UPPS: observacoes sobre a gestao militarizada de territorios desiguais/UPP's: notes on the militarized management of unequal territories.

AutorValente, Julia Leite

INTRODUCAO

O dia em que o morro descer e nao for carnaval ninguem vai ficar pra assistir o desfile final na entrada rajada de fogos pra quem nunca viu vai ser de escopeta, metralha, granada e fuzil (e a guerra civil) No dia em que o morro descer e nao for carnaval nao vai nem dar tempo de ter o ensaio geral e cada uma ala da escola sera uma quadrilha a evolucao ja vai ser de guerrilha e a alegoria um tremendo arsenal o tema do enredo vai ser a cidade partida no dia em que o couro comer na avenida se o morro descer e nao for carnaval O povo vira de cortico, alagado e favela mostrando a miseria sobre a passarela sem a fantasia que sai no jornal vai ser uma unica escola, uma so bateria quem vai ser jurado? Ninguem gostaria que desfile assim nao vai ter nada igual Nao tem orgao oficial, nem governo, nem Liga nem autoridade que compre essa briga ninguem sabe a forca desse pessoal melhor e o Poder devolver a esse povo a alegria senao todo mundo vai sambar no dia em que o morro descer e nao for carnaval. (O dia em que o morro descer e nao for carnaval--Wilson das Neves) O Governo do Rio de Janeiro comemora os numeros: sao 38 Unidades de Policia Pacificadora (UPPs) instaladas ate a presente data (junho de 2014); 1,5 milhao de pessoas beneficiadas em 264 "territorios retomados pelo Estado"; 9.543 "policiais com treinamento de policia de proximidade" e a area das UPPs somadas e de 9.446.047 [m.sup.2] (3).

Se o Programa Nacional de Seguranca Publica com Cidadania (Pronasci) propos a reformulacao das politicas de seguranca publica em um projeto nacional de longo prazo prevendo um policiamento comunitario e desmilitarizado, coube a Sergio Cabral, Governador do Rio de Janeiro, reinterpretar a proposta e apostar no combate militar ao trafico de drogas e ao "crime organizado" em territorios especificos. A politica de seguranca publica estabelecida a partir de 2007 no estado observou a ideia de implantacao de policiamento local permanente, mas subverteu o Programa nacional ao ignorar outras propostas como a desmilitarizacao, o controle efetivo de armas e o abandono de invasoes ilegais de domicilio, revistas de cidadaos, uso dos Caveiroes e outras violacoes que sempre fizeram parte da relacao entre policia e moradores das favelas. No lugar de policia comunitaria vieram as Unidades de Policia Pacificadora.

As UPPs fazem parte de um projeto da Secretaria Estadual de Seguranca Publica do Rio de Janeiro que tem por objetivo a "retomada de territorios antes dominados pelo trafico" e a instituicao "policias de proximidade" em diversas favelas do Estado (4). A instauracao de cada UPP e precedida de uma operacao de invasao do territorio por parte de forcas conjuntas policiais e militares, com auxilio do BOPE e, se necessario, da Forca Nacional de Seguranca Publica, do Exercito e da Marinha. Trata-se de uma concepcao de seguranca publica que busca controlar populacoes marginalizadas por meio de uma estrategia de ocupacao territorial com o uso de forcas militares.

Os conceitos como "pacificacao", "policia de proximidade" e "UPP Social" escondem e buscam legitimar a intencao oculta do projeto: "a ocupacao militar e verticalizada das areas de pobreza que se localizam em regioes estrategicas aos eventos desportivos do capitalismo videofinanceiro" (BATISTA, 2012, p. 58). Afinal, as favelas "beneficiadas" sao estrategicamente localizadas: comunidades do entorno do Maracana, da Zona Sul carioca e nos corredores de transito entre os principais aeroportos e esses locais. As ocupacoes e a permanencia dos militares no local fazem parte do plano de seguranca para os megaeventos, mas atingem os direitos dos moradores das comunidades envolvidas que sofrem inumeras violacoes.

A pesquisa etnografica realizada em agosto e setembro de 2010 em 10 comunidades que receberam UPPs e publicada pela Secretaria de Estado de Assistencia Social e Direitos Humanos (RIO DE JANEIRO, 2010) revela os pontos positivos e negativos das UPPs na percepcao dos moradores policiais e funcionarios de instituicoes nas favelas. Uma percepcao geral nas diversas comunidades e o aumento de seguranca com reducao dos crimes de morte, a saida das armas e o fim do confronto entre policia e traficantes, a melhoria na circulacao dentro da favela/ampliacao do direito de ir e vir, o aumento da acessibilidade para as pessoas de fora--tanto com o turismo e presenca das pessoas de fora em eventos como a possibilidade dos moradores receberem visitas. Tambem se constatou que os traficantes deixaram de ser referencia para os jovens e o consumo de drogas em vias publicas reduziu. Outros pontos positivos foram o impacto positivo na vida de criancas que foram as mais interessadas por projetos sociais, a melhoria do atendimento nos servicos publicos previamente existentes, especialmente de saude e educacao (com a melhoria do acesso aos postos de saude, o aumento da frequencia escolar e da seguranca nas escolas), a regularizacao dos imoveis, o aumento da facilidade de projetos sociais conseguirem voluntarios e profissionais para suas atividades. Alem disso, em alguns casos, houve significativa melhora da interlocucao entre policia e moradores.

Entretanto, muitos sao os problemas e as denuncias, especialmente dos moradores. Com a proibicao/limitacao das festas e bailes funks e a regulacao de diversos aspectos da vida cotidiana, os jovens sentem que a UPP "proibe tudo" e nao oferece nada em troca. Os jovens parecem ser os mais contrarios ao projeto e se sentem sem perspectivas e sem alternativas de lazer, tendo que procura-lo muitas vezes em outros bairros (buscam bailes funks em favelas nao pacificadas). Os lideres comunitarios se opoem ao projeto, pois foram enfraquecidos, a UPP implica em uma desmobilizacao politica dos moradores das favelas. Os principais problemas apontados foi o aumento de determinados tipos de conflito, como violencia intra-familiar, roubos e furtos (que antes eram coibidos pelo trafico), o aumento de revistas nos moradores, frequentemente abusivas, o aumento dos abusos policiais como extorsao e agressao, o problema do envolvimento dos policiais com meninas da comunidade, a proibicao de festas sem autorizacao e horarios para os bares fecharem, a perda de espacos de convivencia nao institucionalizados e/ou controlados. Se houve a entrada de servicos como o SAMU, agua, gas e luz e a regularizacao das ligacoes clandestinas aumentando a qualidade dos servicos, as cobrancas sao consideradas abusivas e desproporcionais. Ha problemas de falta de servicos publicos como a coleta de residuos, especialmente apos a retirada dos garis comunitarios. A "pacificacao" vem acompanhada da valorizacao e da especulacao imobiliaria que prejudica os moradores. Se o traficante armado sai de circulacao, o policial ostensivamente armado se torna presenca cotidiana.

Alem disso, os policiais que integram as UPPs sao recem-formados, inexperientes, sem qualquer preparacao especifica sobre os locais em que vao trabalhar e tambem sem condicoes adequadas para o trabalho, com falta de uniformes, equipamentos e sem receber beneficios prometidos. A dificil integracao entre moradores e policiais se torna ainda mais complexa com a substituicao de comandos (o que impede a continuidade das relacoes entre o comandante e a populacao) sem dialogo com a comunidade. Os moradores reclamam da falta de interlocucao permanente entre as UPPs e representantes dos moradores, da abordagem inadequada dos policiais, especialmente em mulheres (uma reclamacao recorrente e a falta de policiais mulheres) e do uso indevido de municao nao letal (spray de pimenta). Alem disso, faltam mecanismos de controle civil e externo da atividade policial, como ouvidorias. Todos os pesquisadores relataram a resistencia das liderancas e moradores ao tratar do tema UPP, seu consequente silencio e o ceticismo quanto a permanencia para alem das Olimpiadas e eleicoes. A suspeita geral e de que se trate de mais um programa de governo e nao uma politica de Estado.

A ideia central por tras das Unidades de Policia Pacificadora, a retomada, reconquista de territorio e um reflexo de uma concepcao militarizada de seguranca publica que adota o modelo de guerra para o combate ao crime, sendo o criminoso percebido como inimigo a ser eliminado, os policiais vistos como combatentes e a favela como territorio a ser ocupado. Na primeira parte deste artigo, demonstraremos como o projeto das UPPs se coaduna com dois elementos que marcam as politicas de seguranca publica no Brasil: a militarizacao da seguranca publica e uma visao maniqueista de sociedade que contrapoe civilizacao e barbarie, esta geograficamente localizada nas favelas. Na segunda parte, trataremos do componente territorial do projeto, a partir da geografia de Milton Santos, demonstrando como o projeto pretende uma reestruturacao urbana em um projeto empresarial de cidade.

  1. MILITARIZACAO E MANIQUEISMO: MARCAS HISTORICAS DA SEGURANCA PUBLICA BRASILEIRA

    A militarizacao da policia e sua funcao historica

    Quando o assunto e seguranca publica, por tras de metaforas belicas como "combate ao crime", "ocupacao da favela", "guerra as drogas" esta a questao da sua militarizacao. A militarizacao possui sentido amplo e e definida por Cerqueira (1998, p. 140) como "um processo de adocao e emprego de modelos, metodos, conceitos, doutrina, procedimentos e pessoal...

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