Uma porta de entrada para a crítica marxista do direito: 'a legalização da clase operária

AutorMarcus Orione - Jorge Luiz Souto Maior - Flávio Roberto Batista - Pablo Biondi
CargoProfessor da Faculdade de Direito da USP - Professor da Faculdade de Direito da USP - Professor da Faculdade de Direito da USP - Doutor em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da USP
Páginas371-403

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Marcus Orione 2

Jorge Luiz Souto Maior 3

Flávio Roberto Batista 4

Pablo Biondi 5

Recebido em 15.4.2016

Aprovado em 21.5.2016

Resumo: Partindo do objetivo de apresentar ao público a primeira tradução brasileira de “A legalização da classe operária, de Bernard Edelman, este artigo busca introduzir a crítica marxista do direito aos leitores interessados em questões de direito do trabalho e apresentar o aspecto específico da crítica do direito aos leitores marxistas. O objetivo final é demonstrar a atualidade da obra e sua estreita ligação com algumas das mais relevantes questões político-jurídicas da contemporaneidade.

Abstract: Starting from the aim of presenting to the public the first Brazilian translation of Bernard Edelman’s “Legalization of the working class”, this article seeks to introduce the Marxist critique of the law to readers interested in labor law issues and present the specific aspect of critique of law the Marxist readers. The ultimate goal is to demonstrate the relevance of this book and its close connection with some of the most relevant contemporary political and legal issues.

Palavras-chave: Marxismo, Direito do trabalho, Classe operária, Crítica do direito.

Keywords: Marxism, Labor law, Working class, Criticism of law.

A crítica marxista do direito no século XX

Engels e Kautsky, certa feita, mencionaram com muito acerto que o direito “ocupa posição muito secundária nas pesquisas teóricas de Marx”, aparecendo em primeiro plano “a legitimidade histórica, as situações específicas, os modos de apropriação, as classes

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sociais de determinadas épocas” (ENGELS; KAUTSKY, 2012, p. 34). Em Marx, portanto, o direito nunca aparece no centro da análise. Ainda assim, mesmo tangenciando o fenômeno jurídico, a investigação marxiana deixou as indicações necessárias para uma compreensão científica e materialista do direito, sobretudo em “O Capital”. Isto porque a crítica da economia política, ao consistir numa crítica do cerne da sociedade burguesa, de sua “anatomia” (MARX, 2008, p. 47), permite um vislumbre mais acurado sobre os outros aspectos da vida social do capitalismo, sobretudo no tocante às suas formas históricas.

A crítica marxista do direito propriamente dita é posterior, portanto, a Marx e Engels, ainda que este último tenha se aproximado muito dela ao estudar a ideologia jurídica. Foi somente a partir do início do século XX que o fenômeno jurídico começou a receber uma atenção maior por parte da análise marxista, e isto se deve ao evento mais importante do período, e quiçá de todo o século: a revolução russa.

Com o triunfo da revolução de outubro de 1917, instaurou-se na Rússia uma ditadura revolucionária do proletariado sob a direção política do partido bolchevique. Naquele momento, teve início um processo de transição ao socialismo, que se materializou no desmantelamento do aparelho de Estado burguês e na expropriação da burguesia russa. E foi no calor da tentativa de construção de uma nova sociedade, isto é, de ultrapassagem da ordem social burguesa, que o problema do direito se colocou para os marxistas como um tema a ser aprofundado.

Pode-se dizer que o marco inaugural da crítica marxista do direito é a polêmica entre Petr Stucka e Evgeny Bronislavovich Pachukanis. Na referida polêmica, houve um rico debate metodológico sobre a abordagem do direito, sendo que a contribuição pachukaniana revelou-se muito mais sofisticada – ainda que tenha sido relegada ao esquecimento por força da contrarrevolução burocrática stalinista, a qual, inclusive, custou a vida do autor. De qualquer maneira, é certo que

O momento mais alto do pensamento jurídico marxista se dá com Evgeny Pachukanis. Num notável aprofundamento das teses de Marx, Pachukanis se põe a identificar a específica relação social que dá base à manifestação jurídica. Para além de Stutchka – que, se identificava o direito à luta de classes, não lhe apontava os mecanismos

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p. 48)

Enquanto Stucka (1988, p. 16) pensava o direito como um “sistema (ou ordenamento) de relações sociais correspondente aos interesses da classe dominante e tutelado pela força organizada desta classe”, qualquer que fosse o caráter do modo de produção dominante (feudal, capitalista, socialista etc.), Pachukanis propôs que o direito seria uma manifestação própria das formações sociais capitalistas, consistindo numa forma social gerada pela estrutura mercantil da ordem social burguesa.

Para Pachukanis, não é suficiente identificar a divisão de classes no seio de uma sociedade para se determinar a presença do direito. Isto porque o direito, tal como o valor, a mercadoria, o capital etc., é uma categoria social que diz respeito a um determinado modo de produção e organização da vida material. Não se pode, assim, imaginar que os traços distintivos do fenômeno jurídico estariam presentes em sociedades muito distintas entre si (feudal, capitalista, socialista), apenas modificando-se a classe dominante favorecida (aristocracia, burguesia, proletariado). Esta seria uma maneira de se eternizar a forma jurídica, o que impede o conhecimento de suas características peculiares. Eis a ponderação de Pachukanis contra a formulação de Stucka: “O conceito de direito é aqui considerado exclusivamente do ponto de vista de seu conteúdo; a questão da forma jurídica como tal de nenhum modo é exposta. Porém, não resta dúvida de que a teoria marxista não deve apenas examinar o conteúdo material da regulamentação jurídica nas diferentes épocas históricas, mas dar também uma explicação materialista sobre a regulamentação jurídica como forma histórica determinada” (PACHUKANIS, 1988, p. 21).

As incursões de Pachukanis na sua mais famosa obra, “A teoria geral do direito e o marxismo” são frutos do materialismo histórico-dialético, em que o autor situa o direito na perspectiva histórica, destacando um período, o capitalismo, que lhe atribui elementos próprios que o caracterizam. Portanto, a noção de forma jurídica, que não se confunde com o conteúdo jurídico, é a mais perfeita tradução de como componentes específicos do capitalismo moldam determinadas categorias econômico/sociais e lhes dão conotação específica. A forma social somente é possível, dadas determinações históricas,

íntimos –, Pachukanis se põe a identificar a especificidade do direito (MASCARO, 2009,

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observadas características típicas de um modo de produção. Em outro modo de produção distinto, a forma também assume outra conotação. Assim, as especificidades do capitalismo moldam a forma jurídica, assim como essa última é moldada por aquele. A respeito de tais especificidades, que permitem o perfeito acoplamento da forma jurídica ao capital, trataremos no decorrer do artigo.

Antes de aprofundarmos ainda mais no tratamento dado a Pachukanis ao direito, algumas palavras sobre conceitos básicos marxistas se fazem necessárias.

A obra de Marx considera o trabalho como dado central para se entender o processo econômico de produção e circulação do capital. Ao discutir em especial com os economistas clássicos, como Ricardo e Adam Smith, o trabalho aparece como o único meio de produção capaz de valorizar o valor.

Aqui é importante perceber que todas as mercadorias possuem valor de uso e valor de troca.

O valor de uso da mercadoria é qualidade intrínseca, inerente a ela, no sentido de que, conforme a sua natureza, atenda às necessidades humanas. Uma cadeira serve para se sentar, assim como uma faca para cortar os alimentos. Esses são os valores de uso de uma cadeira e de uma faca. É claro que o valor de uso deve ser visto historicamente, mas o ponto do qual se parte é da coisa em si mesma.

O valor de troca faz aderir uma qualidade extrínseca às mercadorias no sentido de que, segundo a natureza das relações sociais (e não somente à sua própria) marcadas pela exploração do trabalho alheio, passam a ser mensuradas no mercado. Aqui não bastam as qualidades específicas de que são dotadas, mas também as qualidades sociais de que passam a ser dotadas, determinadas pela quantidade de trabalho despendido para a sua produção. No mercado, realiza-se uma troca de equivalentes. Uma faca, observada a quantidade de trabalho necessário para que fosse produzida, poderia valer duas cadeiras, e assim por diante. No entanto, para evitar que todos precisem ir com facas e cadeiras para o mercado, o que seria impossível, constituiu-se mercadoria considerada o equivalente universal: o dinheiro.

Perceba-se: troca de mercadorias e dinheiro já existiam antes do capitalismo. O que então faz com que sejam percebidas como forma específica do capital? A resposta está

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exatamente na mercadoria chamada força de trabalho. Ou seja, de novo o trabalho como central na teoria de Marx.

Sendo o trabalho o único meio de produção que produz valor, no capitalismo, a grande sacada é a sua dominação e expropriação por outro que detém os demais meios de produção, como forma de acumulação de sua riqueza. Prestem atenção: o trabalho enquanto fator de riqueza das nações, no lugar de coisas inanimadas, como os metais ou a terra (para os fisiocratas), o que já havia sido percebido por autores como Adam Smith (“A riqueza das nações”). No entanto, a percepção de sua expropriação como forma de acúmulo de riqueza de uma classe e montagem de todo um sistema (o capitalismo) é obra do engenho de Marx.

Vamos explicar melhor como o trabalho é o único valor que gera valor.

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