Uma revisao de Punicao e Estrutura Social e Carcere e Fabrica a luz da teoria critica do valor/A review of Punishment and Social Structure and The Prison and The Factory in the light of the value criticism.

AutorVaz, Andr

1) A pena privativa de liberdade e a fundação do modo de produção capitalista

Parte considerável da tradição criminológica marxista se dedica a investigar de modo aprofundado a relação entre a ascensão da prisão como modalidade punitiva principal, administrada pelo nascente Estado Moderno, e a assim chamada acumulação primitiva, tal como exposta por Marx no célebre capítulo 24 do Livro I de O Capital. Neste ponto de sua obra, Marx narra os processos que estão na base da gênese histórica do capital, com olhos postos, como é recorrente em seus escritos, no caso inglês, que considera clássico (1). A investigação histórica testa aquilo que, em termos teóricos, Marx havia apresentado nos capítulos anteriores: em suma apertada, trata-se de verificar quais condições concretas tiveram de se fazer presentes para que a dinâmica atual, já compreendida em sua lógica mais abstrata (D-M-D'... D-M-D'... D-M-D'...) (2), pusesse-se em marcha inicial. No capítulo, há marcante destaque para o papel cumprido pela violência dirigida aos camponeses que, expropriados e expulsos dos campos cercados para o desenvolvimento sobretudo da manufatura de lã, foram tornados duplamente livres, isto é, livres do acesso aos meios de produção, e livres para vender apenas aquilo que lhes restou: sua força de trabalho, ora tornada mercadoria. É pelo fio da mencionada violência que a criminologia marxista aborda a temática da prisão que, deflagrada a dinâmica capitalista, converteuse na forma legítima, sob monopólio estatal, de administrar o uso da força.

Não entrarei aqui na polêmica quanto a se a dinâmica da acumulação primitiva explica apenas os processos que operaram na gênese do modo de produção capitalista, ou se ela também deve ser referida a processos posteriores--inclusive contemporâneos--de expansão da lógica da acumulação para formações sociais não capitalistas e esferas da vida antes alheias às suas determinações (3). Fato é que, de modo mais ou menos explícito, as teses criminológicas sobre a prisão esteiam-se na teorização marxiana a respeito da acumulação primitiva, muitas vezes atualizando-a para períodos históricos subsequentes à gênese propriamente dita do modo de produção capitalista, ou para contextos distintos do inglês, que foi privilegiado na análise marxiana. Entre os trabalhos mais antigos e célebres, que, porquanto paradigmáticos, mais abaixo serão especificamente abordados, Pavarini e Melossi (2006), em Cárcere e Fábrica, estudaram a maneira como a violência penal ínsita à acumulação primitiva se materializou na Itália e nos Estados Unidos. Já em Punição e Estrutura Social, Georg Rusche, em texto terminado por Otto Kirchheimer, havia antes demonstrado como a pena de prisão associou-se à dinâmica histórica no nascedouro do capitalismo na Europa e a este seguiu acoplada ao longo de seu desenvolvimento (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004) (4).

A acumulação primitiva caracteriza, como a própria expressão revela e como já acima referido, a dinâmica histórica relacionada à gênese do modo de produção capitalista--ao menos para Marx (5). Como este constitui uma totalidade, é possível remeter à acumulação primitiva diversas determinações do capitalismo que, naquele momento, encontravam campo fértil para germinação: entre outras, trabalho abstrato, valor, dinheiro, Estado, mercadoria, e classes sociais (6).

É claro que, nos processos de acumulação primitiva, sem muito esforço visualiza-se a maneira como a violência cindiu a sociedade nos grupos fundamentais dos detentores dos meios de produção e dos que, por não os deterem, vendem "livremente" sua força de trabalho--em outras palavras, classes capitalista e trabalhadora. Por essa via, a criminologia marxista aborda a prisão como mecanismo necessário ao disciplinamento desta última, a fim que se a submetesse à lógica da exploração. Na célebre metáfora de Melossi e Pavarini, cuida-se de desvendar a associação entre cárcere e fábrica: aquela como modalidade punitiva central do capitalismo, e esta como sua unidade produtiva modelo, resultante do devir da manufatura em maquinaria e grande indústria. Já Georg Rusche tentou, no que toca à punição, expressar a tão malinterpretada postulação marxiana sobre a prioridade do momento econômico para compreensão da totalidade social com a famosa colocação--que na verdade consta da introdução escrita por Kirchheimer--de que "todo sistema de produção tende a descobrir formas punitivas que correspondem às suas relações de produção" (RUSCHE; KIRCHHEIMER, 2004, p. 20). A partir daí, evidencia como alterações quantitativas (ampliação ou retração das taxas de encarceramento) e qualitativas (melhora ou piora das condições de vida intramuros, bem como o modo de utilização da força de trabalho encarcerada) no que toca ao aprisionamento conjugaram-se às intempéries do processo de acumulação capitalista até o início do século XX.

Sem dúvida, a senda tomada por tais autores é profícua sob diversos aspectos. Ambas as obras impressionam pela sofisticação e pelo volume de material histórico de que se valeram para demonstrar suas teses que, à parte diferenças de enfoque (7), podem ser resumidas sob a seguinte proposição: a violência perpetrada em forma de privação de liberdade na prisão exerceu papel fundamental na acumulação primitiva, como mecanismo de inculcação da disciplina do trabalho na classe trabalhadora e de regulação, em favor dos interesses da classe capitalista, da exploração da força de trabalho--seja pela extração direta de mais-trabalho da população encarcerada, seja como regulador do salário a ser pago à força de trabalho disponível extramuros por operar como mecanismo de manipulação do volume do exército industrial de reserva. Nos dois casos, portanto, a análise se sustenta no conflito entre as classes, o que revela uma adesão, em grande parte, à estrutura teórica do marxismo tradicional. Antes de avançarmos na demonstração de outros pontos que evidenciam referida adesão, é necessário expor brevemente em que consiste essa leitura tradicional do marxismo, indicar suas limitações, e delinear a posição que entendemos, por fazer jus ao sentido da crítica marxiana, superior em termos analíticos. Para tanto, adotarei como alicerce as formulações da teoria crítica do valor, sobretudo as de Moishe Postone em sua obra Tempo, Trabalho e Dominação Social (2014).

2) Marxismo tradicional e crítica do valor

Neste tópico sintetizarei, naquilo que importa para os fins do presente artigo, a interpretação do marxismo que pretende revitalizá-lo por meio da ênfase na crítica do valor, e contrastá-la com a leitura tradicional da obra de Marx. Como premissa, postulase que a contradição presente na própria forma-mercadoria é aquela da qual se devem derivar as demais constatáveis na formação social capitalista--como por exemplo as de classe, incluindo as formas de violência praticadas no bojo dessa relação conflitiva.

Marx, após anunciar já na primeira oração do livro que o objeto de sua análise (e crítica) é o modo de produção capitalista, inicia O Capital debruçando-se sobre a mercadoria, que constitui o elemento fundamental do tipo de formação social a ser investigada, e a partir do qual as demais categorias necessárias para a compreensão da totalidade dinâmica do modo de produção são dialeticamente desdobradas (dinheiro, capital, preço, lucro, etc.) (8). De saída, Marx identifica os dois fatores da mercadoria responsáveis pela contradição presente em seu bojo: valor e valor de uso. Enquanto todo produto do trabalho humano se reveste de valor de uso--isto é, possui qualidades sensíveis (materiais ou não) que satisfaçam algum tipo de necessidade (do estômago ou da imaginação [MARX, 2013, p. 113])--, as mercadorias--ou seja, a forma assumida pelos produtos do trabalho humano nessa formação social historicamente específica--contêm valor, que consiste em fator exclusivamente social. Isso deriva de que, diversamente de em outros tipos de sociedade, os diversos e infinitos tipos de trabalho concreto, no capitalismo, são realizados privadamente, e apenas a posteriori é que se confirma o seu caráter social, ou seja, quando da troca efetuada no mercado (daí tratar-se de mercadoria) (9). É nesse momento que o produtor isolado e privado conseguirá--ou não--satisfazer suas próprias necessidades, que não são de regra satisfeitas com o consumo do produto de seu próprio trabalho.

Para que se viabilize sejam os infinitos tipos de produtos das variadas modalidades concretas de trabalho humano trocados entre si, porém, é necessário que eles sejam tornados homogêneos e, assim, diferenciados apenas quantitativamente. Assim é que os produtos têm de ser abstraídos de todas as suas particularidades e ser tidos apenas como cristalização de atividade laborativa ("geleia de trabalho humano indiferenciado", na imagem de Marx [2013, p. 116]). Para isso, o próprio trabalho que confere às mercadorias tal indiferenciação deve ser também objeto de abstração de suas particularidades concretas. Desse modo, o trabalho abstrato é o responsável pelo valor das mercadorias, com o que estas podem ser trocadas umas pelas outras: como trabalho humano em si, as atividades são diferenciáveis e comparáveis apenas no que tange ao tempo em que realizadas. As mercadorias podem, com isso, ser também comparadas no que toca ao tempo de trabalho (abstrato) despendido para produzi-las.

As formações anteriores ao capitalismo têm como tipo de riqueza social predominante a riqueza material. Em outras palavras, o critério de riqueza se define pela extensão em que os bens materiais ou imateriais, incluindo o produto do trabalho, satisfazem necessidades humanas. Já no capitalismo, o tipo de riqueza predominante é o valor, que subordina o valor de uso: estes são produzidos apenas como meio para o fim de valorização do valor, e a satisfação de necessidades, se ocorre, deve ser considerada apenas um efeito colateral desse movimento que deve obrigatoriamente, por sua própria lógica interna, repetir-se e ampliar-se...

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