Usurpação

AutorFernando de Almeida Pedroso
Ocupação do AutorMembro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal. Membro da Academia Taubateana de Letras
Páginas573-583

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16.1. Introdução

Tirante a possibilidade, excepcional, diga-se de passagem, de o agente do crime de extorsão comum visar como proveito patrimonial a um bem imóvel (v. n. 15.2), nos demais delitos patrimoniais, estudados anteriormente, seu objeto material é representado por valores ou coisas alheias móveis.

Embora a proteção relativa aos bens imóveis seja conferida com maior amplitude e melhor eficácia na esfera do direito privado, a lei penal não descurou de igualmente outorgar-lhes a devida tutela, não obstante bem mais infrequente a sua lesão neste setor.

De tal arte, para os bens imóveis não ficarem a descoberto de qualquer proteção, a lei penal cuidou, na sequência da incriminação das condutas lesivas ao patrimônio alheio, de definir aquelas que violam bens de natureza imóvel. A usurpação, como entidade delituosa, espelha esta preocupação da lei. Os preceitos incriminadores que a ela correspondem visam a proteger diretamente a propriedade imóvel ou sua posse, exceto na derradeira figura delituosa que, tendo os semoventes como objeto, apresenta-se de certo modo deslocada do contexto. Justifica-se talvez esta inclusão no elenco apenas porque os semoventes, considerados de forma coletiva na dicção da lei (gado ou rebanho), incorporando de regra a propriedade rural, constituem no direito privado imóveis por acessão intelectual (embora sejam bens móveis para o direito penal) e por não denotar o agente propósito imediato de remoção dos semoventes do lugar em que estão, pois substancialmente só procura alterar ou desviar sinais indicativos da propriedade para proveito futuro.

Como o bem imóvel por natureza é insuscetível de ser removido do lugar no qual estão fincadas as suas raízes, é de clareza solar que seu apoderamento ilícito somente pode dar-se mediante a alteração de suas linhas divisórias, ou por desvio ou esbulho. Daí o desdobramento da usurpação nas seguintes modalidades criminosas: alteração de limites (art. 161, caput, CP), usurpação de águas (art. 161, § 1º, n. I, CP), esbulho possessório (art. 161, § 1º, n. II, CP) e, finalmente, de certa maneira afastada do quadrante, a figura da supressão ou alteração de marca em animais (art. 162, CP), a seguir examinadas.

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16.2. Alteração de limites

Núcleos do tipo. No crime de alteração de limites (art. 161, caput, CP), as condutas incriminadas compõem um crime de ação múltipla alternativa ou de conteúdo variável e se expressam pelas ações de suprimir (arrancar, eliminar, destruir, fazer desaparecer) ou deslocar (afastar, transferir, desviar, mudar algo de um lugar para outro).

A fixação de marco ou sinal indicativo de propriedade para confundir linhas limítrofes não se encarta tipicamente no dispositivo incriminador. Este somente faz alusão à supressão ou deslocamento de tais sinais. A tanto não equivale, pois a analogia in malam partem é penalmente repudiada, o acréscimo ou assentamento de sinais1862.

Objeto material. As condutas puníveis devem incidir sobre tapume (vedação de uma área com muros, alambrados, cercas de arame, ripas ou estacas, sebes de arbustos, plantas, ramos), marco (sinais ou pilares estruturais cravados na superfície do solo com pedras, ferro ou concreto como forma de demarcação de área) ou qualquer outro sinal indicativo de propriedade (valas, cursos d´água, árvores, fossos, caminhos e trilhas etc.), mesmo de natureza provisória.

É irrelevante se esses sinais estão fixos no solo ou suspensos, se são contínuos (cercando integralmente o imóvel) ou intervalados (postos em determinados pontos), pois basta, em qualquer situação, que sirvam para assinalar os limites, os confins entre dois imóveis1863. Mas devem ser visíveis, ainda que não patentes ou ostensivos1864.

Se a alteração de limites é realizada por documentos, adquire tonalidade típica um dos crimes de falsidade.

O comportamento incriminado deve alterar, ainda que parcialmente, a delimitação física do imóvel, de modo a tornar incerta a zona limítrofe, produzindo confusão e dificuldades para a restauração ou identificação da linha de divisa1865. Desse modo, para exemplificar, a remoção de cerca velha não perfaz o delito se seus vestígios não são apagados ou destruídos1866.

Os bens imóveis, por ausência de distinção, podem ser públicos ou particulares1867 e a própria lei expressamente diversifica a natureza do bem imóvel para efeito da persecução penal cabível ao autor (ut infra - n. 16.6).

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Sujeitos do delito. Comumente afirma-se que sujeito ativo do delito é tão só o proprietário ou possuidor lindeiro, que altera os limites do imóvel vizinho para o fito de acrescer área confinante à própria. Sob esse prisma, o crime seria próprio ou especial por apresentar círculo de autoria delimitado. Contudo, não é bem assim. Com percuciência observa Magalhães Noronha que não se pode excluir como sujeito ativo também o futuro comprador que pratica a alteração para ampliar a área do imóvel que vai adquirir1868. Não procede a argumentação contrária de Nélson Hungria ao aduzir que nesta situação a compra do imóvel é uma possibilidade condicionada, um simples e mero projeto, de modo a somente configurar o crime a possibilidade de uma apropriação imediata1869. Ora, o crime tem natureza formal e se consuma com a simples prática de qualquer das ações incriminadas (infra), desde que o agente esteja animado do propósito da apropriação (quantum satis é o bastante). Não se requer para o aperfeiçoamento do delito a concreção ou o êxito da pretendida apropriação. Assim sendo, não há como negar que o comprador, ao realizar um dos elementos típicos nucleares com o escopo de auferir vantagem em futura e eventual aquisição do imóvel, comete o crime em tela.

Também o condômino, salienta o nitente Magalhães Noronha, pode figurar como agente: no condomínio pro diviso, em que há somente indivisão de direito, mas não de fato, é possível que o condômino remova marcos e tapumes para obter, ainda que provisoriamente, a posse da parte usurpada1870. Seguindo a mesma linha de raciocínio, igualmente o possuidor pode ser sujeito ativo, uma vez que, para a aquisição de imóvel via usucapião, marcos e tapumes podem ser alterados com o objetivo de ampliação da posse, invadindo-se imóvel vizinho1871.

Embora a posse também seja protegida, o proprietário não apresenta capacidade delitiva para a consecução do delito em comento, simplesmente porque não pode apropriar-se daquilo que já lhe pertence (a coisa imóvel deve ser alheia). Ilustrativo é o exemplo de Nélson Hungria: o proprietário de imóveis contíguos, estando arrendado um deles, não comete usurpação ao alterar seus limites, ainda que o fim seja o de diminuir a área arrendada (o fato não será mais que um ilícito civil)1872.

Já na posição inversa, divergindo do pranteado Hungria1873, reputamos caracterizado o delito. No arrendamento de um dos imóveis confinantes, pertencentes ao mesmo dono, se o locatário pratica a alteração de limites para o fim de aumentar a área locada, ele usurpa a posse do bem alheio.

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Sujeito passivo é o proprietário ou possuidor que tem a área do imóvel reduzida pela conduta criminosa do agente.

Consumação e tentativa. O crime é formal. Consuma-se com a simples realização de qualquer das condutas incriminadas, animado o agente do propósito de apropriação do bem. Não requer o delito, para sua integral compleição típica, a efetiva concreção do fim do sujeito ativo. O seu êxito nesse escopo apenas ensejará o exaurimento do crime.

É necessário o exame de corpo de delito, pois o crime deixa laivos ou vestígios, em suma, evidências físicas da sua ocorrência (v. n. 2.4, in fine).

Se à alteração de limites seguir-se o esbulho possessório (art. 161, § 1º, n. II, CP), esse delito absorve o primeiro, ex vi da progressão criminosa (consunção: lex consumens derogat legi consumptae).

A tentativa é admissível: o agente é surpreendido por outrem ao utilizar força física ou mecânica para suprimir ou deslocar marco ou tapume.

Elemento subjetivo: exclusivamente o dolo. Genérico (vontade consciente e livre de alterar os limites de imóvel) e específico (com o fim de apropriar-se do bem). É de meridiana clareza que o agente, ao praticar a conduta incriminada para apropriarse do bem imóvel alheio, não tem como objetivo (ressalvados casos excepcionais como o usucapião - ut supra) a aquisição do domínio. A transferência da propriedade de bem imóvel, como é cristalino, pressupõe o registro e a transcrição de título aquisitivo junto ao Cartório de Imóveis, pois somente este ato notarial complexo consolida a alteração da titularidade relativa à propriedade imóvel1874. O que o agente visa, na realidade, é ao assenhoreamento de fato, ao uso, gozo e fruição do imóvel como se fosse próprio1875.

Se o sujeito ativo pratica a supressão ou o deslocamento de sinal indicativo de propriedade com desígnio diverso da apropriação, outro poderá ser o crime, mas não o de alteração de limites, pela falta do dolo específico peculiar à espécie. À mão de ilustrar: se o agente objetiva o assenhoreamento dos próprios marcos ou tapumes, ocorre furto (art. 155, CP); se o que ele pretende é a simples destruição, por si mesma, de tais sinais, verifica-se o delito de dano (art. 163, CP); se o agente altera limites procurando fazer valer pretensão que acredita ser legítima (corrigir demarcação que julga errônea) comete exercício arbitrário das próprias razões (art. 345, CP); se a conduta ocorre no curso de litígio judicial (ação demarcatória) como forma de induzir em erro o perito ou juiz, caracteriza-se o delito de fraude processual (art. 347, CP)1876etc.

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16.3. Usurpação de águas

Objeto material e núcleos do tipo. O crime de usurpação de águas, definido no art. 161, § 1º, n. I, do CP, apresenta como objeto material a água alheia. Água corrente ou...

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