Por um retorno - regresso- ao "generalismo" jurídico: notas sobre os equívocos a que pode conduzir uma excessiva especialização do conhecimento jurídico

AutorEstevan Lo Ré Pousada
Ocupação do AutorBacharel, Mestre (2006) e Doutor ('summa cum laude') em Direito Civil pela Universidade de São Paulo (2010)
Páginas159-196

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§ 1. Premissa de trabalho: as mazelas de uma “progressiva” (ou “acentuada”) especialização do conhecimento jurídico.

Apresentação. A despeito de seu caráter sintético e pouco ortodoxo, a presente exposição apresenta três perspectivas fundamentais, cuja compreensão preliminar é de fundamental importância para que esta seja tomada não apenas (a) como uma manifestação do “espírito crítico” de seu autor – que, provavelmente, pouco de melhor poderia fazer em lugar do legislador e da doutrina tão frequentemente atacados em suas explanações ao público discente –, mas também (b) como uma “provocação” ao leitor para o questionamento de uma tendência aparentemente inarredável dos dias contemporâneos – acompanhada de uma (c) “proposta metodológica diferenciada” em relação aos padrões de estudo ora difundidos no ensino jurídico brasileiro1.

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Se isso pode vir a ser entendido como a fundação de uma espécie de “escola”, diríamos – pretensiosamente – que buscamos aqui situar a pedra fundamental de um movimento científico de resistência, caracterizado pela busca incansável do restabelecimento das vias de comunicação entre os variados ramos do Direito Privado – e, por que não dizer, do Direito em geral – para uma melhor compreensão dos diversos matizes assumidos pelas regras, por exemplo, de Direito Civil. Nesse “cateterismo jurídico”, atrelados que estamos à Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo (FDSBC), pretendemos aqui lançar as bases de uma “Escola Generalista” do Direito Civil – intimamente vinculada à nossa atuação acadêmica no município de São Bernardo do Campo/SP2.

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Exposição contrária. Não é nada fácil lutar contra uma tendência prevalecente, sobretudo quando esta conta com o expressivo apoio do “capital” – daqueles que dirigem os estabelecimentos de ensino privados na órbita superior e dos que se utilizam do material humano produzido nestas instituições de ensino responsáveis pela preparação de “técnicos” – e da “comodidade” inata a alguns integrantes do meio acadêmico. De fato, qualquer professor sabe quão difícil é demover de um espírito “preconceituoso” a aversão nele introjetada – pelos colegas e pelo próprio mercado de trabalho – quanto a disciplinas introdutórias, especulativas, problematizantes e, até mesmo, dogmáticas – desde que voltadas, todavia, a espectros do fenômeno jurídico que não estão “imediatamente” adstritos à futura atuação profissional do bacharel em Direito (então ainda em processo de formação)3.

Não seria a “especialização”, pois, uma característica “indeclinável” do ensino jurídico nos dias atuais? Se a cada dia novos ramos do Direito acabam surgindo (dotados de princípios, regras, institutos, categorias, figuras, conceitos e terminologia próprios), como justificar a luta por uma

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formação “generalizante”, por meio da qual o estudante venha a ser paulatinamente preparado para abraçar o sistema jurídico como um todo? Dada a profusão de novas leis, com a “ameaça” constante da edição de meia dúzia de diplomas legais pretensamente sistemáticos – Código Florestal, Código de Processo Civil, Código de Processo Penal, Código Penal, Código Eleitoral, etc. (além da reformulação prevista para o Código de Defesa do Consumidor e para o Código Civil, por exemplo) –, como se exigir dos profissionais deste “novo” mundo jurídico – onde se defendem os “microssistemas” (como se estes constituíssem uma autêntica novidade) – uma formação abrangente (conglobante), em que as diversas regras conformadoras do sistema sejam postas a se intercomunicar, em um diá-logo tendencialmente harmonioso4

Rebate. Ora, no mais das vezes, por razões muito mais vinculadas a preocupações profissionais e financeiras – extremamente distantes, para não dizer incompatíveis, com o funcionamento ortodoxo de uma Pós-Graduação “stricto sensu” (Mestrado/Doutorado) – muitos bacharéis, após um quinquênio de estudos mal conduzidos, acabam por tentar “aprimorar” – imbuídos, no mais das vezes, de um inequívoco espírito pragmático (para não dizer “burocrático”) – sua formação elementar por meio de um Curso de Especialização. O resultado, que nos parece desastroso, é o aprofundamento do “fosso” que os separa do mundo jurídico ao qual prometeram o seu espírito, logo que ingressaram no Curso de Graduação5.

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Em lugar de “especialistas” vocacionados ao exercício em uma dada área da experiência jurídica, estamos a formar meros técnicos “especializados”, que acabam por se tornar verdadeiros reféns de suas respectivas órbitas de atuação; imersos em um ambiente caracterizado pela junção paradoxal entre o “espírito de rotina” e a necessidade de mudanças “súbitas” e “bruscas”, pretendem mudar Códigos como se estivesse a trocar a mobília de sua sala de estar. O sujeito descarrega as suas ansiedades e frustrações transformando e redimensionando constantemente o ambiente no qual tenta sobreviver; no entanto, será que o habitante não está atribuindo ao exterior uma insatisfação relacionada àquilo que carrega dentro de si mesmo? Pois se este for o diagnóstico, seu descontentamento não cessará nem mesmo com a edição de códigos “anuais”, uma vez que aquele exterioriza – antes de mais nada – uma perturbação espiritual6.

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Em verdade – e essa, para nós, é uma autêntica profissão de fé – ou se conhece o Direito, como um todo, ou se o desconhece. A esposa que conhece seu marido não precisa controlar sua rotina diária, minuto a minuto, para saber o que ele está fazendo, onde está e sob a companhia de quem... É claro que, por vezes, suas suposições poderão falhar. Contudo, a exceção não compromete a regra, desde que seja considerada estritamente como tal: como simples exceção (e não como uma nova “ratio” ameaçadora do “status quo”). Pois, tentando ser um pouco mais rigorosos, diríamos que não foram as suposições que falharam (e nem mesmo quem as fez): falhou aquele em que se depositara a imerecida confiança.

À vista de tais considerações, pode-se dizer que – embora seja forçoso reconhecer que não é preciso dominar todas as regras do sistema jurídico para nele saber “navegar” com certa desenvoltura – é imprescindível ao jurista a mínima proficiência quanto às linhas gerais de “todo” o sistema no qual se insere o objeto de sua respectiva atuação. Ainda que o “civilista” não pretenda atuar em uma única causa penal, seria admissível que ele desconhecesse as “grandes determinantes” deste último compartimento jurídico? Até que ponto a necessidade de uma especialização de nossos profissionais tem sido tomada como um pretexto legitimador da ignorância quanto aos aspectos mais elementares do mundo jurídico exterior ao “feudo” em que resolveram se “encastelar”7

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Tomem-se, por exemplo, algumas condenações proferidas por nossos magistrados, em cuja fundamentação se reconhece que a indenização arbitrada tem por finalidade não apenas restabelecer o “status quo ante”, mas também servir de desestímulo à adoção de comportamentos ilícitos semelhantes ao discutido na causa em questão. Ora, qualquer que seja o nosso posicionamento quanto ao caráter “justo” ou “injusto” de tal decisão, fato é que ela contraria a diretriz estabelecida pelo artigo 944 do Código Civil, segundo o qual a indenização se mede pela extensão do dano (com a excepcional possibilidade de redução do “quantum” indenizatório caso a culpa do agente seja consideravelmente desproporcional ao dano causado). Nem se diga que nas indenizações por danos morais não há “reparação” em sentido estrito: o que reprovamos é a utilização de uma metodologia típica do Direito Penal – em que a sanção é determinada conforme o grau da culpa do agente (“conduta” como parâmetro) – no âmbito do Direito Civil (em que o metro para o estabelecimento da sanção é a “extensão do dano”), sem uma autorização legislativa para tanto – e em alguns casos sem a mínima consciência de que tais modelos são forjados sobre premissas inteiramente diversas8.

Conclusão. Eis a razão por que, neste ensaio, pretendemos apresentar algumas deficiências de regras integrantes de nosso sistema jurídico; tudo para que – tenha-se isso muito claramente ressaltado em letras garrafais – se evidencie o “custo” representado por uma especialização

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excessiva, graças à qual prolifera a “informação” despregada da “cultura”. Pois podemos observar desde logo – e isso será ressaltado ao final de nosso discurso – que estamos a preparar uma geração cada vez mais “bem informada”; se essa informação redundará em avanço do processo civilizatório? Isso já é outra questão. Talvez estejamos nos tornando, a cada dia que se passa, mais bárbaros. Indiscutivelmente bem informados, graças àquilo que a internet nos proporciona; resta-nos discutir, noutra oportunidade, aquilo que ela nos tem tomado, como uma espécie de contrapartida “lesiva”... De todo modo, passemos às sucessivas mostras de deficiência acima referidas.

§ 2. Primeira manifestação: o art. 1.329 do Código Civil e a afronta ao princípio da sucumbência.

Apresentação. Quase sessenta anos após a entrada em vigor de nosso primeiro Código Civil um projeto de nova codificação foi apresentado, sob o fundamento principal de que a obsolescência do diploma anterior não poderia prevalecer, à vista dos resultados obtidos pela ciência jurídica dos últimos cinquenta anos9. Entretanto, durante os mais de vinte e cinco anos de sua tramitação, o referido projeto não sofreu qualquer intervenção quanto a algumas disposições que se limitavam a reproduzir o texto anterior – como é o caso do art. 1329 do Código Civil (correspondente ao art. 644 do Código Civil de 1916). Eis o seu teor:

“Art. 1329. Não convindo os dois no preço da obra, será este arbitrado por peritos, a expensas de ambos os confinantes”.

Tome-se uma paráfrase imprecisa do conceito carneluttiano de lide: lide é o confiito de interesses qualificado por uma pretensão resistida ou insatisfeita10. À vista de tal definição, pergunta-se: no inventário – por exemplo

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