O uso da categoria 'raça' na biomedicina

AutorSilvia Cardoso Bittencourt - Sandra Caponi
CargoDoutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas. - Professora do Departamento de SAúde Pública e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas.
Páginas290-311
290
Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, v.10, n.97, p. 290-311, jul./dez. 2009
O uso da categoria “raça” na biomedicina
The use of the category "race" in biomedicine
Silvia Cardoso Bittencourt1
Sandra Caponi2
RESUMO
O propósito deste estudo é analisar o conceito de “raça” na biomedicina a partir das
reflexões de Hannah Arendt, Richard Lewontin e Marshall Sahlins. O uso da categoria
“raça”, geralmente, tem gerado discussões epistemológicas em várias áreas do
conhecimento, pois carrega aspectos políticos e ideológicos nem sempre explícitos.
Assim, a partir de exemplos de utilização de “raça” na área biomédica, questiona-se
seu uso enquanto categoria de análise. Um efeito indesejável ao admitir características
biológicas inatas é que fatores relacionados ao modo de vida e ao contexto ao qual o
indivíduo pertence podem ser negligenciados. Portanto, conclui-se que associar
condições de aptidão, saúde ou propensão a determinada conduta com “raça” como
categoria biológica, desvia o olhar de aspectos históricos, condições sócio-econômicas
e discriminação cultural, podendo levar à defesa de posições ideológicas próximas ao
determinismo biológico.
Palavras-chave: Determinismo biológico. Raça. Biomedicina. Racismo. Etnicidade.
Ideologia.
ABSTRACT
The purpose of this article is to analyze the concept of race in biomedicine by
theoretical reflections of Hannah Arendt, Richard Lewontin and Marshall Sahlins. The
use of the category "race" usually has generated epistemological discussions in several
areas of knowledge, because it carries political and ideological not always explicit.
Thus, as examples of the use of race in the biomedical area, we question its use as a
category of analysis. One undesirable characteristics to admit is that innate biological
factors related to lifestyle and the context to which the individual belongs can be
neglected. Therefore, it follows that attach conditions of fitness, health, or prone to
certain conduct with race as a biological category, look away from the historical, socio-
economic and cultural discrimination, which may lead to defend positions close to the
ideological determinism biological.
Key words: Biological determinism. Race. Biomedicine. Racism. Ethnicity. Ideology.
1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Hu manas. scbflor@hotmail.com
2 Professora do Departamento de SAúde Pública e do Programa de Pós -Graduação Interdisciplinar em Ciências
Humanas. sandracaponi@newsite.com.br
291
Cad. de Pesq. Interdisc. em Ci-s. Hum-s., Florianópolis, v.10, n.97, p. 290-311, jul./dez. 2009
1. INTRODUÇÃO
“O que nos interessa especialmente, porém, é que, no horizonte biopolítico que
caracteriza a modernidade, o médico e o cientista movem-se naquela terra de
ninguém onde, outrora, somente o soberano podia penetrar.” (AGAMBEM,
2002, p.166)
Poderíamos citar vários exemplos em que a prática biomédica tem alcançado
êxito, justificando a sua manutenção como prática social. Por outro lado, tem sido
questionada por diversos segmentos da sociedade (de grupos leigos a profissionais de
diferentes áreas) a extrapolação de determinadas “verdades” baseadas em
conhecimentos supostamente científicos para problemas que o ser humano enfrenta e
que não estão vinculados apenas à sua biologia. Ou ainda, que podem se manifestar
no corpo biológico, mas cujas origens não estão neste último, e sim na forma como
estamos vivendo enquanto sujeitos inseridos em determinada sociedade. Mais do que
isso, alguns conceitos divulgados na prática biomédica como “verdades” por
pretenderem ser baseados em critérios das ciências biológicas e biomédicas são
reflexo da ideologia de determinados cientistas. Um desses conceitos que se
estabeleceram como uma verdade científica é o conceito de “raça”.
O propósito deste estudo é analisar o conceito de “raça” a partir das reflexões de
Hannah Arendt (1989)3, Richard Lewontin (2003, 2006) e Marshall Sahlins (1976,
1997), e de três exemplos de situações em que esse conceito é utilizado na área
biomédica. A categoria “raça” continua sendo utilizada em pesquisas nessa área e, em
consequência, mantém-se como um critério para a conduta médica e o delineamento
de políticas públicas para alguns problemas de saúde. Como exemplos, serão
utilizados os casos da anemia falciforme em negros (FRY, 2005b; LEWONTIN, 2006), a
refratariedade da ação de medicamentos anti-hipertensivos para a “raça” negra como
justificativa para o desenvolvimento de drogas para tratar Hipertensão Arterial
Sistêmica (HAS) específicas para esse grupo (COOPER; KAUFMAN; WARD, 2003;
KAUFMAN, 2006, 2008; LAGUARDIA, 2007) e a busca de genes relacionados ao
Diabetes Mellitus Não Dependente de Insulina (DMNID) em determinados grupos
3 Esta autora considera raça uma categoria ligada à ideologia do racismo, e não uma categoria biológica
baseada em critérios científicos.

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT