Usufruto e administração dos bens dos filhos

AutorClaudio Ferreira Pazini
Páginas379-396

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1. Introdução

No Brasil, a regulamentação legal das relações familiares tem sofrido diversas alterações nos últimos anos. Até poucas décadas atrás, o regramento dessas relações atendia aos interesses da figura do cônjuge ou do progenitor masculino, considerado o chefe de família. A evolução dos costumes, a busca por maior igual-dade e justiça nos relacionamentos, entre outros fatores, suscitaram reformulação especialmente da legislação regulamentadora do casamento, do concubinato (que passou a ser denominado união estável) e da relação entre pais e filhos, interessando-nos, no presente estudo, esta última.

No direito romano, o pai de família tinha poderes sobre seus filhos para puni-los, vendê-los e até mesmo dispor de suas vidas. Na Grécia, também havia grande rigor na autoridade do pai sobre os filhos, o que, no entanto, mais cedo se atenuou. O poder autoritário do pai sobre os filhos foi disseminado pelo mundo, mantendo seu escopo de atendimento aos interesses paternos. Em maior ou menor grau, de forma generalizada, os ordenamentos jurídicos regulamentavam – e muitos ainda o fazem – as relações entre pais e filhos mais como um poder daqueles sobre estes que como uma responsabilidade. Nas Ordenações, predominava o patriarcalismo, competindo ao pai administrar a vida dos filhos, sua educação, seu patrimônio etc.

Aos poucos, a autoridade paternal foi sendo atenuada em vários países do mundo. De poder absoluto sobre os filhos, o pai passou a ter responsabilidades sobre eles. Tal ocorreu no direito germânico e em vários ordenamentos jurídicos estrangeiros.

As mães passaram a dividir com os pais a autoridade (e as responsabilidades) sobre os filhos, embora em muitos países isso ainda não se tenha verificado. O Código Civil francês de 1804, art. 371, estabelece: L’enfant, à tout âge, doit honneur et respect à ses père et mère (A criança, em qualquer idade, deve honrar e respeitar o pai e a mãe).

O Código Civil brasileiro de 1916, art. 380, estabelecia: Durante o casamento, exerce o pátrio poder o marido (...), e, na falta ou impedimento seu, a mulher. Posteriormente, a Lei 4.121/1962 (conhecida como Estatuto da Mulher Casada) promoveu alteração no dispositivo legal, passando a prever que o pátrio poder competiria ao pai, com colaboração da mãe, sendo que, em caso de divergência,

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prevaleceria a decisão paterna, ressalvando-se à mulher o direito de recorrer ao Judiciário.

Atualmente, o pátrio poder passou a ser exercido em igualdade de condições pelo pai e pela mãe, o que levou o legislador a substituir tal denominação por poder familiar. Na literatura jurídica, é comum o emprego de expressões como poder parental ou autoridade parental, que não indicam prioridade ou prevalência da decisão paterna em relação à materna. Em caso de divergência no exercício do poder familiar, qualquer dos genitores pode recorrer ao Judiciário, que deverá decidir a contenda conforme os interesses do menor (CC, arts. 1.631 e 1.690 e ECA, arts. 21 e 22). A alteração atende à isonomia entre os sexos preconizada pela atual Constituição da República, que não faz discriminação entre os direitos e deveres do pai e da mãe em relação aos filhos (arts. 5º, caput e inc. I, e 229).

A mudança de paradigma não foi somente acerca dos titulares do poder familiar, mas também quanto a seu conteúdo. Passou-se de um poder visando aos interesses paternais para um conjunto de responsabilidades com vistas ao bem-estar e ao desenvolvimento (físico, mental, educacional, cultural, social etc.) do filho menor. Muito embora a legislação ainda empregue a expressão poder familiar, o regramento indica um complexo de deveres dos pais em relação aos filhos. O art. 229 da Constituição da República prevê que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Entre as normas constitucionais de proteção do menor, destaca-se também o art. 227, que dispõe:

É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Certamente, a interpretação da legislação infraconstitucional acerca do poder familiar deve levar em conta essas incumbências constitucionais. Dessa forma, as prerrogativas dos pais, próprias do poder familiar, descritas no art. 1.634 do Código Civil – que, de maneira geral, referem-se a assuntos não patrimoniais, embora possam ter reflexos sobre bens materiais – devem ser exercidas sempre tendo em vista o interesse do filho menor. A mesma orientação constitucional – de proteção dos interesses do filho menor – aplica-se à interpretação do art. 1.689 do diploma civil, que prevê o usufruto e a administração dos bens dos filhos pelos pais, tema que nos inspira a elaborar este estudo.

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2. Poder familiar: um direito ou um dever dos pais?

O poder familiar é o conjunto de incumbências (deveres) e prerrogativas (poderes) dos pais sobre a pessoa e os bens dos filhos menores não emancipados. Está regulamentado pelos arts. 1.630 a 1.638 e 1.689 a 1.693 do Código Civil, impondo importante participação dos pais nos aspectos materiais e imateriais de interesse dos filhos.2

Trata-se de munus público indisponível (inalienável), imprescritível e intransmissível por vontade dos pais ou dos filhos.3O rol de deveres dos pais em relação aos filhos previsto no diploma civil não é taxativo, porquanto há direitos da prole previstos constitucionalmente que não foram contemplados pelo Código, conforme se pode verificar no art. 227 da Carta.

Conforme afirmado, tendo em vista os comandos constitucionais protetivos do menor, o poder familiar cria para ambos os pais a função (incumbência) de proporcionar aos filhos menores (não emancipados) educação, assistência, saúde, lazer, dignidade, proteção contra discriminação, violência, abusos e inúmeros tipos de agressões físicas ou morais entre outras providências que visam a seu bem-estar e desenvolvimento.

Diante dessas incumbências próprias do poder familiar, muitos concluem que se trata de um dever e não um poder, chegando até mesmo a adotar a expressão dever familiar, pátrio dever ou poder-dever.

Deveras, nos tempos atuais, é inquestionável que o poder familiar crie deveres para os pais. Vale dizer, as prerrogativas dos pais, previstas em lei – com destaque para os arts. 1.634 e 1.689 do Código Civil –, devem ser exercidas com vistas a promover os interesses do menor.

Não obstante, é correto considerar que o poder familiar, de fato, gera para os pais prerrogativas sobre a pessoa e os bens do filho menor, como o próprio nome

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do instituto sugere. Realmente, a legislação atribui aos pais o direito de decidir como criar e educar seus filhos, escolher a escola em que irão estudar, selecionar as atividades de lazer que lhes serão proporcionadas, entre outras prerrogativas inerentes à paternidade/maternidade. Os pais têm esse poder de decisão. São decisões ínsitas à relação familiar, não sendo criadas pelo Direito, mas reconhecidas por ele. Essa sujeição natural, legalmente assimilada, dos filhos à vontade dos pais revela, realmente, um poder destes sobre aqueles.

Entretanto, esse poder dos pais sobre a pessoa e o patrimônio dos filhos encontra grande limitação no interesse desses últimos. Em outras palavras, os pais têm, sim, poder para decidir sobre a criação, educação e desenvolvimento dos filhos, mas suas decisões devem ser sempre pautadas no interesse da prole. Assim, é bem verdade que a legislação confere discricionariedade aos pais para gerir a vida e os bens dos filhos. No entanto, essa discricionariedade encontra limites no princípio da proteção dos interesses e do bem-estar do menor, já que, atualmente, o poder familiar tem a função de promover essa tutela.

Em síntese, o fato de o poder familiar criar deveres para os pais não indica que tenha deixado de ser um poder, porquanto eles têm discricionariedade para decidir sobre como criar, educar, sustentar, gerir os bens dos filhos etc. Deve-se ter em mente, contudo, que esse poder discricionário não é absoluto, devendo ser exercido de acordo com o melhor interesse da prole.

3. Usufruto e administração dos bens dos filhos

O Código Civil, além de incumbir os pais de representarem os filhos menores de dezesseis anos e assistirem os que tenham idade entre dezesseis e dezoito anos (art. 1.690), estabelece outras decorrências do poder familiar. O art. 1.689 prevê importantes efeitos patrimoniais do poder familiar:

O pai e a mãe, enquanto no exercício do poder familiar:

I – são usufrutuários dos bens dos filhos;

II – têm a administração dos bens dos filhos menores sob sua autoridade.

É de observar-se que o inc. I, que estabelece o usufruto dos pais, refere-se aos bens dos filhos, enquanto o inc. II, relativo à administração desse patrimônio, refere-se aos bens dos filhos menores sob sua autoridade. Quer-nos parecer que a

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diferença redacional não indica distinção entre os pais que terão usufruto e os que terão administração dos bens dos filhos. Ou seja, o usufruto dos pais também só existirá sobre os bens dos filhos menores sob sua autoridade. Isso porque o caput do dispositivo legal prevê que as prerrogativas/incumbências relacionadas em seus incisos se aplicam aos pais enquanto no exercício do poder familiar, indicando que tanto o usufruto como a administração dos bens só se aplicam se a prole for de menoridade e estiver sob a autoridade deles, vale dizer, menores não emancipados.

É...

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