Um olhar no caleidoscópio das igualdades e das diferenças nas relações de emprego

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas273-279

Page 273

Ver Nota1

1. Considerações iniciais

Estamos vivenciando um período de grande discussão acerca da importância dos Direitos Humanos e a Carta Magna de 1988 acolheu amplamente tal ideia. Prova disso encontramos no art. 1º, III da CR/88 que estabeleceu como um de seus princípios fundamentais a dignidade da pessoa humana, que deve constituir a espinha dorsal de todo o sistema legal e dos demais direitos ali estabelecidos e assumiu o compromisso com valores que rechaçam o preconceito e qualquer forma de discriminação. Tal lógica aplica-se também às relações trabalhistas, pois diante da importância do trabalho para as pessoas, não se pode tolerar qualquer prática discriminatória tanto para o acesso quanto para a permanência do vínculo empregatício.

No entanto, encontramo-nos diante de uma tensão: Se por um lado a Constituição de 1988 trouxe um tratamento muito rico quanto aos Direitos Fundamentais dos trabalhadores, por outro, indaga-se acerca da forma como ainda estabelecemos representações acerca da igualdade e da diferença com relação a todos esses direitos. O que se quer questionar é: Como podemos pensar os avanços normativos no campo do reconhecimento das diferenças e, ao mesmo tempo, colocarmos em questão os parâmetros de “normalidade” que marcam o ambiente laboral, em especial as discriminações étnico-raciais?2

Para tal análise busca-se um diálogo com autores que se debruçam sobre a discussão da tensão entre igualdade e diferença, em especial Boaventura de Sousa Santos e sobre a colonialidade ainda presente nas relações de trabalho no que diz respeito aos negros.

2. A necessidade de uma mudança de paradigmas

O paradigma jurídico-dogmático é marcado por uma incoerência interna, na medida em que se trata de um conhecimento vocacionado para maximizar a regulação social, mas que tem sido incapaz de promover a emancipação humana.

Os movimentos de secularização das produções normativas iniciados nos séculos XVII e XVIII acabaram criando um campo aberto para a emergência do positivismo jurídico no século XIX. O Direito deixa de ser visto como fruto da natureza e passa a ser compreendido como uma obra tipicamente humana. Visando afastar as incidências transcendentes ao campo do Direito, tal corrente de pensamento o reduz à produção dos mecanismos legais em vigor, afastando juízos valorativos e priorizando uma suposta neutralidade e auto-suficiência.

Para enfrentamento das questões envolvidas no problema formulado no presente artigo, partir-se-á da exposição da crítica que Boaventura de Sousa Santos faz ao desenvolvimento do projeto moderno e seu esgotamento e como a dogmática jurídica comportou-se como um importante elemento racionalizador da vida social e uma forte aliada da ciência moderna.

O autor tem defendido a tese de que nos encontramos num momento de transitoriedade dos paradigmas sócio culturais, tendo por um lado a modernidade e seus sinais claros de crise e outro paradigma ainda não totalmente identificado3.

(SANTOS, 2001, p. 77)

Salienta também que um dos detonadores da crise da modernidade foi justamente o conflito entre regulação e emancipação, com a preponderância da primeira, sendo que o projeto sócio-cultural da modernidade está calcado nestes dois pilares. O autor salienta que “o pensamento ocidental é um pensamento abissal” (SANTOS, 2007, p. 01), ao referir-se às linhas radicais que dividem a realidade social em dois universos, quais sejam, o do lado de cá da linha que seria o território do contrato social, dos direitos e de se construiu o paradigma da modernidade ocidental, fundada na tensão entre regulação e emancipação. No entanto, do lado de lá da linha encontra-se todo um campo em que as leis de cunho liberal não são aplicadas e onde prevalece uma outra lógica que é a da apropriação e violência, em que temos grupos inteiros invisibilizados (produzidos intencionalmente como inexistentes).

Explica o autor que a regulação é constituída pelo princípio do Estado, da comunidade e do mercado. O que deveria ser um desenvolvimento equilibrado acabou ocorrendo uma

Page 274

evidência maior do mercado, uma atrofia da comunidade e um desenvolvimento ambíguo do Estado. Já o pilar da emancipação: é constituído por três lógicas de racionalidade: a racionalidade estético-expressiva da arte e da literatura; a racionalidade moral prática da ética e do direito e a racionalidade cognitivo-instrumental da ciência e da técnica. (SANTOS, 2001, p. 77)

O autor defende que sendo a modernidade um projeto incompleto, na medida em que não cumpriu suas promessas, não é possível completá-lo em termos modernos “sob pena de nos mantermos prisioneiros da mega armadilha que a modernidade nos preparou: a transformação incessante das energias emancipatórias em energias regulatórias. (SANTOS, 2001, p. 93)

A partir do exposto, colocamo-nos a analisar: de que formas seria possível repensar a relação entre igualdade e diferença e os mecanismos de representações do “igual” e do “diferente” em nossa sociedade e que interferem tanto no acesso como na permanência de trabalhadores.

Segundo Boaventura de Sousa Santos, as condições teóricas que constituem a transição paradigmática na ciência não são as mesmas que as do Direito moderno. Assim, é possível visualizar que o paradigma da modernidade idealizou que a regulação social seria uma mera emanação das descobertas científicas sobre a ordem e a transformação social. A ciência é que seria o saber com capacidade de produção da regulação social. Complementa o autor:

Contudo, até que tal fosse possível haveria que recorrer ao poder coercitivo do direito e à sua capacidade de integração normativa para garantir, nomeadamente, que a gestão gradualmente mais científica da sociedade fosse prosseguindo tão liberta quanto possível dos conflitos sociais e da rebelião. (2002, p. 164)

Desta forma, a relação saber-poder está organizada de forma a que o Estado detenha o poder que gera um saber, que é a dogmática jurídica e que, por sua vez, faz-se científico para cumprir sua tarefa de reprimir os conflitos.

Nesse sentido, é salutar a posição de José Eduardo Faria, quando aponta que a cientifização do discurso jurídico-dogmático produz efeitos retóricos com funções sociais específicas, já que se restringe à mera administração da lei por um poder neutro e objetivo. Consequentemente, o aplicador da lei torna-se um mero técnico do direito positivo que está imune a pressões de ordem valorativa. (1992, p. 56)

Ainda na tentativa de compreender as marcas mais evidentes produzidas pela modernidade, Boaventura de Sousa Santos traz uma ampliação dos pilares da regulação e da emancipação acima mencionados e acrescenta:

Mas subjacente a esta distinção existe uma outra, invisível, na qual a anterior se funda. Esta distinção invisível é a distinção entre as sociedades metro-politanas e os territórios coloniais. De fato, a dicotomia regulação/emancipação apenas se aplica a sociedades metropolitanas. Seria impensável aplicá-la aos territórios coloniais. Nestes aplica-se uma outra dicotomia, a dicotomia apropriação/violência(...). (2010, p. 32)

O autor dá início ao texto acima referido afirmando que o pensamento ocidental é um pensamento abissal. Expõe que a realidade social está dividida em dois universos distintos que ele chamou de “do lado de cá” da linha abissal que está caracterizado como o ambiente em que estão presentes os direitos e onde o contrato social permeia as relações.

No entanto, do outro lado da linha abissal há uma reali-dade onde os direitos não conseguem chegar e que é marcada pela tensão entre apropriação e violência. Boaventura de Sousa Santos pontua:

A divisão é tal que “o outro lado da linha” desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e é mesmo produzido como inexistente. Inexistência significa não existir sob qualquer forma de ser relevante ou compreensível. (2010, p. 32)

Nota-se que o início das distinções expostas pelo autor tem sua raiz na relação estabelecida entre as metrópoles e as colônias (em que nestas imperava a apropriação e a violência) mesmo após os processos de independência das colônias a linha abissal continuou produzindo seus efeitos sobre tais sociedades e que não separa apenas continentes, mas cidades, bairros, casas e pessoas.

Nesta perspectiva, o direito moderno ficou localizado do “lado de cá” da linha e estabeleceu dicotomias do que seria legal ou ilegal a partir de um olhar focado exclusivamente no direito estatal. O autor nos adverte acerca de tal aspecto:

Esta dicotomia central deixa de fora todo um território social onde ela seria impensável como princípio organizador, isto é, o território sem lei, fora da lei, o território do a-legal, ou mesmo do legal e ilegal de acordo com direitos não oficialmente reconhecidos. (2010, p. 34)

O Direito elaborado e aplicado do “lado de cá”, nos mostra um comportamento ambíguo, na medida em que podemos verificar momentos históricos em que a “lei” foi um fator de grande...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT