A Utilização da Mediação nas Causas Envolvendo a Criança e o Adolescente

AutorLourdes Regina Jorgeti Barone
Páginas430-438

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1. Considerações iniciais

A Constituição Federal de 1988 dispôs, no art. 227, sob a forma de norma programática, proteção à criança e ao adolescente1. O texto constitucional promoveu a dignidade da criança através da prescrição de direitos, igualando sua condição à das demais pessoas humanas. Esse reconhecimento representou uma grande conquista do direito da criança, impondo, em contrapartida, a necessidade da criação de dispositivos legais com o objetivo de conferir concretude às normas constitucionais.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei
n. 8.069, de 13 de julho de 1990, veio regulamentar com minúcias esse dispositivo constitucional, no âmbito de proteção e assistência. Reafirmou a ideia de que a proteção à criança é questão preocupante para todos os povos. Nesse sentido, foi apresentada uma série de dispositivos e mecanismos de proteção, fundamentados na teoria da proteção integral. Segundo os arts. 1º até 4º, as crianças e os adolescentes são sujeitos de direito frente à família, à sociedade e também ao Estado, o que os coloca não só como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como de direitos especiais, por serem pessoas em processo de desenvolvimento2.

Devem ser assegurados todos os direitos fundamentais à pessoa humana, além de todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade. Tais direitos devem ser garantidos com absoluta prioridade, prevalecendo sobre os interesses morais, econômicos e pessoais3.

Objetivou-se também o direito à convivência familiar e comunitária como uma forma de efetivar esses direitos, cabendo aos pais exercerem o poder

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familiar de forma conjunta e eficaz. A criança ou o adolescente deve, sempre que possível, ser mantido na sua própria família, fortalecendo os laços sanguíneos com a convivência familiar. Tendo o Estatuto priorizado o direito da criança e do adolescente de ser criado e educado no seio da sua família, novas alternativas devem ser implementadas para atender a situações em que o próprio núcleo familiar necessita de proteção e assistência para bem desempenhar suas funções.

Devemos ressaltar que o conceito de família foi modificado em decorrência das grandes transformações percebidas pela sociedade. A formação de grandes centros urbanos, a revolução sexual, o movimento feminista, a disseminação do divórcio, a proteção aos direitos da infância, juventude e terceira idade contribuíram, e muito, para o conceito de família na contemporaneidade4.

A família não pode mais ser vista como algo estático, rígido, formal, hierarquizado e burocrático. Ela passou por uma série de modificações e ainda está em constante evolução, adequando-se às novas realidades e transformações. Deve ser formada também pelos critérios de afinidade, solidariedade, conveniência e afetividade, sendo responsável pelo desenvolvimento físico, emocional, social, espiritual, psicológico, econômico, sexual e até mesmo político do indivíduo que a compõe5.

Entendemos que o rol previsto no art. 226 da Constituição Federal é meramente exemplificativo. O legislador não eliminou a existência de outras espécies de família, ao suprimir do referido artigo a expressão “constituída pelo casamento”, presente nas Constituições de 1967 e 19696. As demais espécies de família podem ser consideradas como tipos implícitos incluídos dentro do conceito amplo do caput. Sérgio Resende de Barros afirma que “todas as entidades familiares — mesmo se esquecidas pela lei, podem ser acolhidas e desenvolvidas pela jurisprudência e pela doutrina”7.

Concluímos, portanto, que o texto constitucional forneceu proteção estatal às outras formas de família, já que teve como objetivo assegurar o sistema democrático e garantir a felicidade por meio da plena realização dos integrantes de qualquer espécie de entidade familiar, com base na ideia de afeto. Para Rolf Madaleno, um Estado Democrático de Direito tem como parte integrante de seu fundamento e sua existência a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, inc. III), que, de forma alguma, pode ser taxada. Sendo assim, a família contemporânea deve encontrar sua realização no seu grupo e, dentro desse grupo, cada um de seus integrantes deve vislumbrar, por meio da convivência solidária e do afeto, o valor social e jurídico que a família exerce no desenvolvimento da sociedade e do Estado8.

Nesse sentido, complementa Mônica Maria Torres de Alencar:

A família mudou, e dentre as principais mudanças se situam: a diminuição do seu tamanho, sendo cada vez mais comum famílias com poucos membros; a diversificação

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dos arranjos domésticos com uma grande diversidade de formatos que não passam, necessariamente, pelo modelo tradicional (homem-provedor/mulher-esposa-mãe-dona de casa), com a mulher assumindo um papel central no sustento familiar; a dissolução frequente dos laços familiares, bem como as possibilidades do recasamento, o que estabelece uma dinâmica de relações familiares mais complexas e que repercutem nos padrões de parentesco tradicional. De fato, as famílias estão cada vez menores, sendo muito recorrentes as famílias compostas por apenas uma pessoa, as famílias monoparentais, casais sem filhos e casais do mesmo sexo. Por outro lado, é preciso lembrar que a idade para o casamento vem aumentando, sendo cada vez mais uma opção tardia diante da possibilidade de investimentos profissionais, além do adiantamento da maternidade/paternidade. Torna-se, também, mais comum a opção pessoal pela maternidade e/ou paternidade, seja com os filhos biológicos ou adotados.9

O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, ao ser alterado pela Lei n. 12.010, de 3.8.2009, nos dispositivos que tratam da adoção, conceituou, no seu art. 25, parágrafo único, a família extensa ampliada, como preferência à colocação da criança ou do adolescente, sob o regime de guarda ou tutela, assim entendida a família formada por parentes próximos com os quais a criança ou o adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade10.

Podemos enumerar algumas hipóteses de possíveis famílias que aparecem com maior incidência na sociedade brasileira, tais como família matrimonial, família informal, família monoparental, família uniparental, família homoafetiva, família parental, família reconstruída, família paralela, dentre outras. A maioria delas, conforme mencionado, não está disciplinada expressamente no nosso ordenamento jurídico, mas, consequentemente, acaba gerando efeitos pessoais, patrimoniais, sociais e hereditários que merecem também a proteção do Estado.

Após o Código Civil de 2002, surgiram várias leis disciplinando situações e relações ligadas ao Direito de Família, reforçando sua constante evolução e a preocupação evidente em colocar todas as pessoas, independentemente da espécie de família em que elas estejam inseridas, dentro da proteção do Estado.

Com isso, segue-se a tendência do Direito Civil Constitucional, que busca estabelecer as regras não em um único código apenas, mas sim em vários microssistemas, como Estatuto do Idoso, Lei da Guarda compartilhada, Lei dos Alimentos gravídicos, nova Lei da Adoção, Lei da Alienação Parental, dentre outros, mostrando a necessidade da adequação do Direito à nova realidade do Direito de Família.

2. A prestação jurisdicional nos conflitos familiares

As questões familiares ainda são as responsáveis pelo grande número de processos do Poder Judiciário. Isso decorre, talvez, do fato de as relações pessoais e sentimentais estarem acontecendo em um ritmo muito acelerado, motivadas principalmente pela busca da felicidade e pela ideia de realização plena do ser humano. São situações envolvendo guarda e convivência de filhos, direito de visita dos pais e dos avós, reconhecimento de paternidade, dissolução do vínculo conjugal, discussão sobre pagamento de pensão alimentícia, dentre outros.

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Segundo dados do relatório de Índice de Confiança na Justiça — Brasil, relativos ao 2º trimestre de 2013 ao 1º trimestre de 2014, os problemas derivados das relações de família (18%) são o terceiro motivo que levaram os pesquisados a utilizarem a Justiça, atrás das relações trabalhistas (30%) e das relações consumeiristas (25%)11.

Os conflitos familiares trazidos ao Poder Judiciário valorizam a cultura adversarial, assumindo as partes, consequentemente, posição de culpado ou inocente, certo ou errado e vencedor ou perdedor. Tratam de situações ligadas diretamente a sentimentos confusos de amor e ódio, buscando, muitas vezes, o resgate de danos emocionais.

O alcance desses conflitos é bem abrangente, atingindo um número expressivo de pessoas. Questões envolvendo o rompimento de vínculo conjugal não afetam somente os cônjuges, mas, principalmente, os filhos, repercutindo, diretamente, no seu desenvolvimento mental e emocional12 e, indiretamente, nas relações com os avós, implicando situações incontroláveis de desgaste emocional. São inúmeras as ações de avós solicitando o direi-to de visitar seus netos, nos termos do art. 1.589 do Código Civil, já que, com a ruptura da sociedade conjugal, muitos acabam rompendo laços também com todos os membros da família do excônjuge13.

Quando uma sociedade conjugal chega ao fim, tornando-se impossível a convivência do casal, tem início uma complexa negociação14. Negociam-se perdas afetivas da mesma maneira que perdas materiais. Isso se dá porque são múltiplos os divórcios em uma única separação: psíquico, emocional, físico, financeiro, da família, dos amigos em comum e, principalmente, dos filhos. Eles não são simultâneos e, na maioria das vezes, ultrapassam o momento de legalização da separação15.

Principalmente quando a ruptura decorre da traição de uma das partes...

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