Um caso de sucesso? políticas neoliberais, setor extrativo e corporações privadas enquanto agentes de desenvolvimento em Moçambique

AutorIsabella Lamas
CargoUniversidade de Coimbra
Páginas395-426
Cadernos do CEAS, Salvador/Recife, n. 245, p. 395-426, set./dez., 2018 | ISSN 2447-861X
UM CASO DE SUCESSO? POLÍTICAS NEOLIBERAIS, SETOR EXTRATIVO
E CORPORAÇÕES PRIVADAS ENQUANTO AGENTES DE
DESENVOLVIMENTO EM MOÇAMBIQUE
A success story? Neoliberal policies, extractive sector and private corporations as
development agents in Mozambique
Isabella Lamas
(Universidade de Coimbra)
Informações do artigo
Recebido em 10/04/2018
Aceito em 29/06/2018
doi>: 10.25247/2447-
861X.2018.n244.p464-495
Resumo
Segundo o Banco Mundial, a extração dos recursos naturais é u ma possibilidade
única de financiamento rápido do desenvolvimento econômico e da redução de
pobreza, principalmente nos países do Sul Global. Ao contrário dos países centrais,
que implementaram progressivamente políticas neoliberais principalmente a partir
dos anos 1970, Moçambique apresenta uma trajetória econômica enquanto país
independente ainda muito recente. O país começou a implementar reformas de
ajuste estrutural do Banco Mundial e do FMI a partir de 1987, com o Programa de
Reabilitação Econômica (PRE), que marcou a sua transição para uma economia de
mercado. A estabilidade dos indicadores políticos e econômicos no período pós -
guerra fez com que Moçambique fosse retratado como um caso de su cesso pelo
FMI, Banco Mundial e comunidade de doadores internacionais. O recente
expressivo crescimento econômico do país foi impulsionado pela grande
quantidade de investimento estrangeiro direto destinada à implementação de
megaprojetos no setor extrativo. Neste contexto, a corporação multinacional
brasileira Vale S.A. ganhou, em 2004, uma concessão para extração de carvão na
Província de Tete. A partir de evidências empíricas da atuação socioambiental da
Vale no país, argumenta-se que o processo de neoliberalização gerou uma abertura
na governança para que empreendedores privados passassem a atuar enquanto
agentes centrais na promoção do desenvolvimento local. Apesar disso, nos
arredores das operações da Vale é possível observar espaços normalmente
caracterizados por baixos níveis de desenvolvimento h umano e conflitualidade
latente, o que acentua o paradoxo central da economia política moçambicana
contemporânea: crescimento econômico com aumento da pobreza e da
desigualdade.
Palavras-chave: Moçambique. Recursos Naturais. Corporação Multinacional.
Instituições financeiras internacionais. Neoliberalismo.
Abstract
According to the World Bank, the extraction of natural resources is a unique
possibility for fast financing economic development and poverty reduction,
especially in the countries of the Global South. Unlike central countries that have
progressively implemented neoliberal policies mainly since the 1970s, Mozambique
has an economic trajectory as an independent country still very recent. The country
began implementing structural adjustment reforms of the World Bank and the IMF
from 1987 onwards with the Economic Rehabilitation Program that marked its
transition to a market economy. The stability of political and economic indicators in
the post-war period has led Mozambique to be portrayed as a success story by the
IMF, World Bank and the international donor community. A large amount of foreign
direct investment destined to the implementation of megaprojects in the extractive
sector has driven the country's recent significant economic growth. In this context,
the Brazilian multinational corporation Vale S.A. won in 2004 a concession for coal
extraction in the Tete Province. Based on empirical evidence of Vale's socio-
environmental performance in the country, it is argued that the neoliberalization
process has provided an aperture for private entrepreneurs to act as central
governance agents in promoting local development. Nevertheless, in the places of
Vale's operations it is possible to observe sp aces normally characterized by low
levels of human development and latent conflict, which accentuates the central
paradox of contemporary Mozambican political economy: economic growth with
increasing poverty and inequality.
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Introdução
O desenvolvimento dos sectores de gás e carvão em Moçambique
representa uma oportunidade ímpar para acelerar o crescimento inclusivo e
reduzir a pobreza. [...] O enorme crescimento que se espera da indústria
extractiva Moçambicana pode reduzir drasticamente a pobreza a médio
prazo e ajudar a criar as bases para um crescimento sustentável e uma
prosperidade partilhada (BANCO MUNDIAL, 2014, p. 3).
Devido ao seu enorme potencial de exportação e geração de receitas, a extração de
recursos naturais é vista como uma possibilidade única de financiamento rápido do
desenvolvimento e da redução de pobreza, principalmente para os países do Sul global (LISK;
BESADA; MARTIN, 2013: 03). Se bem administrados, os recursos naturais são associados à
possibilidade de geração de crescimento econômico, garantia de interesses de segurança
nacional e até contribuições para a paz positiva entendida enquanto justiça social. Nessa
linha, as instituições financeiras internacionais, com destaque para o FMI e o Banco Mundial,
discutem frequentemente a importância central de uma boa governação da extração de
recursos para o desenvolvimento dos países africanos no período pós-colonial.
De fato, o continente africano tem grande potencial de exploração de recursos
naturais, possui 30% das reservas minerais, 10% de petróleo e 8% de gás natural do mundo
(BANCO MUNDIAL, 2017b). Além disso, o setor da mineração tem um papel importante na
economia e inserção no mercado internacional de mais da metade dos países africanos
(UNITED NATIONS ECONOMIC COMMISSION FOR AFRICA, 2011). Entre eles, Moçambique
apresenta uma trajetória recente de desenvolvimento do setor extrativo a partir da
descoberta de grandes reservas de carvão e gás natural. Na ótica da indústria extrativa, o país
abriga uma das histórias de crescimento mais importantes no setor da mineração global
contemporâneo (KPMG, 2013). Reafirmando o discurso d o Banco Mundial, que associa
recursos naturais e desenvolvimento referenciado na epígrafe desse artigo, a diretora do FMI
Doris Ross (2014, p. 1) diz que Moçambique dispõe de uma oportunidade ’nica de consolidar
a descoberta de vastos recursos naturais que, se forem bem geridos, irão permitir que o país
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alcance os seus objetivos de desenvolvimento social e ultrapasse a sua dependência da ajuda
externa
Depois de pouco mais de uma década de experiência socialista, Moçambique iniciou
um processo de neoliberalização econômica no final dos anos 1980. Frente a uma grave crise
econômica e política e em meio a uma guerra civil, o país começou a implementar reformas
de ajuste estrutural propostas pelas instituições de Bretton Woods, Banco Mundial e FMI, que
marcaram a sua transição para uma economia de mercado. A estabilidade dos indicadores
políticos e econômicos no período pós-guerra fez com que Moçambique fosse retratado como
um caso de sucesso pelas instituições financeiras e comunidade de doadores internacionais
das quais o país se tornou altamente dependente ao longo deste período (IDA, 2009).
Os efeitos econômicos das reformas e medidas de austeridade adotadas geraram um
processo de liberalização econômica que incluiu a adoção de políticas para a atração do
capital internacional. O recente expressivo crescimento econômico do país foi impulsionado
em larga medida pelo fluxo de investimento estrangeiro direto destinado à implementação
de megaprojetos no setor extrativo que era, até o início dos anos 2000, muito pouco
desenvolvido. Segundo a Associação Internacional de Desenvolvimento (IDA), braço do
Banco Mundial voltado para ajudar aos países mais pobres do mundo, há uma relação de
causalidade direta entre as reformas e o aumento de IED no setor extrativo moçambicano a
implementação consistente de reformas fundamentais levou a aumentos expressivos no
investimento estrangeiro direto em alumínio gás natural carvão e titânio (IDA, 2009, p. 2)
1
.
Sendo assim, as reformas inseriram Moçambique na poderosa confluência de forças da
hegemonia neoliberal em nível global relacionada ao cr escente fluxo de investimentos de
capital internacional e à desregulamentação governamental destes mesmos investimentos.
Desregulamentação, privatização e a retirada do estado do seu papel de provedor de
diversas funções sociais (HARVEY, 2005, p. 3) são algumas das consequências da
1
Tradução da autora.

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