Usucapião Especial de Imóvel Urbano: Instrumento da Política Urbana

AutorCelso Augusto Coccaro Filho
CargoProcurador do Município de São Paulo e Advogado
Páginas5-13

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1. Introdução

O Estatuto da Cidade, autodenominação da Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, inclui o usucapião1 especial de imóvel urbano entre os 18 institutos jurídicos e políticos que se alinham, ao lado dos planos de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social, do planejamento das regiões e aglomerações metropolitanas, do planejamento municipal, dos institutos tributários e financeiros e do estudo prévio de impacto ambiental e estudo prévio de impacto de vizinhança, como instrumentos de consecução da política urbana, delineada no art. 182 da Constituição Federal.

O usucapião especial de imóvel urbano é conduzido pelos objetivos nitidamente traçados na norma constitucional: deve servir ao desenvolvimento das funções sociais da cidade, ao bem-estar de seus habitantes e ao meio ambiente.

Como forma de aquisição da propriedade de bem imóvel, nas duas modalidades em que se apresenta, individual e coletiva, sua parcela de contribuição à política urbana é afeita à função social da propriedade, ao gerar a perda desse direito, para quem não o exerce, tendo em vista aquele escopo apriorístico, e sua aquisição, para quem age de forma coincidente à sua finalidade.

É antigo o debate sobre o fundamento do usucapião, contrapondo-se teorias subjetivas às objetivas, como sói ocorrer no Direito Civil; mas, ao contrário de outros embates clássicos, que se alongaram com vitórias alternadas em sucessivas batalhas travadas pelos campos oponentes, as explicações subjetivistas logo cederam terreno, não só diante das naturais dificuldades de averiguação de condutas e quereres mas também porque o subjetivismo confere ao usucapião característica social minimalista, que o instituto não merece possuir.

De fato, não há sentido em fundamentar o instituto na passividade do proprietário, que não exerce o direito na plenitude dos elementos que o compõem (usar, abusar, reivindicar, dispor), supondo a ele ter renunciado, permitindo ao possuidor que dele se aproprie, como na ocupação de res derelicta.

Tal conclusão foi constituída sob a ótica do caráter absoluto e intangível da propriedade, que apenas admite violação pelo próprio titular. Desconsidera a função e a finalidade social que justificam a existência do próprio direito de propriedade.

No atual concerto jurídico, que ora revela plena harmonia - o extinto Código Civil de 1916 já não se presta como "ressalva" à Constituição Federal ou trincheira de resistência de interesses retrógrados -, concebe-se apenas a propriedade que cumpre sua função social.

O caráter absoluto persiste, sob a ótica do poder exercido sobre a coisa, apenas quando possível concebê-lo de forma isolada, pela estrutura interna, abstraindo-se o entorno social.

O usucapião, como forma de aquisição da propriedade, reveste-se do mesmo escopo e a ele se presta. A inação atribuída àquele que perde a propriedade indica violação à regra cogente da função social. O não-uso, a falta de aproveitamento, a inutilidade da coisa, que se reduz a mero componente patrimonial, ensejam análise objetiva, do próprio fato, indicando absoluto contraste com a função social, que traz implícitos uso e proveito.

O possuidor, que exerce a posse ad usucapionem, por outro lado, demonstra agir com base nos pressupostos da função social que deverá justificar a aquisição de seu direito. É interessante notar que o atributo da função social, conferido pelo possuidor ao bem, antecede a propriedade, que o pressupõe. O possuidor confere à coisa possuída o atributo que lhe foi negado pelo proprietário, que teria o dever legal de concretizá-lo, pelo seu exercício.

Consumada a aquisição, pelo decurso do tempo legal exigido - observando-se as demais qualificações da posse -, o possuidor, que antes dava plenitude à função social pelo exercício efetivo e de fato, passa a ser obrigado a observá-la.

A Teoria Objetiva de Ihering, que explica a posse como exteriorização da propriedade, identificada pelos seus elementos ou poderes, foi adotada pelo antigo Código Civil2 e preservada no Diploma atual.

O art. 1.196 define o possuidor como aquele que "tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à propriedade". Tais poderes devem ser, contudo, exercidos em "consonância com suas finalidades econômicas e sociais" (art. 1.228, § 1º, do Código Civil). Talvez se mostre inexato concluir que o possuidor deva ser identificado pelo exercício da função social da propriedade, ou que, exercendo alguns dos poderes inerentes àquele direito - o uso, por exemplo -, deva a ele ser negada a qualificação, verificado que o uso imprimido não corresponde àquele que pressupõe a função social.

O exercício dos poderes da propriedade, não compatível com a função social, implicaria, assim, negativa à caracterização da posse.

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A conclusão não se acomoda às características da posse comum, mas é útil na análise da posse hábil para o usucapião especial urbano.

Primeiro, sob a ótica endógena do instituto, dos elementos que constituem seus pressupostos: a posse deve ostentar a qualidade do animus domini3 ; a utilização do imóvel é vinculada à moradia, do possuidor ou de sua família; o direito será reconhecido uma única vez; há limitação de área; o lapso temporal reduzido, justificado pela concomitância dos demais pressupostos, indica a preocupação legal de propiciar a concretização de garantias constitucionais fundamentais, como a habitação e moradia.4

São qualidades que indicam a função social da posse e autorizam a aquisição da propriedade urbana: elementos de proveito efetivo e ação positiva, como morar ou habitar, dimensão do imóvel que não acarreta a exorbitância de tais atividades, restrição à figura do posseiro ou grileiro, dada a oportunidade singular de exercício etc.

A função social da posse que enseja o usucapião avulta nos elementos externos do instituto, evidenciados na sua utilização como instrumento de consecução da política urbana.

A política urbana tem como objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana; esta, por sua feita, deve ser concebida "em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental".

A posse capaz de ensejar o usucapião é qualificada; não é qualquer posse, como explica Caio Mário Silva Pereira:

Não basta o comportamento exterior do agente em face da coisa, em atitude análoga à do proprietário; não é suficiente a gerar aquisição, que se patenteie a visibilidade do domínio. A posse ad usucapionem, assim nas fontes como no direito moderno, há de ser rodeada de elementos, que nem por serem acidentais, deixam de ter a mais profunda significação (...)5

Tais observações permitem afirmar que a posse ad usucapionem, na modalidade estudada, deve conter elementos identificadores da função social da propriedade, não só aqueles que a lei considera como pressupostos internos do instituto mas também aqueles ditados pela política urbana, tal qual concebida pela Constituição Federal, impulsionada pelas diretrizes elencadas no art. 2º do Estatuto da Cidade.

Resta concluir que o referido direito deve ser moldado à sua função social, tanto para evitar que arraigadas concepções afeitas à vetusta usucapio obstem seu exercício - principalmente no caso do usucapião coletivo - quanto no sentido contrário, isto é, que as mesmas concepções, não conformes às necessidades da política urbana, permitam o exercício que não se acomoda à expectativa social e da pólis.

2. Usucapião especial individual

O usucapião individual é objeto do art. 9º do Estatuto da Cidade, que reproduz o art. 183 da Constituição Federal e é, por sua feita, reproduzido no art. 1.240 do Código Civil de 2002.

Tamanha insistência na fixação do instituto, com a reprodução fiel de seus elementos essenciais, espera poucas considerações a seu respeito.

2.1. Res habilis

Os arts. 183 da Constituição Federal e 1.240 do

Código Civil apontam como bem apto a propiciar a aquisição por usucapião especial área urbana de até 250m².

O art. 9º do Estatuto da Cidade acrescentou, por sua feita, "ou edificação".

O Texto Constitucional provoca insegurança interpretativa, no caso de edificações: o limite de área é relativo ao terreno ou à soma das áreas da terra nua e da construção?

No caso de apartamentos, deve ser computada a área útil ou total, incluindo áreas comuns do condomínio?

Em obra que merece o nome que ostenta, Benedito

Silvério Ribeiro expõe seu entendimento:

O mais consentâneo e justo é aceitar que o preceito constitucional teve por objetivo a área do terreno, mesmo porque foi também levada em consideração a aquisição ou a regularização de parcelas de solo destacadas de loteamentos à margem da lei e normas urbanísticas.

Nos casos de apartamentos, em que a fração ideal do solo é mínima, é possível levar-se em conta a área da unidade autônoma, que pode ser pouco significativa. A área a ser considerada, no caso, é a total, não a útil 6 .

A conclusão é, sem dúvida, compatível com os desígnios do instituto: a soma das áreas de terreno e edificação, no cômputo do limite, subtrai da lei o escopo de propiciar moradia (que pressupõe a edificação). Além do que, é patético aceitar que o possuidor proceda à demolição de construção de 100m² num terreno de 200m², para então fazer jus ao seu direito, morando numa choupana, para erguer nova construção, após a aquisição da propriedade.

O que deve ser evitado são situações de visível distorção, como absorção de áreas contíguas à construção, até o preenchimento do limite, com extravasamento abusivo do lote original ou daquele que faz pressupor a efetiva...

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