O que é uma Constituição?

AutorFerdinand Lassalle
Páginas25-95

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Senhores:
Fui convidado a realizar uma conferência1, para a qual escolhi um tema cuja importância não necessita de encarecimento, devido a sua grande atualidade. Debateremos sobre os problemas constitucionais de: “O que é uma Constituição?”.

Porém, antes de mais nada, quero adverti-los que minha conferência terá um caráter estritamente científico. Contudo, ou melhor, precisamente por si só, não haverá entre vocês um só leitor que não seja capaz de seguir e compreender do início ao fim o que será exposto aqui.

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Pois, a verdadeira ciência, senhores — nunca é demais lembrar — é apenas clareza de pensamento que, sem supostamente obter algum pré-estabelecido, vai derivando de si mesma, passo a passo, todas as suas consequências, impondo-se com a força coercitiva da inteligência a todo aquele que segue atentamente seu desenvolvimento.

Esta clareza de pensamento não reclama daqueles que escutam, nenhum gênero de premissas especiais.

Muito pelo contrário, não consistindo, como acabamos de dizer, em outra coisa além daquela ausência de qualquer premissa sobre a qual o pensamento se edifica, para iluminar de sua própria entranha todos os seus resultados, não só não necessita delas, mas também não as tolera. Apenas tolera e só exige uma coisa, que aqueles que escutam não tragam consigo pressupostos de nenhum gê-nero, nem prejuízos enraizados, mas que venham dispostos a colocar-se diante do tema, por muito que ao redor dele tenham falado

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ou discorrido, como se o investigassem pela primeira vez, como se ainda não soubessem de nada fixo a ele, desnudando-se, ao menos enquanto dure a nova investigação em relação a ele estivessem acostumados a dar por estabelecido.

I O que é uma Constituição?

Então, inicio minha conferência com esta pergunta: o que é uma Constituição? No que consiste a verdadeira essência de uma Constituição? Por todos os lados e todas as horas, de manhã, de tarde e de noite, estamos ouvindo falar de Constituição e de problemas constitucionais. Nos jornais, nos círculos, nas tavernas e restaurantes, neste tema inesgotável de todas as conversas.

E, no entanto, formulada em termos precisos esta pergunta: no que está a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição? Eu temo que entre todos aqueles que falam disso, não haja mais que poucos,

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muitos poucos que possam nos dar uma resposta satisfatória.

Muitos se veriam tentados, seguramente, a lançar mão, para contestarmos no volume em que está contida a legislação prussiana do ano de 1850, até chegar a ele com a Constituição do reino da Prússia.

Mas, isto não seria, obviamente, contestar o que lhe pergunto. Não basta apresentar a matéria concreta de uma determinada Constituição, a da Prússia ou a que seja, para dar por contestada a pergunta que lhes formulo: onde reside a essência, o conceito de uma Constituição, qualquer que for?

Se esta pergunta fosse feita a um jurista, seguramente me contestaria em termos parecidos a estes: “A Constituição é um pacto jurado entre o rei e o povo que estabelece os princípios básicos da legislação e do governo dentro de um país”. Ou em termos um pouco mais gerais, visto que também houve e há constituições republicanas: “A Constituição é a lei fundamental proclamada no país, na

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qual se lançam as bases para a organização do direito público desta nação”.

Mas todas estas definições jurídicas formais e outras parecidas que pudessem ocorrer, distam muito de dar satisfação à pergunta formulada por mim. Estas contestações, quaisquer que sejam, se limitam a descrever exteriormente como se formam as constituições e o que fazem, mas não nos dizem o que de fato é uma Constituição. Nos dão critérios, notas qualificativas para reconhecer exterior e juridicamente uma Constituição. Mas não nos dizem, nem ao menos, onde está o conceito de toda Constituição, a essência constitucional. Portanto, não servem, para nos orientarmos em relação a se uma determinada Constituição é, e porque, boa ou ruim, factível ou irrealizável, duradoura ou inconsistente, pois para isso seria necessário que começassem por definir o conceito da Constituição. O primeiro é saber em que consiste a verdadeira essência de uma Constituição e logo se verá se a Carta constitucional deter-minada e concreta que examinamos se aco-

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moda ou não a estas exigências substanciais. Porém, para isso não nos servem de nada estas definições jurídicas e formalistas que se aplicam igualmente a todo tipo de documentos assinados por uma nação ou por esta e seu rei, para proclamadas por constituições, qualquer que seja seu conteúdo, sem por motivo algum, penetrar nele. O conceito da Constituição – como veremos palpavelmente quando chegarmos a ele — é a fonte primária da qual se deriva toda a arte e a sabedoria constitucionais; uma vez estabelecido aquele conceito, se desprende dele espontaneamente e sem esforço algum.

Repito então, minha pergunta: O que é uma Constituição? Onde está a verdadeira essência, o verdadeiro conceito de uma Constituição?

No entanto, como não sabemos, pois é aqui que temos de indagá-lo, todos juntos, aplicando um método que seja conveniente pôr em prática sempre que se trata de esclarecer o conceito indaga. Este método, senho-

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res, é muito simples. Consiste simplesmente em comparar alguma coisa cujo conceito é investigado com outra semelhante a ela, esforçando-se para penetrar clara e nitidamente nas diferenças que separam uma da outra.

1. Lei e Constituição

Aplicando este método, me pergunto: em que se distinguem uma Constituição e uma lei?

Ambas, a lei a e Constituição, possuem, evidentemente, uma essência genérica comum. Uma Constituição, para reger, necessita da promulgação legislativa, isto é, que também tem que ser lei. Mas, não é uma lei como outra qualquer, uma simples lei: é algo mais.

Entre os dois conceitos não existe apenas afinidade; também há diferença. Esta diferença que faz com que a Constituição seja algo a mais do que uma simples lei, poderia ser comprovada com centenas de exemplos.

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O país, por exemplo, não protesta porque a cada etapa estão sendo promulgadas novas leis. Pelo contrário, todos nós sabemos que é necessário que todos os anos se promulgue um número mais ou menos grande de novas leis. Contudo, não se pode ditar uma lei nova sem que se altere a situação legislativa vigente no momento de promulgar-se, pois se a nova lei não introduzisse nenhuma mudança no estatuto legal vigente, seria absolutamente supérflua e não teria o porquê promulgá-la. Mas não protestamos para que as leis se reformem. Muito pelo contrário, nós vemos nestas mudanças, em geral, a missão normal dos organismos governantes. Porém, em relação à Constituição, nós protestamos e gritamos: Deixe estar a Constituição! De onde vem esta diferença? Esta diferença é tão inegável que até existem constituições, na qual se dispõe taxativamente que a Constituição não poderá ser alterada de forma alguma; em outras, se prescreve que, para sua reforma, não bastará a simples maioria, mas que deverão ser reunidas dois terços das

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partes dos votos do Parlamento; e há algumas em que a reforma constitucional não é da competência dos órgãos legislativos, nem associados ao poder executivo, mas para acometê-la, deverá ser convocada, extra, ad hoc, expressa e exclusivamente para este fim, uma nova assembleia legislativa que decida sobre a oportunidade ou conveniência da transformação.

Em todos estes fatos se revela que, no espírito unânime dos povos, todavia, uma Constituição deve ser algo muito mais sagrado, mais firme e mais incomovível que uma lei comum.

Portanto, volto a minha pergunta anterior: em que se distingue uma Constituição de uma simples lei? A esta pergunta, nos será contestada, na grande maioria dos casos: a Constituição não é uma lei como outra qualquer, mas sim a lei fundamental do país. É possível, senhores, que nesta contestação vá implícita, mesmo que de modo obscuro, a verdade que se busca. No entanto, a respos-

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ta, assim formulada, de uma maneira muito confusa não pode nos satisfazer. Pois, surge imediatamente, substituindo a outra, esta interrogação: e em que se distingue uma lei da lei fundamental? Como se pode ver, seguimos onde estávamos. Não fizemos mais do que ganhar um nome, uma palavra nova, o termo de “lei fundamental” que de nada nos serve enquanto não sabemos dizer qual é, repito, a diferença entre uma lei fundamental e outra lei qualquer.

Portanto, tentamos aprofundar-nos um pouco mais no assunto, indagando que ideias ou que noções são associadas a este nome de “lei fundamental”; ou, em outras palavras, como teria que distinguir entre uma lei fundamental e outra lei qualquer para que a primeira possa justificar o nome designado a ela.

Para isso será necessário:

1º Que a lei fundamental seja uma lei onde mais que as leves correntes, como já seu próprio predicado de “fundamental” indica.

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2º Que constitua — pois de outra forma não mereceria ser chamada de fundamental — o verdadeiro fundamento das outras leis; isto é, que a lei fundamental realmente pretende ser credora a este nome, deverá...

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