Um Perfil Contemporâneo do Emprego Doméstico no Brasil

AutorCarlos Henrique Horn e Cristina Pereira Vieceli
Páginas59-76

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Introdução

O Brasil igura entre os países com os maiores números absoluto e relativo de empregadas domésticas na estrutura ocupacional. Ainda assim, até recentemente, era esparsa a produção de estudos sobre esta ocupação e as pessoas nela envolvidas, limitando-se basicamente a pesquisa histórica sobre a passagem da escravatura ao trabalho assalariado de ins do século XIX e princípios do século XX e a alguns estudos de caso. A maior disponibilidade de dados sobre o mercado de trabalho brasileiro e, sobretudo, o debate público acerca de políticas para a regulamentação do emprego doméstico suscitaram, todavia, um maior interesse nas condições de existência deste segmento virtualmente invisível aos olhos das ciências sociais praticadas no país.

As mudanças no emprego doméstico observadas, sobretudo, a partir de princípios do século XXI impactaram principalmente a forma da inserção feminina no mercado de trabalho, tendo em vista que os trabalhos domésticos são historicamente realizados por mulheres, quer seja de forma remunerada, quer seja sem contrapartida pecuniária como no exemplo característico das donas de casa. Além de ser exercido majoritariamente por mulheres, o serviço doméstico concentra os grupos raciais mais desfavorecidos no mercado de trabalho (BRITES; PICANÇO, 2014). Estas características parecem acentuar-se nos países com alto grau de desigualdade social, como no caso dos latino-americanos. A formação dos Estados nacionais nesta região ocorreu de maneira racialmente estratiicada, destinando as atividades mais precárias aos grupos indígenas e à população negra vinda da África na condição de escravos (QUIJANO, 2005; KUZNESOF, 1989). A segregação racial e de classe que marca a força de trabalho doméstica nos países latino-americanos estende-se até os dias de hoje. No caso do Brasil, consoante a interpretação apresentada no capítulo precedente, a coniguração do trabalho doméstico remunerado associa-se diretamente ao passado escravocrata e à permanência de relações raciais desiguais após a abolição da escravidão (FERNANDES, 2008).

Neste capítulo, procuramos evidenciar as características gerais do emprego doméstico no Brasil no início da segunda década do século XXI. Para tanto, utilizamos os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego (PED) referentes a seis regiões metropolitanas e ao

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Distrito Federal1, o que permite identiicar tanto as características gerais do país quanto algumas diferenças regionais relacionadas a este tipo de emprego. Começamos, assim, por destacar as questões relacionadas à predominância virtualmente absoluta de mulheres na composição do emprego doméstico. Na sequência, analisamos de modo sistemático os atributos das pessoas ocupadas na atividade doméstica remunerada. Por im, a seção conclusiva destina-se a caracterizar os principais traços dos postos de trabalho doméstico no Brasil.

A inserção da mulher no mercado de trabalho e a atividade doméstica remunerada

O emprego doméstico é uma atividade que emprega majoritariamente mulheres. Esta característica está relacionada com a divisão sexual do trabalho e com a estrutura patriarcal no contexto de uma sociedade capitalista. Ainda que a divisão sexual do trabalho anteceda ao sistema mercantil capitalista, é a partir de sua consolidação que ocorre a separação entre a produção orientada para o mercado e a produção destinada ao autoconsumo familiar (SAITO, 2014). Como consequência, emerge um padrão em que o homem é o principal provedor de recursos para acesso aos mercados, enquanto a mulher se ocupa da produção doméstica.

Não obstante o crescente ingresso de mulheres de classe média no mercado de trabalho, a universalização da educação e a intensiicação do movimento feminista - fenômenos mais acentuados nos países de alta renda -, permanecem as desigualdades de gênero no mercado de trabalho, reletindo relações patriarcais provenientes do âmbito doméstico (SAFFIOTI, 2013). O ingresso de mulheres de classe média nos espaços da vida pública tornou-se possível, ademais, em decorrência de que outras mulheres, as empregadas domésticas remuneradas, passaram a exercer atividades que antes eram de obrigação das donas de casa. No Brasil, conforme indicado por Melo (1998), a oferta de trabalho de baixa remuneração proveniente de camadas mais populares, em geral vindas das zonas rurais, foi um fator decisivo para que mulheres dos estratos de renda média e alta ingressassem no mercado de trabalho sem expansão compensatória de serviços públicos como creches e escolas de tempo integral que reduzisse o dispêndio pessoal de tempo no cuidado e educação dos ilhos.

O crescente ingresso de mulheres no mercado de trabalho, em ocupações de maior remuneração relativa e competindo por postos anteriormente preenchidos em sua ampla maioria por homens, acarretou a formação de polos opostos de trabalho, num resultado chamado de bipolaridade do trabalho feminino (BRUSCHINI; LOMBARDI, 2000). Em um polo, encontram-se proissões de maior prestígio social e remuneração, cujo acesso requer escolaridade de nível superior, a exemplo dos estudos de Arquitetura, Medicina, Direito e de algumas áreas da Engenharia. O outro polo reúne ocupações de menor prestígio e remuneração e protegidos por insuicientes direitos trabalhistas; nele estão as empregadas domésticas e outras ocupações consideradas "nichos de trabalho feminino", incluindo atividades sem remuneração e atividades para consumo próprio e familiar.

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A inserção das mulheres em polos de trabalho mais valorizados, no entanto, não deixou de ser acompanhada pela discriminação de gênero, o que é evidenciado pelas diferenças salariais dentro dessas ocupações. Em estudo realizado por Manganeli (2012), por exemplo, destaca-se a existência de dois fenômenos distintos que caracterizam o emprego feminino no Brasil: o chamado "Teto de Vidro" deine um limite superior na carreira, impedindo as mulheres de ascender proissionalmente, enquanto o chamado "Chão Pegajoso" caracteriza as forças que mantêm a mulher nas ocupações mais precárias. Com base em informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o estudo evidencia que as mulheres recebem 20% a menos do que os homens nos dois extremos da distribuição salarial. Além disso, os retornos em anos de educação são maiores para os homens do que para as mulheres, uma tendência que se acentua nos estratos salariais superiores.

Outro fator que demonstra a manifestação das relações patriarcais, com consequências sobre a participação feminina no mercado de trabalho, é a alocação do tempo destinado às atividades reprodutivas. Segundo estudo do IPEA (2012), cerca de 90% das mulheres brasileiras maiores de 16 anos exerciam atividades domésticas não remuneradas no ano de 2009, ao passo que o percentual era de 50% para os homens. Em relação às horas alocadas nessas atividades, as mulheres despenderam, em média, 26,6 horas por semana; já o total de horas despendidas pelos homens nos afazeres domésticos no mesmo ano foi menos que metade, ou 10,5 horas semanais. Ainda, conforme o mesmo estudo, este padrão de alocação do tempo não teria apresentado variação importante entre 1995 e 2009.

Os trabalhos domésticos não remunerados, apesar de serem atividades de importância primordial para a manutenção da vida, são invisíveis no cálculo do Produto Interno Bruto (PIB). Segundo estimativa de Melo, Considera e Sabbato (2010), se os afazeres domésticos não remunerados fossem computados nas atividades produtivas, seu valor corresponderia a 12,8% do PIB brasileiro em 2004, sendo 82,0% desse valor gerado por mulheres. A invisibilidade do trabalho doméstico não remunerado nas contas nacionais e nas estatísticas regulares do mercado de trabalho, onde aqueles que o exercem são caracterizados como não economicamente ativos, demonstra o tratamento do trabalho reprodutivo como serviço de categoria inferior nas análises econômicas.

A bipolaridade do trabalho feminino e a invisibilidade do trabalho reprodutivo coniguram uma dinâmica paradoxal em que "tudo muda, mas nada muda" na estrutura das ocupações (HIRATA; KERGOAT, 2007). As novas conigurações da divisão sexual do trabalho envolveriam mudanças ligadas à plasticidade do mercado de trabalho, já que as modalidades variam continuamente no tempo e no espaço. Um exemplo de mudança está na maior demanda por executivas mulheres. De acordo com dados do Institut National de la Statistique et Études Économiques (Insee), desde o início da década de 1980, o número de mulheres executivas mais do que dobrou, empregando cerca de 10% da população economicamente ativa feminina no mundo. Se, por um lado, as mulheres estão conquistando espaços em atividades mais valorizadas, por outro, elas continuam ocupando a maior parte dos empregos mais vulneráveis e são as mais atingidas por crises econômicas e pelo desemprego, o que estaria associado à questão da feminização da pobreza mundial.

Em relação ao desemprego, segundo dados da OIT (2012), a taxa de desemprego feminino no mundo era de 5,8% em 2007, enquanto que o desemprego masculino era de 5,3%. Em

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2011, com os efeitos da crise econômica sobre o emprego mundial, a taxa de desemprego masculino passou a 5,7%, enquanto a feminina atingiu 6,4%. Ou seja, a diferença aumentou de 0,5 para 0,7 pontos de percentagem. As mulheres encontram-se também nos empregos mais precários. Ainda segundo a OIT (2012), 50,4% do total de mulheres ocupadas inseriam-se em ocupações precárias, em relação a 48,1% dos homens. Esta diferença é maior no continente africano - na África Subsaariana atinge 14,8 pontos de percentagem, enquanto no Norte da África cresce para 23,6 pontos de percentagem - e no Oriente Médio, onde chega a 15,0 pontos de percentagem.

A maior...

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