Direitos fundamentais, cláusulas pétreas e democracia: campo de tensão

AutorPaulo Ricardo Schier
Páginas2-10

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Autores tão diversos como Robert Alexy12, Konrad Hesse3, Vieira de Andrade4, Canotilho5, Ingo Sarlet6 e Perez-Luño7, dentre outros, insistem que é preciso o desenvolvimento de teorias constitucionais concretas, voltadas a uma experiência historicamente situada, com a finalidade de desenvolver uma dogmática adequada para responder as demandas específicas da sociedade. Nada obstante a propagação cada vez mais intensa desta espécie de pensamento, parece certo que a existência de algum consenso em relação a necessidade de um constitucionalismo chamado de adequado, concreto ou estatalista não impede que se reconheça que grande parte dos problemas constitucionais, bem como de seus valores, alcançou uma dimensão global.

Não é sem razão que Bruce Ackerman8, referindo-se a aceitação generalizada de alguns princípios políticos, admite a existência de um "constitucionalismo mundial". Horst Dippel, através de leitura histórica, enuncia catálogo de princípios que caracterizariam, em plano mundial, o constitucionalismo moderno9. No Brasil, embora assumindo postura crítica, José Eduardo Faria descreve o processo de universalização de alguns valores do constitucionalismo como forma de legitimação genérica do sistema político10.

Nesta seara, dentre os valores que, hegemonicamente, costumam aparecer na pauta do constitucionalismo moderno ocidental como dotados de universalidade despontam os direitos fundamentais e a democracia.

Deveras, no mundo atual o reconhecimento constitucional de um rol mais ou menos extenso de direitos fundamentais é fenômeno facilmente constatável11, sendo possível afirmar o mesmo em relação à democracia, invocada em não poucas constituições, mesmo antidemocráticas, como elemento de legitimação do poder12. Não sem razão, aliás, pensadores de tradições teóricas distintas sustentam que os direitos fundamentais integram o cerne do constitucionalismo moderno13. Os direitos Page 3 fundamentais, não raro, são apontados como integrantes do núcleo principal das atuais constituições14, que teriam se desenvolvido exatamente como instrumentos de tutela desses direitos15.

Ao mesmo tempo em que não há grande divergência na afirmação de que direitos fundamentais e democracia assumiram uma dimensão mundial, parece também existir um concerto amplo no sentido de se reconhecer uma relação necessária entre esses valores. Carlos Bernal Pulido, neste sentido, leciona que "os direitos fundamentais representam, sem lugar para dúvidas, a coluna vertebral do estado constitucional. Igualmente ao seu antecessor, o estado liberal, o estado constitucional não se propõe como um fim em si mesmo, mas como um instrumento para que os indivíduos desfrutem de seus direitos na maior medida possível. Por isso os direitos fundamentais são a base do estado constitucional, o motor de sua ação e também o seu freio"16. Hans Peter Schneider, de modo mais incisivo, chega ao ponto de se sustentar que sem uma tutela adequada dos direitos fundamentais não existe democracia. Para este autor, "a democracia pressupõe os direitos fundamentais da mesma forma que, ao contrário, os direitos fundamentais só podem adquirir sua plena efetividade em condições democráticas"17.

Se a correlação entre direitos fundamentais e democracia é um dado inafastável, por certo não se pode daí concluir que o diálogo entre eles seja sempre harmônico. Existe nesta relação também um campo conflitual.

Nos países em que se admite a supremacia da constituição escrita18, onde existem mecanismos de controle de constitucionalidade e nos quais este controle pode se desenvolver numa perspectiva substancial, tomando-se como paradigma algum núcleo axiológico mais ou menos rígido, é comum a emergência de tensões entre direitos fundamentais e democracia. Observe-se que Robert Alexy, ao admitir três Page 4 possibilidades para contemplar as relações entre direitos fundamentais e democracia, fazendo referência à concepção que ele designa como realista, afirma que a existência de proteção aos direitos fundamentais é uma experiência ao mesmo tempo profundamente democrática e antidemocrática. Democrática porque asseguram o desenvolvimento da democracia e de suas condições de deliberação e, antidemocrática, porque desconfia do processo democrático ao retirar, do plano deliberativo das maiorias, a possibilidade de algumas decisões ou ações19.

Este aspecto conflitual, é preciso salientar, tem se mostrado ainda mais problemático nos sistemas constitucionais que admitem a existência de cláusulas de eternidade20 e, em tais cláusulas, estão presentes os direitos fundamentais.

Isto porque a existência de uma constituição escrita e rígida, dotada de supremacia formal e também material, é por si só um mecanismo de tutela dos direitos fundamentais. A simples existência de um mecanismo mais complexo de produção, alteração e supressão do texto formal da constituição é capaz de retirar, do campo decisório de maiorias simplificadas, a afetação ordinária dos direitos fundamentais21. Todavia, quando os direitos fundamentais são tutelados através de cláusulas de intangibilidade, retira-se a possibilidade de que inclusive maiorias expressivas possam dispor sobre esses direitos. Ou seja, eles ficam afastados do âmbito deliberativo de qualquer maioria, criando, assim, um núcleo identitário ou essencial na constituição22.

Neste quadro a relação entre direitos fundamentais e democracia determina a emergência de um paradoxo: quanto mais se busca proteger os direitos fundamentais, pressupostos da democracia, através de mecanismos rígidos de tutela, mais se autorizam a limitação e a constrição da manifestação do princípio majoritário. Embora a questão não seja nova23, parece que o problema central não pode ser colocado em termos de "qual pólo deve ser o vencedor?". A questão central parece residir, antes, na localização de um ponto de equilíbrio24. E a resposta, neste sítio, não pode ser universal. A receita há de variar de acordo com cada experiência histórica, cada momento, contexto e espaços geográfico e político.

Por isso é necessário referir que a Constituição brasileira de 1988 assume, em seu texto, um modelo tipicamente compromissório. Ela expressa um amplo compromisso político-axiológico entre as mais diversas classes e frações de classes participantes do Page 5 processo constituinte, refletindo, assim, a pluralidade existente na sociedade brasileira25. É, ademais, uma constituição preocupada e comprometida com a afirmação da democracia. Afinal, a sociedade brasileira vinha de longo período de experiência autoritária decorrente de um golpe militar levado a efeito em 1964 e que nada primou pelo respeito aos direitos fundamentais. Logo, a Lei Fundamental de 1988 buscou romper com um passado antidemocrático, marcado pela tortura, pelo medo e pela negação das liberdades constitucionais. Esta mesma constituição, igualmente, buscou garantir uns poucos direitos já incorporados ao patrimônio civilizatório nacional, bem como propor uma ampla gama de direitos sociais prestacionais e normas programáticas buscando a criação de um projeto emancipatório para a comunidade26, o que implicou na tentativa de revisão do próprio papel do Estado.

É compreensível, assim, a preocupação que o constituinte brasileiro denota com a proteção dos direitos fundamentais. Eles vêm abrigados, por óbvio, em uma constituição escrita e rígida. A rigidez constitucional, no Brasil, pode ser observada através da leitura de seu art. 60, onde se verifica a emergência de um mecanismo mais complexo de produção, alteração e supressão do texto formal da constituição. De acordo com este dispositivo a constituição somente pode ser emendada mediante proposta (i) de um terço, no mínimo, dos membros da Câmara dos Deputados ou do Senado Federal, (ii) do Presidente da República ou (iii) de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros. No que tange com a discussão e aprovação, a proposta de emenda deve ser discutida e votada em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, separadamente, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos os turnos de cada casa parlamentar...

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