Uma analise decolonial sobre tresinterpretacoes do movimento feminista no Brasil: redefinindo as fronteiras do mapa (1970-1980)/A decolonial analysis about three interpretations of women's movement in Brazil: redefining the borders of the map (1970-1980).

AutorMaione, Leticia Alves

Introdução

O presente artigo corresponde a um capítulo de dissertação defendida para conclusão de mestrado e, portanto, busca compartilhar parte dos resultados da análise crítica e do mapeamento realizado de três (contra) narrativas produzidas sobre a formação do(s) movimento(s) feminista(s) nas décadas de 1970-1980, com foco no eixo dos grandes centros urbanos Rio de Janeiro e São Paulo (1). Meu objetivo principal com o trabalho foi o de ampliar as percepções sobre as presenças no(s) campo(s) feminista(s) e, ao mesmo tempo, buscar o reconhecimento da heterogeneidade epistemológica que contribui para suas práticas políticas e teóricas.

Ao enfatizar a existência de uma pluralidade de matrizes, a justificativa deste estudo repousa na relevância de trazer à tona as relações entre as formas heterogêneas de ser/saber. Dessa forma, afirmo também uma relação entre produção de conhecimento, poder e luta de diferentes campos e genealogias políticas pela justiça social em termos epistemológicos, fazendo referência a como uma parte das correntes feministas da América Latina influencia e, por sua vez, é constituída por esse debate. Este é um debate extremamente necessário na medida em que se estabelece, no cenário da academia feminista brasileira e latino-americana, o paradigma de uma pluralidade constitutiva do feminismo. Acredita-se, portanto, ter o feminismo decolonial gestado robusta contribuição que permite apontar e examinar as relações acima descritas, no contexto brasileiro.

Por esse motivo, o arcabouço teórico-metodológico de intelectuais --em grande parte, militantes--desta escola aparece como uma de minhas principais referências para a crítica dos três textos aqui analisados. Os trabalhos de Cynthia Sarti (1988, 2004), Joana Maria Pedro (2006) e Lélia Gonzalez (2011) (2) surgem em meu caminho investigativo como reveladores de (contra)memória e enquanto estudos de relevância utilizados pelos movi mentos feministas por proporem explicações e traduções sobre as práticas políticas e de construção de conhecimento daquele período (3).

No entanto, apesar de serem consideradas como notáveis interpretações da formação feminista e do grande fluxo de citações recebidas por essas obras, estas raramente são apresentadas uma em relação a outra, justificando assim minha primeira estratégia de ler as autoras realizando uma comparação entre suas diferentes análises. Uma vez confrontadas, destacam-se as diferentes categorias utilizadas para a compreensão constitutiva do movimento onde, por vezes, estas coincidem, discordam ou se sobrepõem umas às outras, dificultando a identificação de alguns sujeitos coletivos, bem como de suas posições e narrativas enquanto integrantes do campo.

Foi então que visualizar a constituição política e social do feminismo como "campos" proporcionou a devida coerência teórico-metodológica ao trabalho, lidando com a complexidade que exige a ampliação da percepção sobre os sujeitos coletivos envolvidos na formação feminista no Brasil. Ao reconhecer que um "emaranhado de interlocuções" tem sido parte crucial de sua constituição (ALVAREZ, 2014b, p. 19), a imagem de "campo(s)" proporciona uma ferramenta metodológica para localizar os lugares sociais e políticos de enunciação (SEABRA; ASSIS, 2016) que estão fora das definições categóricas de outrora. O aparato conceitual advindo da noção de "campo discursivo de ação" desenvolvido por Sonia Alvarez (2014b), bem como elementos da cartografia social expostos por Ana Clara Torres, foram apresentados por Joana E. Seabra e Mariana P. Assis (2016) como uma forma de tratar metodologicamente e mapear o pensamento social feminista crítico na América Latina.

As elaborações das autoras orientam a análise neste trabalho sobre as possibilidades que emergem da identificação das (contra)narrativas que, para além de suas articulações com o "lugar", são providas também por sua relação com o "contexto" (4). Nesta ocasião, me concentro na narrativa como material de mapeamento e, seguindo suas orientações, exploro como estas são construídas com o apoio em dimensões e categorias coconstruídas, bem como suas implicações para a "crítica e proposição de paradoxos transformadores" (5) (SEABRA; ASSIS, 2016, p. 488).

Sarti (1988, 2004), por exemplo, chamará a atenção para os setores das mulheres organizadas em partidos políticos da esquerda, em con dição de clandestinidade, e as mulheres dos movimentos populares urbanos. A autora oferece uma análise crítica do processo de modernização e desenvolvimento, de seu impacto nas distintas e desiguais posições sociais das mulheres, assim como da universalização presente na perspectiva feminista ocidental. Porém, sua proposta de caracterização do movimento feminista irá se restringir a um caráter interclassista. Os trabalhos de Sarti que analisei principalmente foram: Feminismo no Brasil: uma história particular (1988) e O feminismo brasileiro desde os anos 1970: revisitando uma trajetória (2004).

Por sua vez, Joana Maria Pedro (2006) tem o interesse em evidenciar como a narrativa fundacional do feminismo no Brasil é resultado de invenções e lutas de poder entre as diferentes forças sociais e políticas do período. O foco principal de Pedro é direcionado às mulheres de partidos e organizações políticas de esquerda, assim como Sarti, mas também ao que a autora identifica como uma corrente feminista anterior aos anos de 1970-1980. Esta corrente será retratada em seu trabalho através de mulheres brancas, de classe média, intelectualizadas e com experiências políticas e acadêmicas nos Estados Unidos e Europa. Seu principal trabalho analisado nesta pesquisa foi: Narrativas fundadoras do feminismo: poderes e conflitos (1970-1978) (PEDRO, 2006).

Por último, Lélia Gonzalez (2011) denuncia o racismo estrutural nas sociedades e movimentos sociais da América Latina e, mais especificamente, no Brasil. A autora enfatiza o surgimento dos movimentos de amefricanas e ameríndias, reivindicando uma nova perspectiva com a qual abordar os movimentos de mulheres na região. Para a autora, as categorias debruçadas até então sobre a experiência e a participação no movimento de mulheres ignoram a trajetória das mulheres amefricanas e ameríndias nos movimentos étnico-raciais. O trabalho de Gonzalez (2011) no qual me concentrei, principalmente, foi: Por um feminismo Afrolatinoamericano.

É possível antecipar que, quando confrontadas, por um lado, essas narrativas demonstram relações de desigualdade, operações de silenciamento e revelam a colonialidade de gênero (LUGONES, 2007). Por outro, elas manifestam também a radicalização do(s) campo(s) feminista(s). Os trabalhos de Sarti (1988, 2004) e Pedro (2006) são exemplos de narrativas que ainda encontram dificuldades para superar interpretações dicotômicas sobre as participações no campo feminista. No entanto, o trabalho de Gonzalez (2011) oferece a possibilidade de reinterpretar as fronteiras do campo de maneira que não apenas as categorias propostas por ela possam ser localizadas. Chego ao final deste trabalho com a conclusão de que, uma vez que as fronteiras de um mapa são reimaginadas, podemos questionar como e por quem esse mapa foi conceitualizado. Não obstante, é igualmente indispensável enxergar não apenas a produção de ausências e silenciamentos, mas também a produção de presenças e conhecimentos insurgentes, que possibilitam contra-arrestar verdades universais impostas sobre os con textos e experiências de sujeitos sociais e históricos nas lutas feministas e de outros campos políticos.

A história particular do feminismo no Brasil, por Cynthia Sarti: o caráter interclassista como explicação do movimento de mulheres durante os anos de 1970-1980

Desde a década de 1980, Cynthia Sarti optou por fazer uma análise do ressurgimento do movimento feminista organizado no Brasil através do contexto histórico da ditadura militar (1964-1984), do modelo de modernização excludente da década de 1970 e da desigualdade histórica que marca a sociedade brasileira. Igualmente interessante foi descobrir, nos trabalhos de Sarti, como sua participação na militância feminista ajudou a moldar sua pesquisa sobre mulheres trabalhadoras que viviam nas periferias de São Paulo. Um sentimento de desconfiança a um discurso feminista universal a levou ao desenvolvimento de trabalhos sobre as condições sociais de mulheres que escapavam de seu próprio grupo social de referência (6). As elaborações de Sarti cumpriram, assim, um papel importante ao indicar as diferentes posições que mulheres negras e brancas, das classes média e trabalhadora, ocupavam e como isso influenciou nas diferentes perspectivas políticas dentro dos movimentos de mulheres e feminista.

Um ponto importante que desenvolve a autora sobre o contexto brasileiro é o encontro entre modernização excludente e o que foi sendo constituído como "a questão das mulheres". A seu...

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