Efeitos da revogação do tratado internacional por ato unilateral do Presidente da República

AutorMarcelo Ribeiro do Val
Páginas55-70

Marcelo Ribeiro do Val. Marcelo Ribeiro do Val, Advogado da União, Assessor de Ministro do Supremo Tribunal Federal, mestrando do Programa de Mestrado em Direito do UniCEUB, área de concentração: Direito das Relações Internacionais.

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1 Introdução

O tema ora abordado, os efeitos na ordem jurídica interna quando um tratado internacional é denunciado pelo Brasil, refere-se a assunto que reabre a discussão acerca das implicações entre os planos normativos internacional e interno, ainda não completamente superadas e que, mais uma vez, desafiam solução pelos ministros do Supremo Tribunal Federal. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 1.625/DF, da relatoria do ministro Maurício Corrêa, questiona-se a higidez do Decreto nº. 2.100/96, que internalizou a denúncia à Convenção nº. 158, da Organização Internacional do Trabalho.

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A questão reside no fato de o Supremo ter firmado posicionamento no sentido de caber, isoladamente, ao Presidente da República denunciar os tratados internacionais firmados pelo Brasil, ato que tem por efeito desobrigar a nação perante os demais Estados e Organismos Internacionais.

No caso, contudo, a exemplo do que ocorre em diversos tratados internacionais, a Convenção nº. 158 da OIT não constitui norma de direito internacional, cujo conteúdo se refere a uma obrigação contratual entre Estados soberanos ou sujeitos de Direito Internacional. Ela veicula regras gerais já incorporadas no ordenamento jurídico pátrio, após regular processo de internalização pelo Decreto n° 1.855/96, conferindo eficácia integral a dispositivo constitucional relativo a direito social que cuida da indenização trabalhista por dispensa arbitrária pelo empregador: o inciso I do artigo 7º da Carta da República.

A proposta do presente trabalho, que não tem a pretensão de esgotar o tema, é discutir a questão, revelando as implicações internas trazidas ao crivo do Supremo na referida Ação Direta. Esse será o leading case da matéria e fixará entendimento sobre vigência independente ou não, no plano interno, de tratado internacional internalizado, que veicule direito substantivo, mediante ato revogatório unilateral do Presidente da República, considerado o inciso II do artigo 5º da Constituição de 1988.

2 A Constituição e o Supremo Tribunal Federal

Acerca do instituto Tratado Internacional, a Carta Magna brasileira não o incluiu no rol do artigo 59, deixando, mais uma vez, a exemplo das Cartas anteriores, ao encargo da construção doutrinária e jurisprudencial a fixação dos parâmetros de validade e de eficácia quando incorporado no plano do ordenamento jurídico interno. Interpreta-se a omissão como eloqüente pelo fato de a Constituição atribuir competências próprias a cada um dos tipos normativos arrolados. Assim, ao excluí-los, facultou aos tratados internacionais veicular, no âmbito interno, matérias de qualquer natureza, observados os limites do § 4º do artigo 60 da Carta Federal e os ritos de aprovação legislativa (para a proteção às minorias), daí a previsão do controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário. Esse entendimento foi, inicialmente, rechaçado pelo Supremo quando, ao julgar a ADI-MC nº. 1.480/DF, analisou o tratado sob óptica da constitucionalidade formal e decidiu, em sede precária, que ele não poderia atuar como sucedâneo de lei complementar para atender ao inciso I do artigo 7º da Carta Constitucional, considerado o quorum qualificado de aprovação exigido. Na assentada, ficou vencido o ministro Carlos Velloso, que afastava o vício formal, entendendo haver recepção constitucional, tendo em conta o tipo normativo sem competência específica.

A ausência de disciplina expressa sobre os tratados internacionais lato sensu não impede, com efeito, que se extraia do texto constitucional a compreensão da sua naturezaPage 57 jurídica. De fato, ao prever nos parágrafos 2º e 3º do seu artigo 5º, a possibilidade de os tratados internacionais fixarem outros direitos e garantias aos cidadãos, a Constituição da República o tem como espécie de instrumento normativo, obedecido o quorum de aprovação legislativa.

O tratado internacional, na ordem externa, todavia, não tem como fonte normativa os poderes estatais internos, mas Estados soberanos e organismos internacionais. Figura, apenas, como instrumento normativo do Direito das Gentes, vinculando, num primeiro momento, apenas as partes contratantes, mediante procedimento que observa o ordenamento jurídico interno de cada sujeito de Direito Internacional.

No caso do Brasil, para entrar em vigor no plano internacional, o tratado internacional assinado pelo Presidente da República, na condição de Chefe de Estado, ou por delegação ñ inciso VIII do artigo 84 e inciso IV do artigo 87 da Carta Republicana ñ, necessita de referendo do Congresso Nacional para, depois, ser ratificado perante os demais contratantes, salvo no caso de autorização prévia do Parlamento.

No plano interno, por sua vez, o Supremo Tribunal Federal entendeu, no julgamento do RE nº. 71.154/PR, que o tratado internacional passa a vigorar no plano interno a partir da publicação do decreto executivo que o promulga. Isso ocorre após o decreto de referendo do Parlamento e da ratificação no âmbito internacional.

Nesse precedente, também considerado o leading case da matéria, o Tribunal fixou o posicionamento de que, observada a tramitação acima, o tratado internacional passa a vigorar no ordenamento jurídico interno, independentemente de reprodução do seu texto em lei. Dispensou, portanto, a dupla manifestação do Congresso Nacional e reconheceu a imediata eficácia interna, inclusive naquilo que modificar a legislação interna anterior. Convém frisar que, embora o julgamento tenha ocorrido sob a égide da Emenda Constitucional nº. 1/1969, o eminente relator lembrou que o processo de internalização do tratado era idêntico em todos os textos constitucionais, desde a Carta de 1946. Foi mantida, também, a competência do Chefe de Estado no inciso VIII do artigo 84 da Constituição de 1988.

A seguir, noutra oportunidade, o Supremo enfrentou nova questão jurídica envolvendo a vigência e a hierarquia entre tratado internacional e lei interna. No Recurso Extraordinário nº. 80.004/SE, o Tribunal reconheceu a validade do Decreto-lei nº. 427/1969, que alterou, parcialmente, no âmbito doméstico, a Lei Uniforme das Notas Promissórias, cuja fonte é a Convenção de Genebra sobre letras de câmbio e notas promissórias, tratando-a, no âmbito interno, como lei nacional.

Do julgamento destaca-se, inicialmente, o posicionamento do ministro Xavier de Albuquerque, relator originário. Ele, embora vencido no mérito, baseou-se em precedentes do Supremo, tanto no RE nº. 71.154/PR quanto em acórdãos relatados pelos ministros PhiladelphoPage 58 Azevedo, Orozimbo Nonato e Laudo de Camargo, para consignar a irrevogabilidade das normas de direito internacional pelas leis ordinárias brasileiras, consideradas as distinções das espécies normativas e a unidade do tratado, salvo o permissivo contido no próprio tratado ou no caso de denúncia. Daí, declarou, pela via incidental, a inconstitucionalidade do Decreto-lei nº. 427/1969.

Após, seguiu-se o voto do ministro Cunha Peixoto, que, abrindo divergência, consignou a existência das teorias monista e dualista para situar o ordenamento jurídico brasileiro nesta segunda. Com isso, apontou que a Carta então em vigor não incluía os tratados entre as leis positivas brasileiras. Sustentou, ainda, que, mesmo com a ratificação e a promulgação pelo Presidente da República, após o referendo do Parlamento, o tratado internacional somente obrigaria o Estado brasileiro perante os demais contratantes, sem qualquer vigência na ordem interna. Tal seria possível somente com a aprovação de uma lei nacional, tendo em conta a diversidade de fontes e o processo de formação dos instrumentos normativos internos. Por essa razão, negou vigência ao tratado e manteve a do Decreto-lei impugnado.

Cabe destacar duas passagens do voto do ministro Cunha Peixoto que revelam questões da maior importância, ainda hoje não superadas. Na primeira, rebate a tese daquele que o precedeu, dizendo ser inaceitável, sob pena de inconstitucionalidade, o tratado revogar lei interna, pois, em última análise, seria o mesmo que atribuir ao Chefe do Executivo o poder de revogar norma com força de lei, mediante simples denúncia, ou seja, mero ato de vontade, sem a participação política do Parlamento. Na segunda, afirma que o artigo 98 do Código Tributário Nacional, sob pena de inconstitucionalidade, só poderia referir-se a tratados e convenções internacionais que dispusessem sobre matéria contratual, firmados por governantes sobre assuntos tributários. Daí, entendeu que a norma que pactua, a exemplo das leis de isenção tributária por prazo determinado, constitui título de direito subjetivo, não podendo ser revogada por norma geral.

Assim, embora num primeiro momento, a posição do eminente ministro possa parecer um retrocesso para o direito internacional, na verdade, as deficiências apontadas eram pertinentes e peculiares, revelando que o estudo dos tratados ainda se encontrava inacabado.

Prosseguindo o julgamento, o voto do ministro Cordeiro Guerra enriqueceu ainda mais os debates. Para o eminente magistrado, ao...

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