Usucapião familiar pro morare: interpretação sistemática do requisito de abandono do lar

AutorJosiane Araújo Gomes
Páginas413-425

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Ver Nota1

Apresentação

O presente estudo, ao eleger o usucapião familiar pro morare (art. 1240-A, do Código Civil) como seu objeto de análise, tem por objetivo ixar o correto signiicado do requisito de abandono do lar, à luz da normatização civilista dos Direitos Reais. Por se tratar de direito novo ? haja vista ser a primeira vez que o legislador pátrio dispõe que o abandono do lar pelo ex-consorte ou ex-convivente possa levar à consequência jurídica de usucapião em favor daquele que permaneça no imóvel, utilizando-o como sua moradia ?, o usucapião familiar pro morare tornou-se alvo de intensas críticas fundadas em interpretações equivocadas dos seus requisitos, dentre as quais se destaca a que identiica o retorno à discussão quanto à culpa pelo término da sociedade conjugal, sob o argumento de que a veriicação do abandono do lar pressupõe a perquirição sobre o motivo da separação do casal. Dessa forma, o presente estudo enfrentará o questionamento acerca do signiicado do requisito de abandono do lar, com o intuito de extirpar qualquer interpretação que tenha por fundamento a atribuição de culpa pelo término da vida conjugal, bem como irmar a compreensão de que referida modalidade usucapiatória deve ser vista e aplicada de acordo com as normas gerais do sistema jurídico a que pertence, qual seja, os Direitos Reais.

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1 Delimitação do objeto de estudo: o usucapião familiar pro morare

A Lei nº 12.424, de 16 de junho de 2011, responsável por promover alterações no programa habitacional do Governo Federal “Minha Casa, Minha Vida”2, introduziu ao texto do Código Civil (Lei nº 10.406/02), no Capítulo referente à aquisição da propriedade imóvel por usucapião, o art. 1.240-A, que dispõe sobre nova modalidade de aquisição usucapiatória, neste estudo denominada de usucapião familiar pro morare.

Neste sentido, prescreve o art. 1.240-A, in verbis:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.

§ 2º (VETADO).

Em vista do texto legal, veriica-se que o usucapião3familiar pro morare aproxima-se da modalidade de usucapião especial urbano individual, prevista no art.

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1834, da Constituição Federal de 1988, e regulamentada pelo art. 9o5, da Lei nº
10.257/01 (Estatuto da Cidade) – dispositivo este reproduzido pelo art. 1.2406 do Código Civil ?, o qual possui por fundamento redeinir o sentido da propriedade urbana, por ser instrumento para, além da aquisição do domínio, regularizar a utilidade da moradia, que deve proporcionar distribuição de riqueza e estabilidade material.

De fato, veriicam-se entre o usucapião especial urbano individual e o usucapião familiar pro morare requisitos comuns, quais sejam: exercício de posse mansa, pacíica e ininterrupta sobre imóvel urbano com extensão de até duzentos e cinquenta metros quadrados, para ins de moradia própria ou da família, não podendo o usucapiente ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural, bem assim não ter sido o interessado beneiciado com a prescrição aquisitiva em momento anterior.

Entretanto, quatro requisitos especíicos diferenciam as referidas modalidades de aquisição de propriedade por usucapião, em torno dos quais surge a grande parte dos questionamentos doutrinários acerca do usucapião familiar pro morare, quais sejam: ocorrência entre ex-cônjuges ou ex-companheiros; abandono do lar;

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imóvel urbano comum; prazo de dois anos para aquisição do domínio integral do imóvel.

Nesse passo, veriica-se que o usucapião familiar pro morare visa permitir que o cônjuge ou companheiro que permaneça no imóvel familiar, com a saída deinitiva do outro consorte ou convivente, possa opor a este a pretensão de usucapir a parte que lhe pertença, passando a titularizar a integralidade da propriedade outrora mantida em regime de comunhão entre o ex-casal. Portanto, constata-se, de plano, que o fundamento do usucapião familiar pro morare é mais especíico que o usucapião especial urbano individual, na medida em que, ao encontrar seu embasamento nas noções da função social da propriedade e da posse, é responsável por atribuir o direito real de propriedade àquele que, desfeita, em deinitivo, a relação entre os consortes ou companheiros, permaneça possuindo o imóvel para sua moradia, sem qualquer oposição da parte ex adversa.7

Dessa forma, o usucapião familiar pro morare altera situação até então vigente, em que a saída de um dos consortes/companheiros do lar não trazia qualquer alteração à situação patrimonial do casal, apenas caracterizando a impossibilidade da vida conjugal e, por consequência, o pedido de divórcio ou desfazimento da união estável. Seu advento irá ocasionar mudança de comportamento social, na medida em que fomentará a regularização imediata da partilha de bens ou, caso não seja possível, a oposição formal, pela parte interessada, contrária à posse exercida pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro a im de resguardar seu direito de propriedade.

Diante disso, o presente estudo volta-se à análise do usucapião familiar pro morare, abordando, especiicamente, o requisito de abandono do lar, com o intuito de extirpar qualquer interpretação que tenha por fundamento a atribuição de culpa pelo término da vida conjugal, bem como irmar a compreensão de que referida modalidade usucapiatória deve ser vista e aplicada de acordo com as normas gerais do sistema jurídico a que pertence, qual seja, os Direitos Reais.

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2 Abandono do lar: significado à luz da doutrina dos direitos reais

Nenhum requisito do usucapião familiar pro morare é alvo de tantas críticas e interpretações equivocadas como o abandono do lar pelo ex-cônjuge ou ex-companheiro. Com efeito, a expressão “abandonou o lar”, disposta no caput do art. 1.240-A, é entendida, por parte relevante da doutrina, como o retorno à discussão quanto à culpa pelo término da união conjugal, argumento este que, inclusive, suscitou o questionamento doutrinário acerca de sua constitucionali-dade em face da alteração promovida pela Emenda Constitucional nº 66/2010.

A im de ilustrar referida interpretação do requisito abandono do lar, interessante trazer à baila os dizeres de Dias8, in verbis:

De forma para lá de desarrazoada a lei ressuscita a identiicação da causa do im do relacionamento, que em boa hora foi sepultada pela EC 66/2010 que, ao acabar com a separação fez desaparecer prazos e atribuição de culpas. [...] Além disso, ressuscitar a discussão de culpas desrespeita o direito à intimidade, afronta o princípio da liberdade, isso só para lembrar alguns dos princípios constitucionais que a lei viola ao conceder a propriedade exclusiva ao possuidor, tendo por pressuposto a responsabilidade do co-titular do domínio pelo im da união.

No mesmo sentido, destacam-se os dizeres de Donizetti9, in verbis:

O fato é que essa esdrúxula modalidade de usucapião vai ensejar o revolvimento de antigas e dolorosas feridas, tudo no afã de demonstrar que o ‘meu inferno é o outro’. Estamos assistindo ao retorno do ingrediente denominado culpa, o

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qual foi abolido da indigesta receita das separações conjugais pela recente EC 66/2010. A propósito, a principiologia constitucional, na qual se assentam as múltiplas possibilidades de uniões afetivas, sejam casamentos ou uniões estáveis, é informada pelo afeto, o que não se coaduna com qualquer perquirição acerca da culpa. Nessa linha, não se descarta a inconstitucionalidade do novel art. 1.241-A. Mas essa é uma questão cujo enfrentamento relego para os institutos especializados dos Direitos das Famílias.

Em vista disso, cumpre consignar que, para a correta deinição do requisito abandono do lar, é necessária a utilização do método de interpretação sistemático. De fato, de acordo com referido método, a interpretação de determinado enunciado normativo exige, para a sua adequada compreensão, a análise de todo o acervo normativo ligado, direta ou indiretamente, ao assunto nele tratado.10

Logo, a interpretação da expressão “abandonou o lar” deve considerar a ordem constitucional vigente, bem como o texto normativo infraconstitucional em que está inserido.

Dessa forma, tem-se por inquestionável que o Direito das Famílias não mais alberga a discussão quanto à culpa pelo término da sociedade conjugal11, notada-

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mente após o advento da Emenda Constitucional nº 66/2010 que, ao promover a alteração da redação do art. 226, § 6º, da Constituição Federal de 1988, ocasionou a extinção dos requisitos para a concessão do divórcio, que...

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