Uma Execução Trabalhista Efetiva como Meio de se Assegurar a Fruição dos Direitos Fundamentais Sociais

AutorJosé Roberto Freire Pimenta - Adriana Campos de Souza Freire Pimenta
Ocupação do AutorMinistro do Tribunal Superior do Trabalho. Doutor em Direito Constitucional pela UFMG - Juíza do Trabalho Titular da Vara do Trabalho de Unaí-MG. Juíza Auxiliar da Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho. Mestre em Direito Político e Econômico e Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Páginas247-269

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1. A fase de execução como um dos pontos de estrangulamento da tutela jurisdicional trabalhista, o número excessivo de reclamações trabalhistas no Brasil e a "síndrome do descumprimento das obrigações" como sua causa principal

O grande dilema dos aplicadores do direito é ver cumpridas as decisões judiciais proferidas.

As sentenças que não mudam a realidade, deixando de entregar a quem tem razão o bem da vida pleiteado judicialmente, frustram todos, mormente os magistrados que atuaram no correspondente processo e a própria parte vencedora, além de contribuir, em muito, para o desprestígio do Poder Judiciário. Isso, naturalmente, insere-se num quadro maior de verdadeira crise de efetividade da Justiça do Trabalho brasileira, apesar de ser ela o ramo do Judiciário comparativamente mais eficiente e melhor avaliado pelos próprios jurisdicionados.

Como já tivemos a oportunidade de afirmar em trabalhos anteriores1, todo operador do Direito que resolva examinar mais de perto o estado atual da prestação jurisdicional trabalhista em nosso país e o quadro institucional por meio do qual é ela prestada defronta-se com um paradoxo aparentemente

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inexplicável: como é possível que a Justiça do Trabalho, que absorve parte significativa do orçamento federal destinado ao Poder Judiciário e que conta, em seus quadros, com magistrados e servidores de alto nível intelectual e de grande zelo profissional, não consiga atender ao número, a cada ano sempre crescente, de demandas trabalhistas e, o que talvez seja mais importante, não se mostre capaz, na fase decisiva da execução, de tornar realidade, em tempo hábil, boa parte das decisões por ela proferidas?2

Paralelamente, é comum um sentimento de frustração a todos os magistrados trabalhistas brasileiros que, com sacrifício de sua vida particular e familiar, desdobram-se sete dias por semana, em número de horas de trabalho diário acima do normal, para solucionar o excessivo número de processos trabalhistas submetidos à sua apreciação (boa parte deles versando, de forma repetitiva, sobre lesões reiteradas dos mais elementares e fundamentais direitos trabalhistas dos reclamantes3 por parte de demandados "habituais"4, em casos em que a existência da obrigação nem sempre é seriamente contestável, embora seja sempre contestada em defesas e recursos de duvidosa procedência)5.

A principal e decisiva razão para tão lamentável estado de coisas é, a nosso ver, de uma simplicidade dolorosa: o excessivo número de reclamações trabalhistas anualmente ajuizadas no Brasil, o qual, por sua vez, acarreta o estrangulamento da Justiça do Trabalho em todos os seus graus de jurisdição (inclusive na fase de execução, destinada exclusivamente à satisfação dos créditos trabalhistas já reconhecidos, em definitivo, como devidos)6.Nesse estado de coisas, a consequência é natural e inevitável: uma Justiça assoberbada por um número excessivo de processos é, necessariamente, uma Justiça lenta e de baixa qualidade.

E qual é a razão fundamental de um número tão elevado de dissídios trabalhistas em nosso país, muito maior do que o verificado nos países mais desenvolvidos e mesmo em países de estágio de desenvolvimento econômico, humano e social equivalentes ao nosso? Alguns ilustres autores e especialistas apontam como causas do problema

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a tendência cultural, que atribuem aos brasileiros, de recorrer sempre ao Estado-juiz para a solução de seus conflitos intersubjetivos de interesses (em contraposição à tendência hoje predominante no mundo civilizado, especialmente nos países anglo--saxões, de resolver esses conflitos pelas vias da negociação coletiva, da conciliação extrajudicial e da arbitragem), bem como o que consideram uma exagerada intervenção do Estado nas relações laborais, consubstanciada em normas trabalhistas de origem estatal que, a seu ver, pecariam por ser excessivamente complexas, abrangentes e detalhadas (o que, por sua vez, aumentaria artificialmente o número de controvérsias e inibiria a solução desses conflitos pelas vias da transação individual e coletiva)7. No entanto, não nos parecem ser essas as causas fundamentais do número excessivo de demandas trabalhistas hoje em curso em nosso país.

Embora deva ser reconhecida a conveniência da implantação de mecanismos de solução extrajudicial dos conflitos trabalhistas de intensidade e de complexidade menores (para cuja solução afigura-se mesmo desnecessária, a priori, a intervenção do Estado-juiz), bem como a utilidade de racionalizar e modernizar as normas legais trabalhistas para tornar clara e induvidosa, para todos os interessados, a vontade concreta da lei no campo das relações laborais (eliminando controvérsias desnecessárias na interpretação das normas legais e coletivas que disciplinam essas relações), não nos parece que a solução desses problemas seria suficiente para diminuir, na proporção necessária, o enorme número de ações trabalhistas em nosso país. O verdadeiro problema, pura e simplesmente, é que o direito material trabalhista, no Brasil, tem um baixo índice de cumprimento espontâneo pelos destinatários de seus comandos normativos, muito menor do que qualquer ordenamento jurídico admite como tolerável8.

Nessa perspectiva, é fácil concluir que chega a ser elementar a causa fundamental de tão elevado número de litígios trabalhistas (sendo relevante observar que sua grande maioria termina, na fase de cognição, com uma sentença de procedência integral ou parcial dos pedidos iniciais do reclamante): é que, no Brasil, as normas materiais trabalhistas deixam de ser cumpridas espontaneamente por seus destinatários em frequência muito maior do que seria razoável em qualquer sociedade capitalista do século XXI. Isso obriga os beneficiários dos direitos por elas instituídos a escolher entre conformar-se, pura e simplesmente, com essa lesão (o que, como é de conhecimento geral, costuma ocorrer em boa parte dos casos, caracterizando o fenômeno que os processualistas contemporâneos denominam de litigiosidade contida) ou recorrer ao Judiciário trabalhista, em busca da tutela jurisdicional a todos constitucionalmente prometida, como contrapartida da proibição estatal da autotutela. Deve-se concluir, portanto, que o número excessivo de reclamações trabalhistas é simples efeito, e não a verdadeira causa do problema.

As empresas razoavelmente organizadas sempre fazem uma análise global da relação custo-benefício, sabendo muito bem quando lhes convém, ou não, cumprir a lei trabalhista9. Isso não ocorre apenas em nosso país: nos países desenvolvidos, os agentes econômicos e institucionais, certamente, operam e atuam movidos por objetivos similares e a partir de considerações da mesma natureza. A diferença fundamental é que lá, em última análise, é

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mais vantajoso (ou melhor, menos desvantajoso) para os empregadores, como regra habitual de conduta, cumprir a legislação trabalhista do que descumpri-la. Essa é, a nosso ver, a questão essencial.

Pode-se afirmar, em síntese, que, hoje, o verdadeiro problema do Direito do Trabalho em nosso país é a falta de efetividade da tutela jurisdicional trabalhista (que torna extremamente vantajoso, para grande número de empregadores, do ponto de vista econômico, descumprir, de forma deliberada e mas-siva, as mais elementares obrigações trabalhistas), criando, por uma decisão estratégica empresarial, uma verdadeira "cultura do inadimplemento", em flagrante concorrência desleal com a parcela ainda significativa dos empregadores que cumprem rigorosamente suas obrigações trabalhistas, legais e convencionais10.

Quanto mais efetiva a máquina jurisdicional, menos ela vai ter que atuar concretamente, no futuro ou a médio prazo. Simetricamente, quanto mais os destinatários das normas jurídicas souberem que só lhes resta cumprir a lei, por absoluta falta de melhor alternativa, menos será necessário o acionamento da máquina jurisdicional e maiores eficácia e efetividade terão as normas jurídicas materiais. Essa é, portanto, a perspectiva final com a qual os operadores do Direito em geral, mas especialmente os que exercem a função jurisdicional do Estado, têm que trabalhar.

Repita-se, à guisa de conclusão parcial: quanto mais eficaz for a jurisdição, menos ela terá que ser acionada. Enquanto o direito processual do trabalho e o Poder Judiciário trabalhista não forem capazes de tornar antieconômico o descumprimento rotineiro, massificado e reiterado das normas materiais trabalhistas, os Juízes do Trabalho de todos os graus de jurisdição continuarão sufocados e angustiados pela avalanche de processos individuais, repetitivos e inefetivos.

Se o excessivo número de reclamações trabalhistas é negativo na ótica do próprio Poder Judiciário trabalhista, como demonstrado, é ele ainda mais pernicioso na perspectiva dos jurisdicionados em geral e, especialmente, dos trabalhadores assalariados para os quais este ramo especial da Justiça foi instituído. Na perspectiva desses consumidores da tutela jurisdicional trabalhista11, é ainda mais chocante o contraste entre o conteúdo dos arts. 6º a 11 da Constituição de 1988, que compõem o Capítulo II ("Dos direitos sociais") de seu Título II ("Dos direitos e garantias fundamentais") e a dura realidade nacional por eles vivida e noticiada pelos meios de comunicação de massa.

Além disso, a realidade diária da Justiça...

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