto é, deve conferir ao seu titular a possibilidade de exigir do Estado instrumento apto a solucionar as controvérsias de maneira adequada e útil"4. É preciso, pois, que o Estado não apenas declare a existência do direito, mas também assegure a sua completa usufruição5.

O princípio constitucional da efetividade, portanto, representa a promessa solenemente assumida pelo Poder constituído quando tomou para si a responsabilidade de dirimir os confiitos que lhe fossem submetidos.

Como afirmado de início, contudo, essa não foi a única promessa. Também como consequência lógica e inafastável do monopólio jurisdicional, o Estado assumiu o compromisso de proporcionar aos litigantes o direito de apresentarem suas alegações e a possibilidade de demonstrarem os fatos que as sustentam. Mais do que isso, após essa atividade cognitiva exauriente, há a garantia de que a decisão de mérito assuma, esgotadas as possibilidades de insurgência, contornos definitivos. Em suma, como resultado de um processo indispensavelmente dialético, espera-se, porquanto assim o quis a Carta da República, uma tutela que tenha por escopo a outorga do direito a quem efetivamente seja seu detentor segundo a ordem jurídica positivada. Esse provimento deverá ter aptidão para se tornar indiscutível, resolvendo definitivamente o litígio. Garante-se, assim, a segurança jurídica6, indispensável para a confiabilidade das instituições que integram um ordenamento social fundamentalmente democrático.

Não é difícil perceber, entretanto, que a observância de um processo dialético, com respeito ao princípio do contraditório e da ampla oportunidade de defesa, demanda certo lapso temporal7, enquanto que, não raras vezes, o tempo atua como agente corrosivo de direitos8 e a delonga exigida pelo princípio da segurança jurídica poderá resultar na absoluta inutilidade da tutela jurisdicional9.

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O problema da tensão de princípios fundamentais associados ao direito de ação e à correspondente prestação jurisdicional não é exclusividade do sistema processual brasileiro. Outros sistemas jurídicos democráticos, diante do problema, também buscaram soluções técnicas tendentes a harmonizar "segurança jurídica" e "efetividade", visto que não se concebe eliminar radicalmente um deles10.

As medidas cautelares, observadas as modulações inerentes aos diversos sistemas jurídicos, foram as primeiras ferramentas destinadas à conservação dos direitos em litígio. Verde, em interessante ensaio comparativo entre as medidas cautelares brasileiras e italianas, registrou com precisão:

[...] la necessità del processo cautelare nasce da una inevitabile e, direi, naturale ‘disfunzione’ del processo ordinario, che mai è in grado di dare in tempi reali una risposta alla domanda di giustizia e, meno che mai, è in grado di fare ciò nei tempi am uali, nei quali lo ‘scarto’ temporale tende ad allungarsi sempre più ed in maniera inarrestabile.11

Na Alemanha vislumbra-se igual preocupação com a efetividade da jurisdição, tanto que o § 935 do ZPO coloca à disposição do autor medidas preventivas cujo escopo é impedir que modificações do status quo frustrem ou dificultem a realização do direito12. A busca pela efetividade, no entanto, não está restrita às medidas cautelares ou simplesmente preventivas. Na Itália, por exemplo, o legislador instituiu a condanna con riserva, possibilitando que o julgador, diante de robusta prova do fato constitutivo e alegações defensivas que demandem dilação probatória, conceda um provimento condenatório antecipado, sujeito à condição resolutiva eventual. Em outras palavras, há possibilidade de o juiz antecipar a tutela pretendida, impondo ao réu o ônus da necessária dilação probatória13. Na França, também com características antecipatórias, existem as ordonnance de référé14, consistentes em decisões provisórias proferidas a pedido de uma das partes, na presença ou convocação da

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outra, nos casos em que a lei confere a um juiz não vinculado ao processo principal o poder de ordenar imediatamente as medidas necessárias15.

O legislador brasileiro utiliza várias técnicas para alcançar efetividade na prestação jurisdicional. Algumas sem prescindir de cognição exauriente, ainda que parcial16, e solução definitiva, enquanto que outras alicerçadas em cognição sumária e consubstanciadas em medidas provisórias e precárias. Entre as primeiras (de cognição exauriente) podemos relacionar a sumarização de procedimentos17 e ações de cognição parcial18. Neste ensaio, porém, pretende-se tratar apenas das últimas medidas referidas, aquelas que se satisfazem com uma cognição sumária e de caráter provisório. Trata-se de procedimentos que integram as denominadas "tutelas de urgência"19 que abrangem medidas cautelares20, antecipação de tutela21 e medidas inibitórias22.

2. Diferença teleolÓgica entre as tutelas de urgência

De longa data, o ordenamento jurídico brasileiro conhece o sistema da tutela cautelar, tanto que, na histórica classificação de tutelas, temos, ao lado das cognitivas e executivas, também com regulamentação procedimental própria, as cautelares. Com caráter instrumental e escopo original nitidamente preventivo, foi regulada

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pelo Código de Processo Civil em livro próprio23, em que se estabeleceu um iter procedimental comum para as medidas cautelares genéricas ou inominadas e individualizou-se o procedimento de diversas medidas cautelares específicas24.

As cautelares constituem-se em medidas que buscam preservar o bem da vida para que, em caso de sentença favorável, seja possível a sua fruição. Elas atuam na garantia da utilidade do provimento jurisdicional definitivo25, daí o seu caráter instrumental. Tendo em conta esse intuito conservatório, elas não são destinadas a satisfazer o direito subjetivo almejado26, mas apenas garantir a possibilidade de usufruição futura. Ao tratar do tema, Marinoni destaca que "há tutelas que dão ao autor, desde logo, aquilo que ele somente poderia obter após a pronúncia da sentença. Tais tutelas não são cautelares, porém antecipatórias. A tutela cautelar apenas assegura a possibilidade da realização efetiva do direito"27.

Ocorre que a sociedade moderna cada vez mais necessita e exige que a ordem jurídica seja implementada não somente com efetividade, mas também com celeri-dade. Não basta apenas conservar e proteger o direito subjetivo para que, no futuro, seja possível sua efetivação, é preciso que a efetivação seja quase que imediata28.

Essa necessidade não passou despercebida por advogados e juízes, que, na falta de instrumentos processuais eficazes, passaram a utilizar as cautelares inominadas para requerer e o poder geral de cautela (art. 798 da CPC) para conceder providências de caráter nitidamente satisfativo29. Entretanto, como registrou Marinoni, essa

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utilização instrumental da cautelar satisfativa não constituiu abuso ou ilegalidade, "pois, não fosse tal norma, em muitos casos concretos o princípio chiovendiano de que a ‘durata del processo non deve andare a danno dell’am ore che ha ragione’ não teria sido observado"30.

Premido pelas circunstâncias31, o legislador aprovou a Lei n. 8.952/94, que modificou a redação do art. 273 do CPC e oficializou ferramenta adequada à antecipação dos efeitos da tutela final. Diante dessa regulamentação, não mais se justifica a utilização do poder geral de cautela para satisfação antecipada de direitos, até mesmo em razão das diferenças finalísticas entre os dois institutos, mas principal-mente porque são distintos seus pressupostos, conforme se verá adiante. Por ora, é suficiente assentar a discrepância teleológica entre a tutela cautelar, com fim assecuratório da viabilidade de exercício futuro de um direito, e a tutela antecipatória, que objetiva o exercício imediato de um direito que poderá ser reconhecido no futuro.

Ainda, no âmbito das medidas de urgência, é preciso incluir as liminares previstas na seara das tutelas inibitórias. Essas liminares, como já dito, não deixam de tipificar antecipação de tutela (no caso, tutela inibitória), mas, diante da especificidade do direito material envolvido, o legislador processual previu-as, de forma específica, no art. 461, § 3º, do CPC. E, realmente, enquanto as cautelares têm função assecuratória e as antecipatórias procuram satisfazer com rapidez o direito subjetivo invocado, a tutela inibitória tem finalidade preventiva. Seu objetivo principal é evitar a prática, repetição ou continuidade de ocorrência de um ato ilícito. Em consequência dessa particularidade finalística, também seus pressupostos são diferenciados, o que dá sentido à sua individualização...

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