Uma Contribuição ao Estudo da Assistência Social à Pessoa com Deficiência: Trabalho e Eficiência no Modo de Produção Capitalista

AutorFlávio Roberto Batista
Páginas28-34

Page 28

Flávio Roberto Batista 1

1. Introdução

Desde 1988, com a edição da nova Constituição brasileira, a assistência social encontra-se, por força de seu art. 194, organicamente articulada à saúde e à previdência social para formar o sistema de seguridade social. Esta, por sua vez, revela-se, a partir da própria organização do texto constitucional, como a mais importante dimensão daquilo que o constituinte denominou ordem social, não definida no texto, mas identificada no art. 193 a partir de seus fundamentos: "A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais".

Decorre daí que a assistência social, como parte integrante da seguridade social e, por conseguinte, da ordem social, também deve, inescapavelmente, observar a determinação de que tenha por base o primado do trabalho. Essa informação é bastante contraintuitiva, já que o destinatário mais corriqueiro da assistência social é justamente aquele que esteja por qualquer motivo impossibilitado de trabalhar, ou de qualquer modo excluído do mercado de trabalho. Apesar disso, ela transparece em diversas passagens do próprio texto constitucional, que revelam, inclusive, o significado de tomar por base o primado do trabalho. Confira-se, a respeito, o texto do art. 203 da Constituição:

Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos:

I — a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice;

II — o amparo às crianças e adolescentes carentes;

III — a promoção da integração ao mercado de trabalho;

IV — a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária;

V — a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei (destaques inexistentes no original).

Perceba-se que os dois primeiros objetivos confirmam a intuição mais corriqueira perante a assistência social, ao enumerar grupos sociais que, imediatamente tomados, estão completamente alheios ao mundo do trabalho. Por outro lado, os dois objetivos seguintes deixam clara, em uma previsão geral e outra especificamente orientada às pessoas com deficiência, a disposição de integrar os destinatários da assistência social ao mercado de trabalho e, consequentemente, aos ditames do modo de produção capitalista. O inciso IV supracitado inclusive sugere uma vinculação entre a habilitação e a reabilitação das pessoas com deficiência para o mercado de trabalho e sua integração à vida comunitária, demonstrando a obediência do sistema de assistência social ao comando constitucional que determina que tenha por base o primado do trabalho.

Do que se expós até aqui fica evidenciada a necessidade, para uma boa leitura do sistema de assistência social, particularmente da assistência social à pessoa com deficiência, de uma profunda compreensão sobre o significado da submissão do sistema de assistência social aos ditames do primado do trabalho. Para atingir tal compreensão, é imperioso fixar o próprio

Page 29

entendimento da expressão primado do trabalho e, principalmente, as consequências de sua adoção no texto constitucional; percorrer a discussão sobre o significado do par de contrários eficiência/deficiência, notadamente a partir de seu emprego no modo de produção capitalista; examinar as possibilidades de inclusão da pessoa com deficiência no mercado de trabalho e na vida comunitária; e, por fim, encaminhando-se para um ponto de vista mais prático, examinar a transformação do conceito de deficiência veiculado pela Lei n. 8.742/93 a partir de uma comparação entre sua redação original e o texto vigente depois da incorporação legislativa das disposições da Convenção de Nova Iorque sobre os direitos das pessoas com deficiência, empreendida, nesse particular, pelas Leis ns. 12.435/11 e 12.470/11. Estes são, sucintamente, os objetivos deste ensaio e o caminho planejado para atingi-los. O texto foi planejado como uma única linha de raciocínio. Sua divisão em seções presta-se apenas a facilitar a organização da leitura.

2. O significado do primado do trabalho como base da ordem social

Como já referido, a ideia de primado do trabalho aparece como base da ordem social por força do art. 193 da Constituição. Também há referências ao mesmo conceito no texto constitucional em seu art. 1º, IV, que estabelece que são fundamentos da República "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa", e ainda no caput do art. 170, o qual dispõe que a ordem económica é "fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa". Assim sendo, é possível afirmar que, no Brasil, por força de sua Constituição, a ordem política — a República —, a ordem económica e a ordem social têm como fundamento o trabalho, que aparece ora sob a forma de primado do trabalho, ora sob sua forma variante de valor social do trabalho. O texto constitucional, entretanto, em nenhum momento esclarece o significado de todo esse apreço pelo trabalho.

Fica claro da leitura dos dispositivos mencionados, principalmente tendo em vista sua localização em partes do texto mais abstratas e conceituais, destinadas a iluminar a leitura dos dispositivos mais concretos, que veiculam ordens específicas, que o conceito de primado do trabalho é, por assim dizer, ex-trajurídico, isto é, dá conta de uma realidade anterior e externa ao direito e que, em razão de sua positivação constitucional, desencadeia consequências jurídicas. Com o prosseguimento do raciocínio ficará claro que, na verdade, o direito não poderia deixar de tomar o primado do trabalho como fundamento das ordens política, social e económica. Entenda-se bem: a realidade extrajurídica do primado do trabalho desencadearia consequências sobre o direito ainda que o constituinte nada tivesse disposto a respeito. É o que se pretende tratar nesta seção.

É evidente que afirmar que o primado do trabalho desencadeia consequências sobre o direito não significa que a partir de sua compreensão se possam derivar soluções técnico-jurídicas para problemas práticos do cotidiano da operação do direito. A ressalva é importante porque certa corrente de autores que se debruçam sobre o fenómeno jurídico, particularmente no campo dos direitos humanos, procura, de forma até bastante ingênua, derivar diretamente a positivação de determinados direitos fundamentais a partir do primado do trabalho, chegando a invocar, para tanto, o materialismo histórico-dialético como método.

Deve-se destacar que o uso do materialismo histórico--dialético, tomado como chave de compreensão do direito, somente pode ter objetivos científicos e críticos, jamais almejando qualquer tipo de construção propositiva dogmática. Em outros termos, os primeiros parágrafos desta seção pretendem transmitir a ideia de que a eleição do materialismo histórico--dialético como método neste ensaio significa que o primado do trabalho será investigado a partir de uma compreensão crítica do sistema jurídico de assistência social, e não de um ponto de vista dogmático. Ainda assim, a ciência do direito materialista histórico-dialética não pode descurar da dogmática jurídica, devendo, ao contrário, constituir-se em crítica da dogmática jurídica, à semelhança da crítica da economia política empreendida pelo fundador deste método, Karl Marx, conforme foi proposto por Eugeny Pasukanis.

É por essa razão que, sem temor de qualquer incoerência, este ensaio será encerrado pelo tratamento crítico das diversas redações da Lei n. 8.742/93. Perceba-se a diferença gritante entre formular, a partir de ponderações científicas tendo como método o materialismo histórico-dialético, uma crítica da dogmática jurídica e, de outro lado, derivar soluções técnicas dogmáticas das mesmas ponderações científicas.

Esclarecidas as questões metodológicas, é indispensável ingressar em terreno bastante pantanoso, mas, justamente por isso, pleno de possibilidades científicas: o conceito de trabalho.

Não é difícil encontrar o tratamento do conceito de trabalho na literatura jurídica. Praticamente todos os manuais e cursos de direito do trabalho esforçam-se por defini-lo. É raro, entretanto, encontrar autores que forneçam uma definição de trabalho. Com efeito, dois caracteres são bastante comuns neste tratamento: a observação de que o conceito de trabalho varia conforme seja...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT