A duração razoável do processo como direito fundamental: pressuposto da justiça do trabalho no Século XXI

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ª Vara de Jundiaí/SP. Professor livre-docente da Faculdade de Direito da USP.
Páginas81-93

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A efetividade da prestação jurisdicional sempre foi um grande desafio para os processualistas. O tema, no entanto, é costumeiramente tratado na perspectiva legislativa, isto é, na busca de soluções legislativas para os entraves processuais. Em termos da fase de execução parece-me que não se precisa muito mais que uma mudança de postura do magistrado, daí porque tratar desse tema em um livro que vislumbra a Justiça que queremos no século XXI.

Dois fatos servem de base para a presente análise.

No primeiro, que se passou há alguns meses atrás, presenciei um colega de trabalho, um oficial de justiça, relatar a outro colega, um juiz do trabalho, que foi até a sede de uma empresa-executada, em pleno funcionamento, para efetuar a penhora sobre parte de seus créditos, mas não conseguiu cumprir a diligência porque constatou que a empresa lhe demonstrou que não tinha créditos a receber. O oficial contou que já estava por elaborar a Certidão Negativa e devolver o mandado à Secretaria da Vara do Trabalho, quando se lembrou que um amigo seu recebia atendimento da referida empresaexecutada mediante convênio com a empresa para quem ele, o amigo do oficial, trabalhava. Declarou que, então, resolveu se dirigir até a empresa à qual estava vinculado o seu amigo e penhorar o valor que esta pagava à empresa-executada em nome do tal convênio. Verificou, então, que os pagamentos efetuados, mensalmente, em grande monta, eram destinados a pessoas jurídicas diversas, mas tendo como sócios os mesmos da empresa-executada.

Mas, o que de fato me chamou atenção no diá-logo - o que só pude perceber porque estava fora da cena - foi a demonstração de alegria e satisfação que o oficial de justiça aparentava por ter conseguido desbaratar a fraude da empresa-executada, sentimento que fora compartilhado pelo juiz. Os dois comemoraram a notícia como se tivessem feito um gol, afinal, o crédito daquele processo, depois de vários anos de tentativas frustradas, poderia, enfim, ser satisfeito.

O segundo caso se passou há mais tempo, cerca de uns cinco anos atrás. Eu estava conduzindo uma audiência e fui subitamente interrompido por um cidadão, o qual me interpelou de forma contundente, como se estivesse com dedo em riste, dizendo: "O Sr. bloqueou 2 milhões de reais da minha contacorrente. Isso é um absurdo!" Diante da situação inusitada, pedi licença aos presentes e pus-me a atender o cidadão, pois, afinal, fez-me ele uma acusação séria e todos que estavam presentes, e que presenciaram o fato, estavam, como eu, curiosos para entender o ocorrido. Perguntei-lhe, então, se o fato se teria produzido em razão de algum processo no qual ele fosse executado, ao que ele me respondeu afirmativamente. As coisas, assim, começavam a se esclarecer... Perguntei-lhe, então, a qual processo ele se referia. Diante do número do processo por ele apresentado, pedi, então, ao diretor de Secretaria, que me trouxesse os autos do tal processo. Passados

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alguns minutos, com todos os presentes aguardando, adentrou a sala de audiências o Diretor com um processo que mais parecia... - bem, acho que a figura mais próxima daquilo que víamos era mesmo um processo, com vários volumes, folhas de todas as cores e tamanhos, já amareladas pelo tempo e um tanto quanto deterioradas. Com muito cuidado, para não espalhar ácaros e demais germes pelo ar, comecei a examinar, folha por folha, o tal processo. Tratava-se de uma reclamação trabalhista, proposta há 15 (quinze) anos, com objetos muito corriqueiros: verbas rescisórias, horas extras etc. Todos os atos processuais possíveis haviam sido praticados naqueles autos: petição inicial, defesa, audiência, provas documentais e orais, sentença, embargos declaratórios, recurso ordinário, embargos declaratórios, recurso de revista, agravo de instrumento, contas de liquidação, sentença de liquidação, intimação para pagamento, penhora de bens, agravo de petição, e praças para venda dos bens penhorados, seguidas de reavaliações e novas impugnações, sendo as praças sempre negativas e tentativas diversas de se localizarem outros bens - menos "micados" -, para se tentar conferir efetividade ao comando jurisdicional, mas sempre sem sucesso.

E, foram anos e anos de despachos, intimações, juntadas de folhas, folhas e folhas, nas quais restaram as marcas do trabalho realizado por inúmeros servidores e juízes, até que um dia, com o advento da penhora on line, que na época se fazia sem limitação ao valor da execução, chegou-se ao momento que conduziu aquele cidadão à sala de audiências. Um sujeito que, vale frisar, pelo que se apresentava nos autos, julgava-se estar em local incerto e não sabido. Determinada a penhora on line, foram bloqueadas várias contas de investimento do referido senhor, chegando-se, então, aos dois milhões de reais. O sujeito estava indignado com o montante que fora bloqueado, pois, afinal, a dívida no processo não passava de vinte mil reais.

Na sequência da situação, li, atentamente, para todos os presentes, os atos praticados no processo, e disse ao sujeito que absurdo mesmo era ele, após ser dado por desaparecido, surgir assim do nada e, pior ainda, possuir dois milhões de reais em aplicações e mesmo assim ter deixado aquele processo, de cerca de vinte mil reais, sem uma solução durante quinze anos, impondo ao Judiciário uma infinidade de serviços e ao reclamante um enorme sacrifício.

Não bastasse isso, o tal sujeito ainda queria ter razão, interrompendo a audiência e impondo a todos os presentes uma restrição de seus direitos enquanto cidadãos, para o fim de "exigir" do Judiciário rapidez e eficiência na satisfação de seu interesse de ver liberadas, imediatamente, as suas contas.

Dei-lhe a única resposta que na ocasião me pareceu possível: disse-lhe que ele tinha razão quanto ao fato de que a importância bloqueada a maior deveria mesmo ser devolvida. Esclareci que atenderia o seu pedido de desbloqueio das contas, mantendo-se bloqueado unicamente o valor devido, o mais rápido possível, mas que ele compreendesse que isso não poderia ser feito naquele instante porque, afinal, como ele próprio podia constatar na experiência daquele processo, a Justiça é lerda! O reclamante daquele processo, por exemplo, tinha esperado quinze anos para receber o que era seu por direito - e, ademais, ainda nem havia recebido...

Claro que me expressei em tom provocativo e até de certo modo irônico. Em concreto, no mesmo dia acabei efetuando a liberação do valor bloqueado a maior, depois de verificar, é claro, se o tal sujeito não era devedor em outros processos...

Os dois fatos mencionados, que são apresentados apenas como exemplos de tantos outros que se multiplicam na prática judiciária, conduziram-me às reflexões abaixo e que hoje, pelos fundamentos que se seguem, gerariam efeitos processuais bastante diversos.

É importante demais verificar que os dois fatos denunciam algo extremamente grave: a perda da percepção da autoridade dos comandos jurisdicionais, sobretudo na área trabalhista.

Bem se sabe que no Brasil os direitos trabalhistas foram, historicamente, extremamente atacados e até hoje enfrentam forte resistência de parte dos empresários e de segmentos importantes da grande mídia.

A coisa é tão grave que se chega a ter a impressão de que há um direito destinado ao agressor da ordem jurídica: o direito de sofrer unicamente as consequências fixadas em lei pela prática da conduta indesejada.

Consequentemente, nas realidades refletidas em inúmeras reclamações trabalhistas, empregadores contumazes no desrespeito aos direitos trabalhistas posicionam-se perante o juiz, em audiência, apoiando-se na própria ordem jurídica que agrediram.

Na órbita do direito criado na mente do agressor da ordem jurídica, seus atos só podem gerar as consequências previstas na lei. Por exemplo: o não pagamento de horas extras pelo trabalho exercido além da oitava hora diária e quadragésima quarta semanal só pode produzir o efeito da condenação ao pagamento das horas extras com adicional de 50%

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e reflexos em parcelas remuneratórias, com juros e correção na forma da Lei n. 8.177/1991, afinal esses são os efeitos previstos em lei pelo descumprimento do direito do empregado à limitação da jornada de trabalho. Aliás, neste exemplo, tem-se, igualmente, a falsa impressão de que o direito do empregado é o de receber horas extras. As horas extras não são o direito do emprego. O direito é o da limitação da jornada de trabalho. Utilizando de uma linguagem popular, não se pode dizer que o empregado tem o direito de receber horas extras. O empregado tem o direito à limitação da jornada. O pagamento do tempo trabalhado além do limite com um adicional de 50% sobre o valor que se paga ao tempo inserido na jornada legal (e não "normal", como se costuma dizer), é o efeito previsto em lei pelo ato ilícito cometido pelo empregador, na medida em que é desrespeitado o direito do empregado à limitação da jornada de trabalho. Vistas as coisas desse modo, tem o empregador o direito de pleitear que o efeito de seu ato ilícito seja apenas o previsto na lei? É evidente que não, pois isso conduziria as horas extras à esfera da licitude e a limitação da jornada de trabalho deixaria de ser um direito.

Ora, o efeito desse modo de ver as coisas é o de que o direito conferiria ao empregador o direito de desrespeitar o direito dos trabalhadores e uma vez que a consequência possível é apenas pecuniária ter-se-ia, em conclusão, que o empregador poderia pagar pelo desrespeito ao direito do trabalhador, ou, em outras palavras, que poderia comprar tais direitos.

Em certa medida, se pensarmos bem, da forma como as coisas costumam ser postas, nas reclamações trabalhistas, extraindo o embate acerca da controvérsia fática - pois, por certo, a versão dos fatos apresentada pelo reclamante pode não ser verdadeira - os empregadores vão à justiça cobrar os seus "direitos", refletidos na limitação dos efeitos juridicamente previstos para os atos que praticaram.

Essa...

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