Por uma análise crítica da responsabilidade por vícios da coisa nos contratos de compra e venda

AutorLuiz Guilherme Georgi Salgado
Páginas178-207

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1. Introdução

Relacionar a responsabilidade por vícios da coisa com a exclusão de responsabilidade civil no contrato de compra e venda no Direito Brasileiro é tentar trazer equilíbrio a uma zona de tensão: de um lado, a necessidade de proteção dos interesses das partes contratantes em receber a prestação devida de acordo com o contrato celebrado; e, de outro, o interesse das partes em estabelecer uma alocação eficiente de riscos.1

Aqueles profissionais que atuam na negociação de contratos com escopos complexos - por exemplo, os contratos de compra e venda de equipamentos de alta tecnologia2 -sabem que as cláusulas mais negociadas entre as partes são as relacionadas ao âmbito3 e ao limite4 da responsabilidade civil do alienante por vícios da coisa transmitida. A finalidade desse arranjo contratual é promover uma alocação de riscos e responsabilidades entre as partes contratantes, sempre que respeitados os limites legais impostos à autonomia contratual como fator de manutenção do equilíbrio na colaboração entre as partes.5

O regime das garantias legais é aplicável a todos os contratos comutativos e desenvolveu-se, particularmente, nos contratos de compra e venda, tendo em vista a posição central assumida por esse tipo de contrato no direito privado.6 A compra e venda é definida no art. 481 do Código Civil (CC) como sendo um contrato pelo qual um dos contratantes se obriga a transferir o domínio de coisa certa, e o outro, a pagar-lhe certo preço em dinheiro. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) não apresenta uma definição específica, aplicando-se o CC subsidiariamente. Extrai-se do art. 482 do CC que o contrato de compra e venda tem como elementos essenciais a existência do objeto (res), do preço (pretium) e do consenso (consensus).1

Aborda-se a responsabilidade do vendedor por vício da coisa nos contratos de compra e venda com ênfase especial nas relações mercantis. Frise-se que o Código Civil de 2002 rege as relações jurídicas entre as pessoas naturais e jurídicas entre si e também dispõe sobre temas centrais do direito comercial, unificando, por assim dizer, o direito obri-gacional na forma de um "código único".8"9

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As relações de consumo10 têm regulamento legal próprio no CDC, aplicando-se o CC subsidiariamente, quando a norma invocada for compatível com o sistema da lei especial.11 Fato que merece atenção especial é o art. 2-do CDC, segundo o qual o consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Assim, nem sempre os contratos estabelecidos entre pessoas jurídicas serão considerados mercantis, pois a pessoa jurídica pode atuar como comprador que utilize o produto como destinatário final.

O presente estudo visa demonstrar como a referida regra adotada no Direito Brasileiro (lex general is/lex especial is) não favorece uma aplicação uniforme do direito civil, criando riscos desnecessários às partes contratantes, especialmente no campo da responsabilidade por vício da coisa.

O CC entrou em vigor em 2002. Seu projeto de 1975 foi aprovado quase inalterado e não foi conciliado com o CDC de 1990, que surgira por força de previsão constitucional.12 Como aponta Oliveira Ascenção, a situação de 2002 já era outra, o espírito da época diferente, sobretudo porque já vigorava a Constituição de 1998, que promoveu uma nova base à ordem jurídica brasileira.13 De-

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monstra que a norma do CDC se apresenta mais abrangente e moderna.

Apresentam-se paralelos e incongruencias entre a lei geral e a especial, demonstrando os efeitos e riscos indesejados que eles podem provocar às partes na esfera negociai. Nesse contexto, também apresenta recomendações de lege ferenda e sugestões práticas de arranjos contratuais aos profissionais do direito.

2. Conceito de vícios ocultos

O instituto dos vícios ocultos foi criado no Direito Romano14 e era fundado na responsabilidade do alienante de suportar os vícios da coisa vendida, independentemente da existência de culpa.15 O entendimento da época era que isso não era injusto ao vendedor, já que ele estava na posição de conhecer os vícios e não fazia diferença ao comprador se ele foi lesado pela falta de conhecimento do vendedor (ignorantid) ou pela sua astucia (calliditas).16

No Direito Brasileiro, ao contrário da mora, do inadimplemento absoluto ou ainda do cumprimento defeituoso (arts. 389 e 395 do CC), nos quais o dever de indenizar é fundamentalmente baseado na culpa do devedor nos termos dos arts. 396 e 393 do CC, a responsabilidade por vícios no campo dos contratos comutativos é objetiva.17 Isso gera determinadas diferenças no plano da responsabilidade civil, que serão abordadas na Seção 7 deste artigo.

Embora não tratadas de forma expressa no CC, as hipóteses abrangidas pelo princípio dos vícios redibitórios são as que dizem respeito à qualidade e à quantidade da coisa, segundo a finalidade pela qual foi adquirida e o valor pelo qual foi negociada. Diz-se que a coisa é viciada quando apresenta impro-priedade capaz de prejudicar o seu pleno uso ou de diminuir-lhe o valor.18 No regime das relações civis e comerciais, o legislador utilizou no art. 441 do CC, de forma pleonástica, as expressões sinônimas "vício" e "defeito" para traduzir a idéia de imperfeição do bem.

Estas expressões apresentam, contudo, significados distintos nas relações consume-ristas. O termo "defeito" é empregado no art. 12 do CDC para definir a responsabilidade do fabricante, produtor ou construtor pelos defeitos de segurança do bem, enquanto o art. 18 do CDC utiliza a expressão "vício" para responsabilizar o fornecedor de produtos por vícios de qualidade e quantidade. A diferenciação dos termos apresenta imprecisão terminológica, já que tanto a Seção III como a Seção II do CDC (e, de certo modo, até a Seção I) tratam da "responsabilidade por vício do produto e do serviço", que é o título da Seção III.19 Em que pese essa diferenciação

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não apresente maiores problemas para a compreensão do texto inovador, uma utilização homogênea desses termos tanto no CC como CDC daria mais concisão à norma legal.

A responsabilidade por vício da coisa foi incluída na parte geral dos contratos do CC e é adotada em todos os contratos comutativos, por exemplo, na prestação de serviços, empreitada, permuta e arrendamento mercantil, bem como na doação com encargos.20 Esses contratos são concebidos como aqueles nos quais se verificam prestações recíprocas entre os contratantes. Não é necessário que haja equilíbrio e proporcionalidade entre as prestações. Mesmo que haja desproporção entre elas, será possível a aplicação das regras relativas aos vícios redibitórios. O conceito de coisa inclui as coisas corpóreas ou incorpóreas (como patentes, programas de computador, obras literárias, científicas ou artísticas), fungíveis ou infungíveis.

Nas relações de consumo, o CDC não utiliza o termo vício da coisa como no art. 441 do CC, mas como na responsabilidade por vício do produto (art. 18) ou do serviço (art. 20). Segundo o CDC, produto é qualquer bem, móvel ou imóvel, material ou imaterial (art. 3% § 1*).

3. Requisitos para a caracterização do vício

Segundo se deduz dos art. 441 (e ss.) do CC e 18 (e ss.) do CDC, bem como dos princípios doutrinários aplicáveis, os requisitos para a verificação dos vícios da coisa nos contratos comutativos estão dispostos a seguir.

3. 1 Vício oculto e vício aparente

Desde o Direito Romano21 a regra para a caracterização da garantia legal pelo vício da coisa sempre foi a de que os defeitos sejam ocultos ao momento de sua tradição (art. 445 do CC).22 Destarte, o fato gerador do vício deve ser anterior ou concomitante à perfectibilização do contrato, que se dá pela tradição da coisa. É nesse momento que ocorre, efetivamente, a transferência do risco para o comprador, se diferentemente não tiver sido estipulado pelas partes (art. 444 do CC).

Nas relações civis e mercantis, se o defeito for aparente, suscetível de ser percebido por uma análise atenta da coisa feita por um adquirente cuidadoso no trato dos seus negócios, não constituirá vício oculto.23 Nesse caso, presumir-se-á que o adquirente já conhecia os vícios e que não os julgou capazes

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de impedir a aquisição, renunciando assim à garantia legal dos vicios redibitórios.24

Nas relações consumeristas, a leitura do art. 26 do CDC pode causar ao intérprete a impressão de que o CDC alterou o principio basilar de que os vícios tenham caráter oculto, já que esse artigo prescreve prazos de garantia diferenciados para o que denomina "vicios aparentes ou de fácil constatação" e "vicios ocultos". A exegese referente aos vicios aparentes deve ser tratada, porém, de urna forma restritiva, evitando-se uma interpretação meramente gramatical, segundo a qual o consumidor teria direito de recorrer aos recursos jurídicos do CDC mesmo quando tenha...

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