A valorização da autonomia privada em contexto de crise sob a perspectiva do direito comparado

AutorGáudio Ribeiro de Paula
Páginas66-80

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GÁudio Ribeiro de PauLa

Advogado. Ex-Assessor da Vice-Presidência do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Membro Fundador da Academia Brasiliense de Direito do Trabalho (ABRADT). Fundador do Instituto Dia de Formação Jurídica Estratégica.

1. Introdução

A autonomia da vontade é o princípio único de todas as leis morais e dos deveres que estão em conformidade com elas (Kant).

Os princípios, como se sabe, apresentam-se na Ciência do Direito como verdades axiomáticas fundamentais que lhe conferem coesão, organicidade e integridade, entre outros atributos.

A teoria formulada por DWORKIN a propósito da distinção entre regras e princípios ganhou bastante projeção em diversos sistemas jurídicos1. Entre as características distintivas descritas pelo jusfilósofo, podem ser citadas as seguintes:

a) regras – observam uma lógica binária (“zero” ou “um”), ao estilo “tudo ou nada” (“all-or-nothing-fashion”), de modo que, em caso de colisão internormativa, apenas uma prevalece;

b) princípios – submetem-se a uma lógica “quântica” (em que se admitem variações entre o “zero” e o “um”), em que se pode reconhecer a existência da dimensão de peso ou importância (“dimension of weight”), razão pela qual a colidência não seria excludente, por se admitir a sua aplicação cumulativa (concordância prática).

No âmbito do Direito Civil, dentre as muitas semelhanças que se podem reconhecer entre os ordenamentos jurídicos português e brasileiro, talvez as mais relevantes seriam: a) a matriz romano-germânica; b) a identificação da lei como centro formal de gravidade; e c) a identidade de institutos, conceitos e regras.

Entretanto, há diferenças expressivas que merecem registro no concernente ao modo como a cada país lida com os os princípios.

Com efeito, no Brasil se constatam: a) um certo panprincipiologismo2, resultante da fecundidade criativa na (re)produção de princípios pela jurisprudência e doutrina3; b) a

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existência de decisões judiciais fundadas estritamente em princípios (os quais, embora abstratos e sem densidade normativa, produziriam efeitos concretos, de forma a criar obrigações pessoais específicas)4; e c) um cenário de forte ativismo judicial5. Observa-se que tais características também parecem estar presentes, em certa medida, em países como a Itália6.

Já em Portugal, por contraste, seriam perceptíveis: a) o número pouco expressivo de princípios; b) a maior parte dos princípios seria inferida diretamente da lei ou estaria normativada expressamente; c) uma inclinação positivista da jurisprudência e um forte respeito à separação de poderes.

Da investigação conduzida, mostra-se razoável concluir pela homogeneidade na identificação de princípios próprios ao Direito Civil lusitano.

Ilustrativamente, MOTA PINTO indica os que se seguem: o reconhecimento da pessoa humana e direitos de personalidade; a autonomia privada; a responsabilidade civil; a boa-fé; a concessão da personalidade jurídica às pessoas colectivas; a propriedade privada; a relevância jurídica da família; e o fenômeno sucessório7.

CARVALHO FERNANDES, por outro lado, aponta os seguintes: a personificação jurídica do homem; o reconhecimento dos direitos de personalidade; a igualdade dos homens perante a lei; a autonomia privada; o reconhecimento da família como instituição fundamental; a personalidade coletiva; a responsabilidade civil; a propriedade privada; e o reconhecimento do fenômeno sucessório8.

Por fim, PEDRO PAIS DE VASCONCELOS prefere reconhecer como princípios: o personalismo ético; a autonomia; a responsabilidade; a confiança e aparência; a boa-fé; a paridade jurídica; a equivalência; o reconhecimento da propriedade e sua função; e o respeito da família e pela sucessão9.

Como se vê, há grande similitudade entre as relações adotadas por tais autores portugueses10.

A principal convergência talvez resida na identificação da autonomia privada como princípio comum e verdadeiro centro de gravidade do Direito Civil e do próprio Direito Privado, em última análise.

2. Autonomia privada
2.1. Etimologia, conceito e natureza

As investigações etimológicas costumam conduzir a conclusões relevantes para a compreensão mais plena de institutos jurídicos.

A palavra “autonomia” provém do grego antigo “αὐτονομία”, derivada, por sua vez, de “αὐτόνομος”, junção de “αὐτο” (“auto” que se trazudiria como “de si mesmo”) com “νόμος”, (“nomos”, ou seja, “lei”) da qual resultaria “aquele que estabelece suas próprias leis”11.

Já a expressão jurídica “autonomia privada” traduz o “poder de autorregular relações jurídicas, dentro dos limites da lei” ou o “poder jurígeno outorgado aos particulares”12.

O conceito contempla duas perspectivas: a) a liberdade de configuração das relações jurídicas entre sujeitos de direito, ensejando a produção de negócios jurídicos; e b) o exercício (ou a abstenção) de direito sujetivo13.

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No tocante à sua natureza, constata-se divergência doutrinária relativamente ao seu caráter originário ou derivado. A esse propósito, há autores que entendem tratar-se de facul-dade intrínseca a todos em decorrência de sua condição de pessoa, uma espécie de “liberdade originária”, cujo reconhecimento pelo Estado não se apresenta como pressuposto para o seu exercício14. Por outro lado, outros sustentam que a existência da autonomia privada supõe o seu acolhimento explícito ou implícito por parte de ordenamento jurídico, resultante de suas “opções sociais, políticas e econômicas concretas”15.

2.2. Evolução

Pode-se afirmar, sem exagero, que a história do Direito seguiu em paralelo à trajetória histórica da autonomia privada.

No Direito Romano, a expressão “voluntas” descrevia o aspecto central do instituto associado aos elementos volitivos de natureza eminentemente subjetiva. Além disso, os romanos erigiram a “lex privata” como forma primária de expressão do “ius civile”, proveniente de “declaração solene com valor de norma jurídica, baseada em um acordo entre o declarante e o destinatário16.

Glosadores como SAXOFERRATO transportaram a autonomia da vontade para o terreno do Direito Internacional Privado, atribuindo aos particulares a faculdade de definir a lei aplicável aos seus negócios jurídicos transnacionais17.

Foi, contudo, o Direito Germânico que gestou o conceito jurídico de autonomia privada tal como se conhece hodiernamente, a partir de uma perspectiva objetivista, fundada na proteção da “propriedade privada” e associada a uma necessi-dade econômica relativa à “livre circulação dos bens”18. Resultou de uma visão liberal e individualista firmada a partir de pressupostos filosóficos como os lançados por KANT em sua clássica formulação do “imperativo categórico”19. A autonomia passa a ser vista como força criadora de direito e obrigações, para empregar a clássica locução de WINDSCHEID20.

A formulação sistemática do princípio que veio a ser incorporada aos códigos civis de variados países costuma ser atribuída a DOMAT e POTHIER e ao Código Civil francês de 180421. Sua incorporação aos ordenamentos jurídicos foi quase universal (com as exceções a serem apresentadas adiante), sobretudo nos Estados de tradição romano-germânica.

Após alcançar seu ápice no início do século XX, especialmente nos países da Common Law, alguns divisaram certa crise a se abater sobre a concepção liberal da autonomia privada, a partir da segunda métade do mesmo século. O cenário de desilusão que se desenhou pós-guerra em múltiplos âmbitos contribui para fazer derruir a visão otimista resultante dos impactos positivos da revolução industrial. A profunda recessão econômica atraiu a necessidade de alguma intervenção estatal para conter os desequilíbrios e disfunções decorrentes da liberdade plena nas relações privadas22.

STIGLITZ alinha as seguintes razões para a crise da autonomia privada: a) desenvolvimento do direito imperativo, com o objetivo de afirmar o equilíbrio substancial entre as partes contratantes; b) nova perspectiva das normas supletivas, com enfoque no eventual abuso no exercício da liberdade contratual; c) refração do voluntarismo e retorno gradual ao formalismo; e d) intervenção do Estado23.

Segundo o autor, os supramencionados aspectos conduziriam à necessidade de alteração da arquitetura normativa contratual, notadamente quanto a dois pontos: a) coexistência da autonomia privada com os limites que lhe seriam intrínsecos, a autorizar a ingerência estatal voltada à defesa do interesse público para obstar prejuízos decorrentes da atuação livre de uma ou ambas as partes na relação contratual; e b) ampliação do conceito de “ordem pública”, de modo a abarcar igualmente a sua faceta econômica, como limitadora de deter-minadas modalidades contratuais (e.g. contrato de trabalho) ou de certas técnicas negociais (contratos com cláusulas gerais ou de adesão)24.

2.3. Distinção – Autonomia da vontade e autonomia privada

Distinção relevante a ser realizada é a que separa as definições de autonomia da vontade, de um lado, e de autonomia privada de outro.

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A primeira (autonomia da vontade) estaria relacionada aos seguintes aspectos: a) autodeterminação, enquanto expressão da vontade livre; b) manifestação de liberdade individual no âmbito do direito psicológico; e c) de matiz subjetiva (psicológica)25.

Já a segunda (autonomia privada) remeteria: a) à autorregulamentação, ou seja...

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