Uma crítica ao principialismo

AutorDaniel Ortiz Matos
Ocupação do AutorEstudante de graduação do curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia ? UESB, campus de Vitória da Conquista-BA
Páginas133-151
umA crÍticA Ao principiAlismo
A criticAl to principlismo
Daniel Ortiz Matos1
Trata-se de uma leitura analítica e crítica do principialismo. Justifica-
se pela discussão à atual postura da doutrina e da jurisprudência pá-
trias, as quais supervalorizam os princípios jurídicos como se estes
fossem a redenção de um Direito encarcerado nas grades positivis-
tas. Tal comportamento tem manifestado certos exageros, como uma
frenética criação, quase mercadológica, de novos princípios; uma
inferiorização das regras; e uma atividade jurisdicional que beira a
discricionariedade, não se adequando, por isso, ao paradigma do Es-
tado Democrático de Direito. Objetiva-se abordar alguns problemas
teóricos que fundamentam esta concepção, no intuito não de negar a
importância dos princípios enquanto normas jurídicas, mas de trazer
questionamentos relevantes em um contexto em que esta temática se
expressa sedimentada no discurso jurídico brasileiro.
Palavras-chave: Regras, Princípios, Principialismo, Discricionarie-
dade, Democracia.
1 Introdução
Este trabalho tem por objeto uma leitura analítica e crítica à atual pos-
tura, quase majoritária, da doutrina e jurisprudência pátrias, no que tange à
1 Estudante de graduação do curso de Direito da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
– UESB, campus de Vitória da Conquista-BA.
sualizacv.jsp?id=K4433473Y8>.
Quando se inicia uma nova caminhada juntamente com as incertezas do porvir, geralmente,
aparecem pessoas que compartilham um pouco de si mesmas para que outros encontrem o
seu próprio itinerário. Assim, como um neófito na pesquisa jurídica, devo registrar os meus
agradecimentos aos professores Lenio Luiz Streck, Rafael Tomaz de Oliveira, Raimundo Lo-
pes Matos, Ruy Hermann Araújo Medeiros e à minha irmã Junia Cristina Ortiz Matos, por se
fazerem presentes na construção deste trabalho e em minha formação acadêmica.
Resumo
Hermeneutica_rev4.indd 133 29/08/2013 16:31:25
134 Hermenêutica
supervalorização dos princípios jurídicos, enquanto superação a uma atividade
jurisdicional fechada, contida, mecânica, própria do paradigma positivista.
Quanto ao objetivo, pretende-se demonstrar alguns equívocos deste
comportamento, tais como: uma concepção de inferioridade e temor em re-
lação às regras, reflexo de distinções questionáveis entre princípios e regras e
de um ideal pós-positivista extremado; a criação desordenada, quase merca-
dológica, de novos princípios, tanto da doutrina como da jurisprudência, e,
por fim, uma atividade jurisdicional principialista que se manifesta ilimitada,
e, por isso, fora de um contexto democrático.
Nas últimas décadas, na realidade jurídica brasileira, os princípios assu-
miram grande relevância no que venha ser uma ortodoxia e uma ortopraxia do
Direito. Em congressos, palestras, debates, nos mais variados espaços de (re)
produção do Direito, esta temática tem sido (re)discutida; invariavelmente,
todavia, na maioria dessas discussões, ecoa apenas uma voz: aquela que exalta a
cosmovisão principialista, sem demonstrar os equívocos por ela mesma gera-
dos. Assim, o trabalho se justifica por trazer à tona algumas incoerências dessa
postura, em meio a uma realidade de sabida e ampla aceitação.
Esta produção repousa no imprescindível questionamento entre a reali-
dade que é e aquela que deveria ser, entendendo o dissenso como uma signi-
ficativa ferramenta na atividade de (re)pensar o Direito.
Em termos teórico-metodológicos, nortear-se-á pelo raciocínio dedu-
tivo: do geral para o particular. Será feita, de início, uma abordagem históri-
ca, colocando, em linhas gerais, o desenvolvimento de uma teoria positivista
à atual perspectiva pós-positivista, sobretudo no que alude aos princípios.
Após essa abordagem, será feita uma crítica à superpopulação principio-
lógica e a uma postura de inferioridade e temor à que as regras têm sido alvo.
Por fim, será questionada a atividade jurisdicional principialista que,
sob o fundamento dos princípios, manifesta-se sem limites, o que não se coa-
duna com o paradigma do Estado Democrático de Direito.
2 Do positivismo ao pós-positivismo: a ascensão dos princí-
pios ao status de norma jurídica
Foi na modernidade que o conhecimento científico tornou-se aquele
que seria capaz de levar a humanidade para um período de paz e prosperidade.
Hermeneutica_rev4.indd 134 29/08/2013 16:31:25
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 135
O status de ciência tornou-se, portanto, uma espécie de autoridade e poder.
Tudo isso, por se tornar a voz legitimada para indicar os caminhos a serem
seguidos na/pela sociedade.
Destarte, as chamadas ciências humanas, em geral, procuraram se ade-
quar, a fim de assumir os requisitos basilares do paradigma científico domi-
nante. Almejava-se um conhecimento rigoroso, experimentado e comprova-
do, lógico, com objeto e métodos bem definidos.2
O Direito, para ser considerado como ciência, teve que passar por uma
série de mudanças estruturais para adequar-se a estes pressupostos, próprios
das ciências naturais e exatas. Neste processo, destaca-se a figura de um dos
maiores juristas do séc. XX, Hans Kelsen, que, por intermédio de sua Teoria
Pura do Direito, dentre outros objetivos, procurou demonstrar a cientifici-
dade do conhecimento jurídico.
Esta pureza pode ser entendida como “uma leitura específica da ‘ju-
ridicidade’, sem interferências de outros campos do conhecimento que não
agem na precisa delimitação do Direito: a norma jurídica”3. Assim, o Direi-
to, em tese, obtém a sua autonomia, com o preciso recorte do seu objeto de
estudo, qual seja, a norma.
O jurista compreendia a ciência como
o conhecimento que “explica”, que apresenta algum “controle” e que
torna possível a “predição; portanto, um conhecimento consequente
cujo mérito é de possibilitar afirmações em certo sentido ‘seguras’
com respeito às ocorrências futuras. O modelo que Kelsen tem em
mente, como referência, é o modelo das ‘ciências da natureza’.4
Esse caráter de segurança e controle, quanto às ocorrências vindouras,
teve grande impacto na teoria da decisão. Afinal, como prever se a decisão
2 Assim, conforme a operacionalidade de um Estado Legal de Direito, bastavam à validade
do Direito argumentos com base em critérios formais e intrassistêmicos de conformidade
normativa. “As diretrizes estatalista-formais (e liberais) do modelo legalista de Estado tiveram
o desenvolvimento de sua conformação assentado sobre a doutrina administrativa alemã que
postulava, dentre outros princípios, a legalidade administrativa, os direitos públicos subjetivos
e a tematização da justiça na administração”. DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discur-
so e correção normativa do direito: Uma aproximação à Metodologia Discursiva do
Direito. 2 ed. Rev. São Paulo: Landy, 2004. p. 43.
3 SGARBI, Adrian. Clássicos da teoria do direito. Lumens Juris: Rio de Janeiro, 2006. p. 33.
4 SGARBI, op. cit. p. 34.
Hermeneutica_rev4.indd 135 29/08/2013 16:31:25
136 Hermenêutica
judicial guardaria, ou não, uma logicidade e sistematicidade com todo arca-
bouço científico do direito?
No sentido de responder a esta indagação, afirmavam que a atividade
jurisdicional encontrava seu fundamento na aplicação da lei, do Direito ma-
terial, ao caso concreto. Nesta esteira, tem-se que, para Montesquieu, a ju-
risdição era um poder “nulo e invisível”, pois o juiz era “a boca que declarava
a vontade da lei”5. O método utilizado para encontrar a resposta judicial era o
subsuntivo, em que o julgador efetuava a subsunção do fato social, premissa
menor, à norma, premissa maior, chegando à conclusão.
Assim, num processo mecânico, com reduzido espaço para a criação,
a decisão do juiz era prolatada, mantendo-se logicamente correta (coerência
interna) e passível de previsão com certo grau de certeza (previsibilidade).
Nestes termos, desenharam-se os contornos do positivismo jurídico
que para Alf Ross era “uma atitude ou uma abordagem dos problemas da
filosofia e da teoria do Direito, fundada nos princípios de uma filosofia em-
pirista, antímetafísica”6. Em linhas gerais, as principais características do po-
sitivismo podem ser assim elencadas:
Teoria do Direito segundo a qual: a. não há Direito natural e só o
Direito positivo existe ( AA. Ross); b. o Direito é um conjunto de re-
gras, que são mandamentos, um produto da vontade humana ou da
autoridade (“auctoritas non veritas facit jus”); c. esses mandamentos
emanam do Soberano ou do Estado (Austin); d. eles são associados a
sanções, que garantem a aplicação do Direito pela força; e. eles for-
mam um sistema lógico, fechado e coerente; f. a atividade dos juízes
é uma atividade lógica porque toda a decisão pode ser deduzida das
regras previamente emitidas pelo Soberano, sem referência aos fins
sociais ou às regras morais.7
Diante do exposto, é lógica a conclusão do papel subsidiário dos prin-
cípios dentro do paradigma positivista, pois, dada sua elevada generalidade
5 “(...) governos republicanos são da natureza da constituição que os juízes observem lite-
ralmente a lei”. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O
espírito das leis. ed. 2ª Brasília: UnB, 1995. p. 57. Com efeito, essa sujeição dos juízes à
literalidade da norma é reflexo de um rígido sistema de separação dos poderes.
6 ROSS apud ARNAUD, Arnaud-Jean. Dicionário enciclopédico de teoria e de sociolo-
gia do direito. Direção de André-Jean Arnaud.[ ET al.]; tradução de: Patrice Charles, F. X.
Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999. p. 607.
7 ARNAUD, op. cit. p. 607.
Hermeneutica_rev4.indd 136 29/08/2013 16:31:25
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 137
e “abertura” não permitiam a necessária previsibilidade e certeza, ou seja, a
segurança que se buscava para a prestação jurisdicional.
Deste modo, a utilização dos princípios estava circunscrita a uma si-
tuação de lacuna normativa, como dispõe o art. 4º da Lei de Introdução às
Normas do Direito Brasileiro: “quando a lei for omissa o juiz decidirá o caso
de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”.8
Como todo paradigma científico, o positivismo jurídico começou a
ser questionado, abrindo espaço para o que se denomina pós-positivismo.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que um marco para a derrocada
positivista foi o julgamento de Nuremberg, 1945.
A decadência do positivismo é emblematicamente associada à der-
rota do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha. Esses movi-
mentos políticos e militares ascenderam ao poder dentro do quadro
de legalidade vigente e promoveram a barbárie em nome da lei. Os
principais acusados de Nuremberg invocaram o cumprimento da lei
e a obediência a ordens emanadas da autoridade competente. Ao fim
da Segunda Guerra Mundial, a ideia de um ordenamento jurídico
indiferente a valores éticos e da lei com uma estrutura meramente
formal, uma embalagem para qualquer produto, já não tinha mais
aceitação no pensamento esclarecido.9
Destarte, o estado de exceção e de banalização do terror, proporcio-
nados pelo regime nazi-facista, trouxeram à tona as incongruências deste
paradigma. O resultado foi uma busca pela superação do ideário positivista,
principalmente reaproximando o Direito da Ética.
A decisão judicial não mais poderia estar engessada em uma atividade
mecanicista de aplicação da “vontade” da lei ao caso concreto, tampouco,
aberta à discricionariedade.10
de 1942.
9 BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo Direito
Constitucional Brasileiro (Pós-Modernidade, teoria crítica e pós-positivismo) in A
nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais, e relações
privadas. Organizador Luís Roberto Barroso. 2ª ed. revista e atualizada. Rio de Janeiro: Re-
novar, 2006. p. 26.
10 Junto a isso, a reclama social pela efetivação dos direitos fundamentais como condição de legiti-
midade do sistema político fundado no Estado Democrático de Direito, numa releitura substancial
das normas jurídicas, o que gerou uma nova crítica aos preceitos jurídicos, como a própria noção
de direitos fundamentais. “O constitucionalismo de conteúdos, constitucionalismo de direitos, >
Hermeneutica_rev4.indd 137 29/08/2013 16:31:25
138 Hermenêutica
Neste período chamado de pós-postivista, dentro das várias reflexões,
mudanças no modo de pensar e fazer o Direito, encontra-se a supervaloriza-
ção dos princípios como a redenção de uma hermenêutica fechada, postura
denominada, por fins metodológicos, principialismo.
Dessa maneira, o que se assistiu, desde o período posterior à Segunda
Guerra Mundial até a contemporaneidade, foi uma ascensão do papel dos
princípios nos ordenamentos jurídicos.
Como já exposto, inicialmente, os princípios apresentavam valor subsi-
diáro, sendo acessados somente em casos de obscuridade da lei. Depois, assumi-
ram o mesmo nível de vinculação das regras, tornando-se espécie normativa.
A novidade das últimas décadas não está, propriamente, na existência
de princípios e no seu eventual reconhecimento pela ordem jurídica.
Os princípios, vindo dos textos religiosos, filosóficos e jusnaturalistas,
de longa data permeiam a realidade e o imaginário do Direito, de for-
ma direta ou indireta. (...) O que há de singular na dogmática jurídica
da quadra histórica atual é o reconhecimento de sua normatividade.11
Por derradeiro, hodiernamente, observa-se que os princípios são colo-
cados no cume do sistema jurídico, adquirindo o maior realce, sendo parte do
senso-comum do direito pátrio, declarações como: “em um conflito normati-
vo entre uma regra e um princípio, este último deverá sempre prevalecer”.
Assim sendo, a postura principialista é repercutida e reproduzida de
maneira quase uníssona, tanto pela jurisprudência quanto pela doutrina, sal-
vo exceções. No atual momento de aceitação osmótica, relevante se faz o
questionamento acerca dos influxos e refluxos desta perspectiva.
3 Quem tem medo das regras? A superpopulação dos princípios
Neste contexto de supervalorização dos princípios, alguns axiomas
passaram a compor a ideologia jurídica, sendo que muitos destes não resis-
tem a um exame percuciente; mesmo assim, contudo, são reproduzidos.
resultante desta dinamicidade e complexidade de relações estabelecidas pela relação entre di-
reito e moral, produz uma mudança de qualidade nas condições de validez das leis. Esta (lei)
já não é assimilável, redutível, à mera existência das mesmas; não é a consequência, simples-
mente, do seguimento dos processos formais de elaboração parlamentar, senão somente o
fruto da coerência com aqueles imperativos de ordem substancial”. DUARTE, op. cit. p. 59.
11 BARROSO, op. cit. p. 28-29.
>
Hermeneutica_rev4.indd 138 29/08/2013 16:31:25
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 139
No que tange às distinções entre princípios e regras, tem-se que mui-
tas dessas reforçam uma perspectiva de supremacia dos princípios, sendo
que uma dicotomização12 radical figura-se incorreta, levando em conside-
ração que, por serem espécies normativas, guardam diversas semelhanças.
Dentre estas distinções, aqui, será somente discutida aquela referente ao
modo final de aplicação.13
A doutrina afirma que as regras aplicam-se do modo tudo ou nada
(all-or-nothing) (alles-oder-nichts), ou seja, sem a possibilidade de temperamen-
tos. Sobre este ponto, assim assevera Ronald Dworkin:14
A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natu-
reza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões
12 Domina no Brasil a ideia de que os princípios são espécies normativas que têm estrutura
diversa das regras. Sendo assim, a aplicação de cada uma exigiria um método específico. Deste
modo, para as regras utiliza-se a subsunção. Já os princípios reclamam uma metodologia mais
flexível, que seria a ponderação ou balanceamento. Robert Alexy, em Teoria dos Direitos
Fundamentais, afirma que as normas de direitos fundamentais apresentam em sua estrutura
semântica uma distinção: podem ser regras, com o dever-ser restrito ou princípios, com um
dever-ser ampliado. Importante crítica à distinção estrutural entre regras e princípios é for-
mulada pelo prof. Lenio Luiz Streck. Este afirma que este tipo de distinção somente é possível
de posse de um conceito prévio de norma, o que não poderia acontecer se esta representa o
produto da interpretação de um texto. Assim, a norma é resultado da interpretação de uma
regra a partir da materialidade principiológica, pois para cada regra tem-se um princípio que
a fundamenta. Deste modo, a norma manifesta-se por intermédio de uma interpretação de
princípios e regras na aplicattio. A norma não preexiste ao caso concreto, esta somente surgirá
na interpretação de princípios e regras que determinarão a obrigação jurídica a ser cumprida
pelas partes. Destarte, afirma o autor: “(...) os princípios e as regras são como condições de
possibilidade da normatividade e não o contrário” (STRECK,2009, p. 504). Pelo exposto, o
professsor defende uma diferença entre princípios e regras, e não uma distinção/cisão. As
regras são modalidades objetivas de solução de conflitos, e determinam o que deve ou não
ser feito. Já os princípios autorizaram esta determinação, fazendo com que o caso decidido
tenha autoridade proveniente do reconhecimento de sua legitimidade. As regras tidas como
mandados de definição tornam-se, portanto, porosas, pois são atravessadas pela ontologicida-
de dos princípios. Para maiores aprofundamentos da crítica ao panpricipiologismo indica-se
a leitura da obra Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Dircursivas, Da
Possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito, de autoria do professor Lenio
Streck, mas especificamente o posfácio acrescentado a partir da 3ª edição.
13 Outros critérios apresentam-se questionáveis; contudo, não serão aqui abordados por não
ser o objetivo principal deste trabalho desconstruir as diversas distinções formuladas pela
doutrina. Para a leitura da crítica a outros critérios de distinção, indica-se a obra do prof.
Humberto Ávila, Teoria dos Princípios.
14 DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira, ed. 2ª. São Paulo:
Martins Fontes, 2007. p. 39.
Hermeneutica_rev4.indd 139 29/08/2013 16:31:25
140 Hermenêutica
particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias especí-
ficas, mas distinguem-se quanto à natureza do comando que ofere-
cem. As regras são aplicáveis à maneira tudo-ou-nada. Dado os fatos
que a regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta
que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada
contribui para a decisão.
Em contrapartida, os princípios manifestam-se como mandados de oti-
mização, que podem, por isso, ser aplicados em graus distintos, dependendo
das realidades fáticas e jurídicas. Nesse trilhar afirma Robert Alexy:15
Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são
caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo
fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente
das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas.
E, reforçando uma concepção fechada de aplicação das regras, conti-
nua o mesmo autor, afirmando que:16
As regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas.
Se uma regra vale, então, deve se fazer exatamente aquilo que ela exi-
ge; nem mais, nem menos. Regras contêm, portanto, determinações
no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível.
Diante desta distinção, indaga-se se as regras são de fato aplicadas de
modo tudo-ou-nada, independentemente da realidade concreta, não com-
portando nenhuma adequação ou mesmo se é possível a sua não aplicação,
sem, contudo, perder sua validade.
Quando se afirma que aplicação das regras é estrita, tudo-ou-nada,
oito-ou-oitenta, corrobora-se uma perspectiva positivista de que o juiz está
encarcerado nas lindes regramentais e por isso apenas aplica a lei; afinal, dura
lex sed lex .Contudo, mesmo as regras apresentando maior determinabilida-
de, devido à sua expressão hipotético-condicional, estas poderão sofrer tem-
peramentos ante a sua entrada no mundo da vida.
A adequação ou temperamento quanto às consequências da aplica-
ção de uma regra podem ser visualizados por intermédio de uma simples
15 ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.p.90.
16 ALEXY, op. cit. p. 91.
Hermeneutica_rev4.indd 140 29/08/2013 16:31:25
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 141
analogia que demonstra o caráter genérico da regra e o necessário juízo de
equidade. Dada a generalidade de casos que a regra pretende abarcar, em sua
formulação, abstrai-se o que há de comum em vários casos semelhantes,
uma espécie de média. A regra seria como uma roupa de tamanho único
criada com as medidas do chamado homem médio. Todavia, nem todas as
pessoas encaixam-se neste padrão, o que inevitavelmente geraria incongru-
ências, como uma roupa deveras apertada para alguém que possua avantajada
conjuntura somática.
Deste modo, no processo de inserção da regra no mundo da vida, deve
o juiz avaliar a realidade concreta, para que tenha uma aplicação equânime,
sendo possível o temperamento para uma prestação jurisdicional que se con-
forme à casuística enfrentada. Logo, nem sempre será tudo-ou-nada, poderá
haver graus distintos na aplicatio, mitigando-se o caráter absoluto das regras.
Isto porque entre o “oito” e o”oitenta” encontram-se 72 números. E, sendo
assim, limitar a jurisdição a tão somente dois números não seria adequado à
realidade dinâmica da vida, na qual o Direito está inserido.
Noutro passo, questiona-se o fato da possibilidade de uma regra não
ser aplicada, sem, contudo, perder sua validade. Isto poderá ocorrer quando
a obrigação, tida como absoluta, for transposta por razões contrárias ou não
previstas por ela, ou por outra regra.
Demonstrando esta afirmação, o prof. Humberto Ávila, em seu livro
Teoria dos Princípios17, traz alguns exemplos, dentre estes, um julgado do Su-
premo Tribunal Federal em que não foram aplicadas as consequências do
descumprimento do disposto no inc. II do art. 37, da Constituição Federal,
todavia, sem que este dispositivo constitucional perdesse a sua validade.
No caso em comento, em sede de Habeas Corpus, questionava-se um
ato da prefeita de um município, por contratar um cidadão como gari, por
nove meses, sem o devido concurso público. Esta admissão contraria a nor-
ma constitucional citada e poderia gerar a sua responsabilização por ato de
improbidade administrativa.
O STF entendeu que não seria necessário aplicar as consequências
jurídicas devidas ao descumprimento à regra constitucional, pois, a “falta de
17 ÁVILA, Humberto.Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos princípios
jurídicos. Ed. 8° amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008. p. 45-46.
Hermeneutica_rev4.indd 141 29/08/2013 16:31:25
142 Hermenêutica
adoção do comportamento por ela previsto, não comprometia a promoção
do fim que a justificava (proteção do patrimônio público)”18.
Assim, uma regra válida na qual incidia a hipótese comportamental
por ela descrita não condicionou absolutamente o implemento de uma con-
sequência, sem contudo perder sua validade.
Observa-se o limite desta distinção que se refere ao modo final de
aplicação, já que as regras também poderão ser aplicadas em graus diversos,
dada a realidade concreta, e que, em alguns casos, mesmo sendo válida, não
será aplicada a consequência do seu descumprimento, mantendo a sua vali-
dade. Seguindo a lição de Ávila conclui-se que19:
A distinção entre princípios e regras não pode ser baseada no su-
posto método tudo ou nada de aplicação das regras, pois também elas
precisam, para que sejam implementadas suas consequências, de
um processo prévio – e, por vezes, longo e complexo como o dos
princípios – de interpretação que demonstre quais as consequências
que serão implementadas. E, ainda assim, só a aplicação diante do
caso concreto é que irá corroborar as hipóteses anteriormente havi-
das como automáticas. Nesse sentido, após a interpretação diante de
circunstâncias específicas (ato de aplicação), tanto as regras como os
princípios, em vez de se estremarem, se aproximam.
Outra máxima presente no contexto ora questionado é aquela decla-
ração que “em um conflito normativo entre uma regra e um princípio, este
último deverá sempre prevalecer”. Argumenta-se que o alicerce para esta
perspectiva encontra-se no caráter de fundamentalidade que os princípios
assumem na ordem jurídica, sendo, portanto, uma espécie normativa supe-
rior e que por isso deverá prevalecer, numa crença de que a decisão judicial
sob seu escopo será necessariamente melhor.
A premissa apresentada manifesta certa confusão entre a interpretação e
seu objeto, regra ou princípio. É preciso que se entenda que uma resposta judi-
cial correta poderá repousar tanto em uma como em outra espécie normativa.
Importante ressaltar que regras como princípios são manifestados por
intermédio de enunciados linguísticos, textos, e que, como tais, seu sentido
será resultado de um processo interpretativo.
18 ÁVILA, op. cit. p. 46.
19 ÁVILA, op. cit. p. 48.
Hermeneutica_rev4.indd 142 29/08/2013 16:31:25
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 143
O texto normativo é a manifestação do Poder Legislativo, inclui-se
também a jurisprudência e a doutrina que criam novos princípios. É um
dado, e não possui sentido unívoco. A chamada mens legis precisa ser inter-
pretada, levando em consideração todo o sistema jurídico, para que se en-
contre a norma jurídica.
Conclui-se, portanto, que o enunciado normativo é a referência ba-
silar para a construção da norma, que será fruto de um processo hermenêu-
tico. “A norma encontra-se em estado de potência involucrada no texto, e o
intérprete a desnuda (...)20”.
Contudo, observa-se que os princípios apresentam baixa densidade nor-
mativa, ou seja, várias normas podem ser de si extraídas, isto é, devido ao fato
de que, diferentemente das regras, não há no seu enunciado uma indicação de
um comportamento e um resultado específico a serem seguidos.
Todavia, esta “vagueza”, ou esta maior “abertura”, não implica neces-
sariamente uma prestação jurisdicional coerente; ao revés, poderá ser funda-
mento de uma decisão discricionária.
Ademais, na prática, dificilmente é visto um conflito normativo entre
uma regra e um princípio, pois aquela tem o seu fundamento repousado em
outro princípio. Deste modo, o suposto conflito, em última análise, sempre
ocorrerá entre princípios.
Assim, percebe-se que os princípios, na atualidade, não apenas foram
elevados à categoria de norma jurídica, mas também assumiram caráter de re-
levância superior às regras. Esta perspectiva imersa num contexto pós-positi-
vista apresenta-se em contraposição a uma hegemonia das regras vivenciada
sob a égide do positivismo. Entretanto, tal postura não apenas manifesta incoerên-
cias do ponto de vista teorético, como se buscou levantar anteriormente, mas
também na prática do Direito, como será doravante exposto.
Paira uma ideia na cosmovisão jurídica brasileira contemporânea em que a
legitimidade da decisão judicial parece carecer da utilização dos princípios como
fundamento da sentença. Quando não se encontra um princípio que abarque
determinado caso, chega-se até mesmo a criar um novo, judicialmente.
No campo doutrinário, em medida aproximada, nos mais diversos ra-
mos do Direito, é apresentada uma “infinidade crescente” de princípios, que
até mesmo dificultam o processo de aprendizagem.
20 GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplicação do Direito.
4ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros: 2006. p. 32.
Hermeneutica_rev4.indd 143 29/08/2013 16:31:26
144 Hermenêutica
Isto é perceptível nas salas de aula das universidades brasileiras. Os
professores, invariavelmente, iniciam os assuntos com um vasto rol de prin-
cípios que, por vezes, são fundamentados em subprincípios, e que, em últi-
ma instância (pelo andar da carruagem), encontrarão embasamento em mi-
crotúbulos principiológicos ou coisa parecida.
Atualmente, é perceptível uma superpopulação principiológica; en-
contra-se princípio para quase tudo. Não será admirável, inusitado ou es-
pantoso que, brevemente, encontrem-se nas prateleiras das livrarias jurídi-
cas, se ainda não existem, livros como dicionários de princípios, ou best-sellers
como, “Os dozes princípios para uma jurisdição de sucesso”, figurando no
topo da lista dos mais vendidos do The New York Times.
Ademais, por vezes, a criação em demasia de novos princípios21, por
parte da doutrina, apresenta-se com pouco rigor científico, estando mais
motivados por fins comerciais de atualização.
21 Nesta criação desordenada de novos princípios, tem-se, ainda, o problema gerado na confusão
referente ao âmbito de incidência no qual se articula o conceito de princípio. Na obra Decisão
Judicial e o Conceito de Princípio: a hermeneûtica e a (in)determinação do direito) o professor
Rafael Tomaz de Oliveira faz uma advertência nesse sentido, e apresenta três significados pelos
quais o conceito de princípio poderá incidir. O primeiro refere-se aos princípios gerais do Di-
reito. Estes surgem dentro de um contexto jusnaturalista racionalista que compreendia que o
Direito poderia ser conhecido e construído de maneira completa e sistemática pela razão. Assim,
eram entendidos como axiomas de justiça necessários a partir dos quais se realizava a dedução,
sendo sua função colmatar possíveis lacunas legislativas e reduzir eventuais contradições de uma
interpretação abstrata das leis. O segundo constitui os princípios jurídico-epistemológicos que
começam a ser gerados com a consolidação do Estado Liberal e da radicalização do estatalismo
no continente, no final do século XIX. Distinguem-se em dois níveis pelo grau de especializa-
ção: um que tange os ramos do Direito, no qual são entendidos como elementos organizadores
do estudo lógico e sistemático de uma disciplina jurídica especializada; e, o outro, ligado a pro-
jetos epistemológicos, nos quais são utilizados na fundamentação de determinadas construções
teóricas do Direito, como, o autor cita o princípio da imputação na Teoria Pura do Direito de
Hans Kelsen. O terceiro significado apresentado configura-se como princípios problemáticos,
denominação sugerida por Josef Esser para abarcar a tradição que se desenvolve na segunda me-
tade do século XX, na qual se dá a primazia para o momento concreto de aplicação do Direito,
em detrimento do “momento” abstrato-sistemático. Assim, os princípios são reconhecidos in-
dependentes da lei ou apesar dela. Citando Castanheira Neves, o autor coloca que os princípios
pragmáticos problemáticos “se distinguem decisivamente dos ‘princípios gerais de direito’ que o
positivismo normativista-sistemático via como axiomas jurídico-racionais do seu sistema jurídi-
co, pois são agora princípios normativamente materiais fundamentantes da própria juridicidade,
expressões normativas de ‘o Direito’ em que o sistema jurídico cobra o seu sentido e não apenas
a sua racionalidade” (OLIVEIRA, 2008, p. 63). Infelizmente, muitas obras exploram o conceito
de princípios tendo como pressuposto seu significado, sendo comum à interpenetração deste e,
consequentemente, uma indeterminação conceitual.
Hermeneutica_rev4.indd 144 29/08/2013 16:31:26
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 145
Diante do arrazoado, tem-se que é necessária a superação de certo
medo em relação às regras. Estas devem ser entendidas e apreendidas como
normas tão importantes como os princípios no ordenamento jurídico; a de-
vida cautela quanto a algumas máximas ou axiomas que são reproduzidos,
mas que não subsistem a um exame mais acurado; e, por fim, uma postura
crítica a um pós-positivismo extremado em que tudo é princípio.
4 Democracia e controle: limites à atividade jurisdicional
principialista
Sérgio Buarque de Holanda, em seu aclamado livro Raízes do Bra-
sil, afirma que, “a democracia no Brasil foi sempre um lamentável mal-
entendido”.22
Historicamente, desde a Constituição de 1988 até os dias de hoje, tem-
se o maior período democrático brasileiro, o que indica que ainda se vivencia
um processo de consolidação da democracia. Deste modo, alguns mal-en-
tendidos precisam ser (re)discutidos, a fim de que se concretize o denomi-
nado Estado Democrático de Direito em terrae brasilis.
Nesse intento, são importantes as palavras de John Dewey. Para o filó-
sofo “a democracia é mais que uma forma de governo; em primeiro lugar é
uma forma de vida associativa, de experiência conjunta comunicada”23.
Pressupõe-se, portanto, que, sob um paradigma democrático, os atos
arbitrários, discricionários, devem ser minorados, sendo majoradas as ações
que encontrem respaldo em uma construção conjunta, compartilhada. No
que tange à atividade jurisdicional, esta deverá encontrar limites para que se
conforme ao paradigma democrático.
Dentro do positivismo, era aceitável, em alguns casos, uma atividade
discricionária por parte do juiz. Hebert Hart defendia este espaço para dis-
cricionariedade. Porém, não em um sentido arbitrário, e, sim, levando em
consideração a maior liberdade encontrada pelo julgador, devido a uma situa-
ção excepcional. Nesta esteira, o jurista afirmava que:
22 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Ed. 26ª. São Paulo: Companhia das
Letras,1995. p. 160.
23 DEWEY, Jonh. Democracia e Educação. Cap. 7: A Concepção Democrática em Educa-
ção.Tradução de Carlos Manuel Alfaiate Gomes. Acesso em: 5 abr. 2010. Disponível em:
.
Hermeneutica_rev4.indd 145 29/08/2013 16:31:26
146 Hermenêutica
O conflito direto mais agudo entre a teoria jurídica deste livro
e a teoria de Dworkin é suscitado pela minha afirmação de que,
em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juri-
dicamente não regulados em que, relativamente a determinado
ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo
Direito e, nessa conformidade, o Direito apresenta-se como par-
cialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz
tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou
a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou reme-
ter os pontos não regulados pelo Direito existente para a decisão
do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário
e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o Direi-
to estabelecido pré-existente. Assim, em tais casos juridicamente
não previstos ou não regulados, o juiz cria Direito novo e aplica
o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe,
os seus poderes de criação do Direito.24
Kelsen, de modo menos restrito, fundamenta a decisão judicial no ato
de vontade. Assim, a ciência do Direito poderia até elencar num quadro as
possíveis interpretações da norma para aquele caso; a escolha, entretanto, se-
ria do julgador, que poderia decidir em sentido não expresso pela doutrina.
Como se cuida de um ato de vontade, o órgão aplicador do Direito
pode atribuir à norma um sentido não compreendido na moldura
delineada pela ciência jurídica; pode, com efeito, interpretar a norma
de modo absolutamente rejeitado pelos cientistas do Direito.25
Desse modo, como colocado no positivismo, era patente a discriciona-
riedade como uma ferramenta para solucionar os “hard cases”. A questão é
saber se na atual quadra da história, no contexto democrático presente, ainda
cabe esta perspectiva, e, caso esta tenha se mantido, como a supervalorização
dos princípios contribui para esta manutenção.
A respeito do primeiro questionamento, a resposta seria negativa. A dis-
cricionariedade judicial não deveria encontrar espaço dentro de um Estado De-
mocrático de Direito. Isto porque tal comportamento faz recair sobre o juiz toda
24 Hart apud CELLA, José Renato Gaziero. Legalidade e discricionariedade: O debate
entre Hart e Dworkin. Acesso em: 16 nov. 2009. Disponível em:
. p. 6>.
25 COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limonad, 1995. p. 63.
Hermeneutica_rev4.indd 146 29/08/2013 16:31:26
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 147
a legitimidade para dizer o Direito, uma espécie de realismo jurídico, ao invés de
decisão ser fruto de uma relação jurídico-processual compartilhada.
Não obstante a incoerência de sua manutenção, em tempos hodier-
nos, o espaço para a discricionariedade se perpetua, também, sob o véu dos
princípios, pela forma que são colocados pela doutrina majoritária.
É equivocada a tese que os princípios são mandatos de otimização e
de que as regras traduzem especificidades (donde em caso de colisão,
uma afastaria a outra, na base do “tudo-ou-nada”), pois dá a ideia que
os “princípios” seriam “cláusulas abertas”, espaço reservado para a
“livre atuação da subjetividade do juiz”,(...). Pensar assim é fazer uma
concessão à discricionariedade positivista, (...).26
Deste modo, revivendo a discricionariedade positivista, a atividade ju-
risdicional principialista atua quase que sem limites, pois, exaltando o caráter
vago dos princípios, estes são utilizados como fundamento das mais contro-
versas decisões possíveis, isto quando o juiz não se digna a criar um novo
princípio ad hoc.
Num contexto de “panprincipiologismo27, no qual se encontram princí-
pios de todos os tipos, cores e sabores, as decisões judiciais parecem que alcan-
çam a sua legitimidade no simples fato de ter sido expresso na sentença um
princípio, mesmo que sem a devida fundamentação. Desta maneira, o juiz, ao
analisar o caso concreto, busca, no seu código de princípios, aquele no qual o
fato enfrentado será mais bem enquadrado, chegando, logicamente, à conclu-
são. Calha registrar importante lição do prof. Lenio Luiz Streck:28
No Estado Democrático de Direito, mais do que fundamentar uma
decisão, é necessário justificar (explicitar) o que foi fundamentado.
26 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. ed. 2ª Rio de Janeiro: Lumen Juris: 2008. p. 171.
27 A terminologia “panpricipiologismo” é utilizada pelo professor Lenio Streck para representar
este contexto confuso de utilização desordenada e equivocada dos princípios jurídicos, dentro de
um “aclamado” ativismo judicial. É importante registrar que, no Brasil, o professor tem se desta-
cado na crítica a esta realidade tanto em palestras quanto em seus escritos, dos quais se apresentam,
como livros de referência, Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias Dircur-
sivas, Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito e O que é isto – decido
conforme a minha consciência?.
28 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica, Constituição e Processo, ou “como a discricio-
nariedade não combina com a democracia in Constituição e Processo: a contribuição
do processo ao constitucionalismo democrático brasileiro. Coordenção: Marcello Andrade
Cattoni de Oliveira e Felipe Daniel Amorim Machado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p.17.
Hermeneutica_rev4.indd 147 29/08/2013 16:31:26
148 Hermenêutica
Fundamentar a fundamentação, eis o elemento hermenêutico pelo
qual se manifesta a compreensão do fenômeno jurídico. Não há
princípio constitucional que resista à falta de fundamentação; não
há embargo declaratório que possa, posteriormente à decisão, resta-
belecer o que é a sua condução de possibilidade: o fundamento do
compreendido.
Questiona-se também a atividade jurisdicional principialista, no que diz
respeito ao modo de encontrar a resposta judicial, a ponderação, o sopesamen-
to de princípios, que também se coaduna com a discricionariedade, recaindo
sobre o juiz a tarefa de dimensionar qual princípio tem mais peso no caso con-
creto. O próprio Alexy reconhece esta perspectiva, ao declarar que29:
Os direitos fundamentais não são um objeto passível de ser dividido
de uma forma tão refinada que exclua impasses estruturais – ou seja,
impasses reais no sopesamento – , de forma a torná-los praticamente
sem importância. Nesse caso, então, de fato existe uma discricio-
nariedade para sopesar, uma discricionariedade estrutural tanto do
Legislativo quanto do Judiciário.
Mesmo considerando o importante papel criativo da jurisprudência,
esta não deve se transformar em uma atividade discricionária, incompatível
com o paradigma democrático e com a ordem constitucional vigente. Nesse
sentido, assevera o prof. Eduardo Cambi30 que:
há de se impedir a criação de um “superpoder”, suscetível de abusos e
de devios. A concentração de plenos poderes no Judiciário redundaria
no monismo do poder, comprometendo o princípio da separação dos
poderes que, ao lado dos direitos fundamentais, também compõem o
núcleo essencial da Constituição brasileira (art. 60, § 4º, III e IV).
Destarte, a atividade jurisdicional deve encontrar limites para a sua
atuação, vedando-se certos exageros e o exercício discricionário, todavia,
sem engessar o papel criativo da jurisprudência, importante na adequação do
Direito ao mundo da vida. Deve portanto, ser questionada a atividade juris-
dicional principialista, por ser contrária à Democracia.
29 ALEXY, op. cit. p. 611.
30 CAMBI, Eduardo. Neocontitucionalismo e Neoprocessualismo: direitos funda-
mentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Editora Revista dos
Tribunais, 2009. p. 201.
Hermeneutica_rev4.indd 148 29/08/2013 16:31:26
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 149
5 Considerações finais
A cosmovisão pós-positivista está sendo desenvolvida em contrapo-
sição ao positivismo, como uma crítica, e assim deve ser (re)pensada a fim
de que não se repristine aquilo que se é considerado falho no paradigma
anterior. Neste aspecto, importante se faz a lição de Boaventura de Sousa
Santos31, na qual afirma que:
a teoria crítica moderna reside na autorreflexividade. Ao identificar
e denunciar as opacidades, falsidades, manipulações do que critica, a
teoria crítica moderna assume acriticamente a transparência, a verda-
de e genuidade do que diz a respeito de si próprio. Não se questiona
no acto de questionar nem aplica a si própria o grau de exigência
como que critica.
Este fechamento autopoiético não permite que sejam percebidas as
incoerências daquilo que se defende. A corrente pós-positivista, ao superva-
lorizar os princípios, como mandados de otimização, acredita ter superado o
legalismo positivista, mas criou o principlialismo, que, como foi demonstra-
do, apresenta também incoerências que precisam ser corrigidas.
Não deve existir medo da aplicação das regras, nem mesmo uma con-
sideração enquanto espécie normativa inferior, como se isto fosse impedir o
reviver do positivismo. Isto, logicamente, deixando para trás a visão fechada,
mecânica, que limitava, sobremodo, a atividade jurisdicional.
A discricionariedade judicial que encontra na “vagueza” dos princípios
extenso espaço de atuação deve ser combatida. Não é suficiente prolatar a
sentença declarando que defere como base no superprincípio da dignidade
da pessoa humana, ou sob o fundamento de um princípio ad hoc.
O juiz não pode se figurar acima do Bem e do Mal, o fundamento do
seu discurso deve ser fundamentado. E, ao invés de a decisão recair sobre si
mesmo, como um sujeito solipsista, ela deve ser resultado de uma relação
jurídico-processual compartilhada. Assim, a atividade jurisdicional se en-
contrará adequada ao Estado Democrático de Direito.
31 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da
experiência. Para um novo senso-comum a ciência, o direito e a política na transição
paradigmática. Vol. I. São Paulo:Cortez, 2000. p. 17.
Hermeneutica_rev4.indd 149 29/08/2013 16:31:26
150 Hermenêutica
Ao final, não pode ser negada a normatividade dos princípios e a sua
importância na reaproximação do Direito da Ética, e, sobretudo, por incluir
no solo árido das regras positivistas a faticidade, isto é, o mundo prático.
Todavia, a postura principialista deve ser questionada na medida em
que, na tentativa de transpor os muros positivistas, tem-se chegado a alguns
dos mesmos problemas tão fortemente combatidos.
Deste modo, o principialismo deve ser questionado, sob pena de os
efeitos daquilo que se apresenta como um remédio se tornarem tão nocivos
quanto os do veneno.
Referências bibliográficas
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. São Paulo: Malhei-
ros, 2008.
ARNAUD, Arnaud-Jean. Dicionário enciclopédico de teoria e de so-
ciologia do direito. Direção de André-Jean Arnaud.[et al.]; tradução de:
Patrice Charles, F. X. Willlaume. Rio de Janeiro: Renovar, 1999.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. Ed. 8ª amp. e atual. São Paulo: Malheiros, 2008.
BARROSO, Luis Roberto. Fundamentos Teóricos e Filosóficos do Novo
Direito Constitucional Brasileiro (Pós-Modernidade, teoria crítica e pós-
positivismo). In: ________. (org.) A nova interpretação constitucional:
ponderação, direitos fundamentais, e relações privadas. 2ª ed. revista
e atualizada. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.
CAMBI, Eduardo. Neocontitucionalismo e Neoprocessualismo: di-
reitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
CELLA, José Renato Gaziero. Legalidade e discricionariedade: O de-
bate entre Hart e Dworkin. Disponível em: .cella.com.br/
conteudo/conteudo_27.pdf.> Acesso em: 16 nov. 2009.
COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. São Paulo: Max Limo-
nad, 1995.
DEWEY, Jonh. A Concepção Democrática em Educação. In: ________.
Democracia e Educação. Tradução de Carlos Manuel Alfaiate Gomes.
Hermeneutica_rev4.indd 150 29/08/2013 16:31:26
uma crítica a o principialismo a critical t o principlismo 151
Disponível em:
educacao.pdf.> Acesso em: 5 abr. 2010
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira,
ed. 2ª. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
DUARTE, Écio Oto Ramos. Teoria do discurso e correção normativa
do direito: Uma aproximação à Metodologia Discursiva do Direito.
2 ed. Rev. São Paulo: Landy, 2004.
GRAU, Eros Roberto. Ensaio e Discurso sobre a interpretação/aplica-
ção do Direito. 4ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2006.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26ª Ed. São Paulo:
Companhia das Letras,1995.
MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. O
espírito das leis. 2ª ed. Brasília: UnB, 1995.
OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o Conceito de prin-
cípio: a hermenêutica e a indeterminação do direito. Porto Alegre:
Livraria do Advogado Editora, 2008.
SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. Para um novo senso-comum a ciência, o direi-
to e a política na transição paradigmática. Vol. I. São Paulo: Cortez, 2000.
SGARBI, Adrian. Clássicos da teoria do direito. Rio de Janeiro: Lumens
Juris, 2006.
STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica
e Teorias Dircursivas, Da Possibilidade à necessidade de respostas corretas
em Direito. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.
________. Verdade e Consenso: Constituição, Hermenêutica e Teorias
Dircursivas, Da Possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direi-
to. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris: 2009.
________. Hermenêutica, Constituição e Processo, ou como a discriciona-
riedade não combina com a democracia. In: Constituição e Processo: a
contribuição do processo ao constitucionalismo democrático brasi-
leiro. Coordenação: Marcello Andrade Cattoni de Oliveira e Felipe Daniel
Amorim Machado. Belo Horizonte: Del Rey, 2009.
Hermeneutica_rev4.indd 151 29/08/2013 16:31:26

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT