Por uma proposta intercultural de interpretação dos direitos territoriais indígenas

AutorJulio José Araujo Junior
Páginas271-361
Capítulo 5
Por uma proposta intercultural de interpretação
dos direitos territoriais indígenas
Eu sirvo até de adubo para minha terra,
mas dela não saio.”
(Samado, liderança Pataxó Hã-Hã-Hãe576)
Chega-se a este capítulo final com o desafio de contribuir para a
construção, pela via da interculturalidade, de uma interpretação efe-
tivamente plural dos direitos territoriais indígenas. Nesse sentido,
além de rechaçar uma prática assimilacionista, impõe-se a observância
de certas diretrizes, extraídas do próprio projeto constitucional, e
uma interpretação que conjugue as perspectivas indígenas e aspectos
essenciais do princípio da igualdade e do direito antidiscriminação
para que a concretização do comando constitucional se realize.
Cumpre rememorar que a adoção do parâmetro da interculturali-
dade não se resume a mero jogo de palavras, pois visa a enfatizar uma
ecologia de saberes e um processo constante de construção de um
pensamento alternativo de alternativas, que não pode descuidar da
abertura à escuta das comunidades e aos processos políticos que de-
mandam uma contestação da colonialidade. Essa postura não se con-
funde com a mera captura e apropriação ou inversão de sentidos por
uma ordem hegemônica, como se tenta constantemente fazer com as
ideias de sumak kawsay e suma qamaña, no constitucionalismo andi-
no, mas com a garantia de convivência de visões distintas perante a
realidade existente e apresentação de explicações diferentes de mun-
do, as quais devem merecer igual consideração.
576 Frase famosa da liderança Pataxó, citada em várias fontes. Sobre a trajetória de
Samado, veja-se: PREZIA, Benedito. História da resistência indígena: 500 anos de
luta. São Paulo: Expressão Popular, 2017, p. 195.
A postura intercultural não rejeita as conquistas da modernidade.
Pensar em rejeição implicaria adotar o racismo epistêmico da colonia-
lidade. No entanto, a atribuição de novos sentidos aos textos e um
compromisso ativo com a superação das feridas coloniais implicam
uma relativização do alcance de institutos calcados em saberes hege-
mônicos. As interpretações existentes carregam pré-compreensões
que se preocupam em manter um certo statusquo, como se vê em re-
lação ao direito de propriedade e na clássica justificação que se atém
apenas aos proprietários existentes, olvidando-se dos não proprietá-
rios. Ao desvendar a falsa neutralidade de um instituto, abre-se espa-
ço a redefinições. Essa abertura não é estranha à propriedade, que já
passou por várias conformações, apesar de seguir presa a uma visão
monista sobre terras e territórios.
A interculturalidade tampouco dispensa a utilização dos métodos
usualmente adotados para a resolução de colisões de direitos funda-
mentais. A definição de âmbito de proteção de direitos, a adoção do
princípio da proporcionalidade e a posição preferencial prima facie
são construções que podem ser tranquilamente aplicadas, pois consis-
tem em técnicas e métodos que versam sobre a aplicação de normas,
e não acerca do conteúdo delas, porquanto não provocam a inferiori-
zação ou estigmatização de grupos étnicos. Ao contrário, essas técni-
cas podem ser utilizadas em favor do incremento de um diálogo em
igualdade de condições entre grupos, de modo a propiciar uma me-
lhor promoção de reconhecimento e redistribuição. Nesse exercício,
certos conceitos e sentidos de um texto podem ganhar novos contor-
nos, especialmente quando disserem respeito à realidade dos povos
indígenas. As ideias contidas em expressões como “bens da União”,
“usufruto”, “terras indígenas”, “habitação permanente”, “tradicional-
mente ocupadas”, entre outras, estão potencialmente sujeitas a uma
ressignificação.
Isso não significa que os processos interpretativos devem render-
se à cosmologia dos grupos, tampouco suplantar uma história oficial
por outra. Há, contudo, uma complexidade de direitos, costumes,
crenças, valores e história cuja obstrução demanda ônus argumentati-
vos mais elevados. Este fenômeno é muito mais complicado do que a
visão naturalizada ou primitivista pode sugerir, pois demanda a com-
preensão acerca do caráter dinâmico das transformações por que pas-
saram e passam os grupos, inclusive no que se refere às suas cosmolo-
gias e redefinições, ampliando a reflexão sobre a reivindicação territo-
rial. Diante da horizontalidade dos embates e da atualidade das reivin-
dicações indígenas, já não se aceita acriticamente as locuções “você
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não é proprietário”, “isso aqui nunca foi área indígena”, “a terra está
registrada em nome de fulano de tal” ou “a letra do código não permi-
te outra interpretação”. A interculturalidade exige a paridade na solu-
ção dos conflitos e impõe a colocação à mesa das manifestações dos
índios e de suas perspectivas nas colisões de propriedades.
A maior carga de abertura conferida à interpretação dos textos não
confronta o fundamento da segurança jurídica na concepção tradicio-
nal de Estado de Direito. Ao contrário, a segurança jurídica torna-se
aqui menos seletiva. O não reconhecimento de territórios tem favore-
cido a adoção de projetos de assimilação de diversas populações, cau-
sando desestruturação étnica, expulsões, deslocamentos forçados e
mortes. Não é possível pensar em Estado de Direito, mesmo na visão
dos brancos, sem pensar em uma estabilidade que garanta previsibili-
dade a todos os grupos que compõem a sociedade nacional, e esse ob-
jetivo só pode ser cumprido mediante a realização das tarefas de reco-
nhecimento e redistribuição impostas pela Constituição.
A interculturalidade encara, pois, os institutos de forma mais
aberta, mas não perde de vista a unidade necessária da Constituição
para superar, e não normalizar, os conflitos. Ela é debitária do univer-
salismo de confluência e da ecologia dos saberes, por isso enseja o
abandono de uma superioridade a priori da explicação hegemônica do
direito para democratizar as perspectivas, com o fim de conferir igual-
dade a todas elas e assegurar um efetivo compromisso descolonial.
As bases da modernidade/colonialidade ainda seguem muito pre-
sentes, o que é inegável, e não legaram à humanidade apenas feridas,
mas também importantes conquistas, como a democracia e os direitos
fundamentais, cuja interpretação ampliativa, fruto de lutas das mino-
rias, vem procurando há décadas corrigir os racismos e sexismos pre-
sentes na origem dos textos legais. As diversas correntes do pensa-
mento crítico mostram como é possível avançar a partir de princípios
como a liberdade, a igualdade e a dignidade da pessoa humana. A in-
terpretação intercultural soma-se ao esforço dessas correntes e pro-
põe uma prática mais radical quanto ao compromisso pela transforma-
ção. Além disso, ela contribui para a configuração do conjunto de va-
lores básicos que formam a atual ordem constitucional, realçando a di-
mensão objetiva dos direitos fundamentais e reforçando a compreen-
são de que a eficácia desses direitos deve ser valorada não apenas sob
o ângulo individualista, em uma relação sujeito e Estado, mas também
como parâmetro para os deveres de proteção pelo último, vinculados
a princípios constitucionais que transcendam uma relação singular.
Nesse contexto, direitos subjetivos individuais como o de proprieda-
de privada estão sujeitos a uma certa limitação de conteúdo e alcance.
Direitos territoriais indígenas 273

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