Vínculo Empregatício - Empresa Própria - Pessoa Interposta - Subordinação Estrutural

AutorJuiz Igor Cardoso Garcia
Ocupação do Autor2ª Região - SP
Páginas64-72

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SENTENÇA

Na data e no horário acima assinalados determinei a abertura da presente sessão (CLT, art. 765), com vistas à prolação da seguinte sentença:

I - RELATÓRIO.

O reclamante ajuizou ação trabalhista em face da reclamada deduzindo as pretensões descritas nas fls. 13-16. Juntou documentos. A reclamada apresentou contestação escrita (fls. 71-86), resistindo aos pleitos da exordial. Juntou documentos. Foi realizado o interrogatório das partes e ouvida uma testemunha, encerrando em seguida a instrução processual. Em razões finais os litigantes mantiveram suas posições antagônicas, restando frustradas as propostas conciliatórias oportunamente ofertadas. é o relatório.

II - FUNDAMENTAÇÃO.

  1. Vínculo de emprego. A ré afirma que o reclamante era representante comercial e não empregado, em síntese. Nesse contexto, o ônus de provar que a relação existente não era empregatícia incumbe à ré. Analiso. Vejamos se os requisitos necessário à configuração da relação de emprego estão presentes: Pessoalidade. O preposto da ré confessou que o reclamante não podia fazer-se substituir por outra pessoa na realização da entrega dos produtos, o que configura a pessoalidade. Onerosidade. O trabalho era oneroso, pois o reclamante recebia dinheiro para desempenhar suas funções, ainda que por meio da diferença entre o valor pago à ré e o cobrado dos clientes da ré. Habitualidade. O trabalho era habitual, pois exercido de segunda-feira a sábado, dias nos quais o autor obrigatoriamente comparecia à empresa, conforme confissão do preposto da ré. Subordinação (em interpretação tradicional). (i) o reclamante tinha uma rota a cumprir e não podia atuar fora dessa rota, caso o fizesse estava sujeito a punição - advertência ou retirada de clientes de sua rota -, conforme confessado pelo preposto da ré e afirmado pela única testemunha ouvida; (ii) o reclamante não podia "vender" os produtos da ré acima do valor estabelecido pela empresa, sob pena de ser punido - advertência ou retirada de clientes de sua rota -, conforme confessado pelo preposto da ré e afirmado pela única testemunha ouvida; (iii) o reclamante não podia retirar os produtos

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para "venda" após às 08h, sob pena de não poder carregar o veículo - se chegasse à ré após às 08h não carregaria o veículo e nada teria para "vender" - o que, na prática, funcionava como uma punição, pois sem nada para "vender’, nada receberia, assim como um comissionista puro; (iv) o reclamante tinha que usar o uniforme fornecido pela ré, conforme depoimento da única testemunha ouvida e manual de conduta da ré (ver item abaixo); (v) o reclamante tinha metas a cumprir, conforme depoimento da única testemunha ouvida; (vi) o reclamante sofria punições indiretas, pois se não "adquirisse" uma quantidade mínima de produtos da ré (ainda que não conseguisse "vendê-los") não teria um desconto maior no preço dos produtos; (vii) o supervisor fiscalizava os serviços prestados pelo reclamante, pois visitava os clientes da rota do obreiro para saber se o atendimento estava sendo bem feito e se o preço cobrado pelo produto (pelo autor) estava correto, conforme confessado pelo preposto da ré; (viii) a ré fazia algumas reuniões ao final do dia (média de uma por semana) e o reclamante tinha que comparecer, conforme confessado pelo preposto da ré; (ix) que pela manhã o reclamante fazia o acerto do dia anterior, conforme confessado pelo preposto da ré, a demonstrar que era feito o repasse dos valores recebidos, como um vendedor externo; (x) que o supervisor tinha meta de vendas e o reclamante tinha meta de compras, conforme confessado pelo preposto da ré; (xi) que a empresa forneceu caminhão ao reclamante, a fim de que fosse pagando mensalmente e, após a quitação, ficasse com o veículo, o que é realizado com todos os "distribuidores" (pessoas que trabalham nas mesmas condições do autor), conforme confessado pelo preposto da ré; (xii) que o veículo utilizado pelo autor, antes de seu ingresso na ré, ficava com outro trabalhador; (xiii) que "os outros distribuidores pagaram as dívidas e devolveram o caminhão, o qual foi entregue ao reclamante" (fl. 68), a sinalizar que as pessoas laboram para a ré e, ao final, ficam devendo dinheiro do veículo pelo qual pagaram várias parcelas; (xiv) que o reclamante não trabalha mais para a ré pois possui dívidas das "compras" que efetuou; (xv) que a empresa entregou manual de conduta ao reclamante, a fim de explicar-lhe como deveria se portar, conforme confessado pelo preposto da ré; (xvi) que "nenhum distribuidor [função supostamente desempenhada pelo autor] feriu o manual de conduta, então não sabe qual seria punição aplicada" (informação entre colchetes de nossa inserção), conforme confessado pelo preposto da ré; (xvii) que há gestores que obrigam o "distribuidor" (função supostamente desempenhada pelo autor) a carregar uma grade mínima de produtos, sob pena de não ter o desconto no preço ou ser retirado um cliente de sua rota, o que demonstra a punição e pressão sofrida pelo autor, conforme afirmado pela única testemunha ouvida; (xviii) a única testemunha ouvida, que era o superior hierárquico do reclamante, afirmou que duas vezes no mês acompanhava o reclamante no cumprimento de sua rota, a fim de fiscalizar o trabalho realizado, assim como fazia com os demais trabalhadores; (xix) que no início do pacto o reclamante firmou contrato de locação do veículo que utilizava, conforme documento de fls. 26-28; (xx) que a ré exigiu que o reclamante criasse uma microempresa para que pudesse prestar-lhe serviços; (xxi) após a criação da microempresa, o reclamante teve de firmar contrato de compra e venda do veículo, agora tendo como comprador sua microempresa (fls. 22-25); (xxii) e, por fim, a empresa protestou a microempresa constituída pelo reclamante em razão dos produtos "comprados" e não pagos. Pois bem, das provas produzidas e confissões do preposto da ré, verifica-se claramente que o reclamante era empregado da reclamada, vendedor, pois estava sujeito a fiscalização, punição, supervisão, controle da rota em que atuava, utilização de uniforme, estabelecimento de preços pela ré etc. Não tinha o autor, pois, qualquer verdadeira autonomia, estando sempre sujeito às condições de trabalho impostas pela ré. E mais, atuaria um representante comercial - condição imposta pela ré ao autor - numa mesma região e bairro do que um empregado vendedor, cumprindo as mesmas tarefas, ambos sob supervisão? Por óbvio que todas as condições relatadas acima não se referem a efetivo representante comercial, mas sim a um empregado vendedor comissionista. Apenas pelos fatos acima relatados conclui-se pela existência de vínculo de emprego. Contudo, passe-mos a outros fatos. Vejamos o ponto abordado pelo ilustre magistrado Fabiano de Almeida nos autos do processo 0001985-37.2011.5.02.0034, que trata de idêntico tema envolvendo a mesma ré, o qual pedimos vênia para transcrever: "Veja-se que a farta documentação juntada, consistente em diversos ‘manuais’ da reclamada, apontam muito mais que meros indicativos de necessidade de padronização e prestação de contas. Note-se que nos manuais há imposição pela ré de regras de como o ‘micro-distribuidor’ deve se portar e como deve relacionar-se com o cliente. No documento de fls. 345 do 1º volume de documentos consta o seguinte: ‘Deverá cumprir com as seguintes normas de apresentação e asseio: - uniforme limpo, bem passado e completo; - emblema da marca (...); - bem barbeado, ou com bigode cordato; - cabelo curto e penteado, sem adereços; - mãos limpas com unhas cortadas; - calçado preto; - veículo limpo (...).’ (...) O microdistribuidor é a imagem da marca no mercado. (...) O microdistribuidor deve aceitar, cuidar, defender, valorizar e promover os benefícios dos produtos. (...)’ (grifos nossos). Não bastasse isso, a preposta da ré admitiu que havia visitas constantes e diárias de gestores, de modo a

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fiscalizar a prestação de serviços. Nesse sentido, inclusive, o documento de fls. 399 do 1º volume de documentos, que assim indica: ‘7. O gestor vai me visitar a cada quanto tempo? De acordo com o plano de trabalho dele, vocês vão visitar juntos seus clientes em um dia de itinerário habitual, e além do mais você vai se reunir com outros Micro-distribuidores e o Gestor na reunião mensal de equipe.’ Por derradeiro, há de se destacar ainda que o reclamante fora inclusive dispensado pois não atendeu aos parâmetros da ré e que havia obrigatoriedade, consoante declarou a testemunha do autor, de comparecimento em ‘cursos’ oferecidos pela reclamada." (grifos nossos). Tais fatos relatados em documento juntado pela própria ré (manual de conduta) são suficientes a demonstrar a existência de subordinação e o consequente vínculo de emprego entre as partes. Mas não é só! A questão em debate não deve ser analisada apenas sob a ótica da presença dos elementos caracterizadores da relação de emprego numa interpretação tradicional. Isto porque a sociedade mudou e com ela as relações de produção e de trabalho. Devemos, pois, analisar o moderno conceito de subordinação estrutural ou integrativa, desenvolvido pelo Ministro Mauricio godinho Delgado. A subordinação estrutural pode ser definida como "a inserção do trabalhador na essência da ativi-dade empresarial". Estando o trabalhador inserido na essência da atividade empresarial, no núcleo da atividade produtiva, estará presente o requisito da subordinação, sob o viés dessa moderna (e atual) interpretação. No caso, a ré possui como atividade a produção e comercialização de produtos alimentícios. E, conforme interrogatório de seu preposto, a ré, na região, possui cinco vendedores e oito microdistribuidores (pessoas com tarefas iguais às do autor). Como é que uma empresa que tem como atividade a venda dos alimentos que produz possui vendedores e "representantes comerciais" numa mesma região, realizando sua atividade fim. Como é que uma empresa terceiriza sua atividade fim? Viveria a ré sem a venda de seus...

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