Venezuela: o Papel dos Processos de Integração para a Manutenção do Governo Chávez

AutorRodrigo Herrero Lopes/Verena Hitner
CargoJornalista e mestrando pelo PROLAM/USP/Cientista social e mestranda pelo PROLAM/USP
Páginas163-181

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Introdução

O artigo trata das recentes mudanças na política externa venezuelana e de suas repercussões no processo integracionista sul-americano. A tese central do texto é a de que a estratégia inicial do governo Chávez, como mostra seu programa de governo e principalmente o Plano de Desenvolvimento da Nação (2001-2007), é a de voltar-se para a América do Sul, formando, assim, um movimento contra-hegemônico único, que pudesse fazer frente à Área de Livre-Comércio das Américas (Alca). Isso porque a política externa é fundamental para garantia da legitimidade e consequente permanência no poder do grupo chavista.

Para tanto, o texto parte de um breve histórico da política externa da Venezuela desde a “Doutrina Betancourt”, da década de 50, que influenciou todo o período em que vigorou o pacto de Punto Fijo (1958-1998), para contrapô-la à política exterior “bolivariana” de Hugo Chávez. Nesta análise é ressaltado o papel do petróleo como instrumento de poder e discutidas as idas e vindas do esforço integracionista da terceira economia do subcontinente. Essa discussão é importante, uma vez que tenta demonstrar a razão pela qual a Venezuela sempre esteve voltada para fora do nosso subcontinente. A “Doutrina Betancourt” foi propulsora de um isolamento regional que levou, entre outros aspectos, ao retardamento da adesão do país à Área de Livre-Comércio Latino-Americano (Alalc), contrariando o movimento de integração sul-americana. A aproximação aos Estados Unidos e a dependência do petróleo foram as outras principais consequências desta política.

Nos anos noventa, a política externa começa a ser redirecionada ainda nos governos de Carlos Andrés Pérez e Rafael Caldera. Porém, somente quando Hugo Chávez assume a presidência do país, formulando não somente uma nova constituição, como também uma nova política externa, pode-se dizer que a “Doutrina Betancourt” deixou de existir. Essa nova política externa não pode ser entendida de maneira isolada, uma vez que faz parte do processo de mudança institucional, vivido na Venezuela dos últimos anos, que começa com a constituinte, aprimora suas formas no Plano de Desenvolvimento da Nação 2001-2007 e se explicita na tentativa de entrada no Mercosul. Isso será discutido na segunda parte do artigo, quando trataremos a ideia de que essa mudança da política externa só foi possível devido à conjuntura internacional extremamente favorável: alta dos preços internacionais do petróleo, eleição de governos sem alinhamento automático aos Estados Unidos na América Latina e mudança na ordem de prioridades da política externa norte-americana, que tirou a Alca do topo da lista.

Se num primeiro momento as preocupações externas do governo chavista foram dirigidas à rearticulação da Organização dos Países Produtores de Petróleo (Opep), a partir de 2001 é nítida a prioridade à integração sul-americana, incluindo uma mudança na forma de integração. A compra de títulos da dívida argentina, manifestações explícitas de apoio às candidaturas presidenciais nas eleições bolivianas, equatorianas e peruanas e a proposta da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba) fazem parte deste movimento, que é fundamental para a permanência de Chávez no poder.

Desse modo, na terceira parte do artigo, trataremos de forma panorâmica da participação venezuelana nos processos integracionistas atuais, como prelúdio para, nas partes

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seguintes, realizar um estudo mais aprofundado de dois processos de integração nos quais a Venezuela está inserida atualmente na região: em primeiro lugar, discutiremos a importância do Mercado Comum do Sul (Mercosul) para a Venezuela e sua tentativa de fazer parte do bloco como membro permanente. Em seguida, apresentaremos a Alba e alguns acordos realizados dentro de seus parâmetros. Vale ressaltar que optamos por discutir esses dois processos, pois avaliamos serem os mais importantes na atualidade venezuelana.

Antecedentes: democracia representativa e petróleo

Desde o governo de Rômulo Betancourt, na década de cinquenta, a Venezuela vive de costas para a América Latina, opondo-se aos projetos de integração sub-regional. Isso porque seus interesses econômicos condicionavam, de duas formas, a política exterior: de um lado estava incumbida de lutar pela manutenção da quota do petróleo no mercado norte-americano e, de outro, defender o protecionismo e as restrições às importações em nome da necessária industrialização interna. O governo Betancourt é o primeiro depois da democratização do país. De acordo com Romero (2002), esta é a primeira vez que se pode falar de uma política externa venezuelana, com ações coerentes e estruturadas, pensadas a partir de um projeto nacional.

A “Doutrina Betancourt” foi uma estratégia do governo que enfatizou sua ação exterior na Organização dos Estados Americanos (OEA) e priorizou, por causa do petróleo, as relações econômicas bilaterais com os Estados Unidos. Cervo (2001) indica as principais diretrizes de política externa da Venezuela e sua ação na região durante esse período: “a dependência das exportações de petróleo, cerca de 90% do total; a dependência dos Estados Unidos, principal investidor, cliente e fornecedor, e a repercussão interna dos acontecimentos políticos na área do Caribe” (CERVO, 2001, p. 159).

A Doutrina fixou diretriz política rígida no trato dos vizinhos, ao decidir somente reconhecer governos oriundos de eleições realizadas sob normas constitucionais. Dessa forma, os discursos venezuelanos na OEA eram sempre de repúdio a governos não democráticos — propondo sanções contra o regime de Fidel Castro, em Cuba, e de Rafael Leônidas Trujillo, na República Dominicana — e de fortalecimento do sistema interamericano, dando personalidade jurídica à “Doutrina Betancourt”. Essa Doutrina, somada ao fato de a Venezuela ter optado por relações econômicas quase exclusivas com os Estados Unidos, a levou ao distanciamento em relação aos demais países da América Latina.

No início dos anos sessenta, a Venezuela criou, com países árabes e africanos, a Opep, com a finalidade de defender o preço do petróleo e garantir superávits na balança comercial. Ao mesmo tempo, mantinha-se fora do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT na sigla em inglês) e da Alalc, preferindo acordos bilaterais. Na origem dessa política externa estava o receio de que o liberalismo comprometesse seu projeto nacional de industrialização e a evidência de que a Venezuela era um país fundamentalmente petroleiro. A oposição venezuelana à Alalc e ao acordo de integração sub-regional dos países andinos fechava o cerco aos negócios sul-americanos.

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Ainda nesse momento, a Venezuela inicia um período de quarenta anos de estabili-dade, denominado Punto Fijo (1958-1998).

A base material do Pacto Punto Fijo foi dada pela distribuição clientelista da renda petrolífera. A existência do petróleo condicionou a forma de intervenção do Estado na economia, e também a relação deste com o restante dos atores políticos, tais como partidos, sindicatos, forças armadas e setor privado (VILLA, 2005, p. 154).

Durante esse período vários setores se apropriam da renda petroleira; todos ganharam, embora uns tivessem ganhado mais do que outros; foi assim até o fim da década de setenta. A década de setenta deu à Venezuela novas condições de projetar seu prestígio em razão da alta dos preços do petróleo. Em relação à política externa do período, a partir da eleição de Rafael Caldera Rodríguez, em 1968, a “Doutrina Betancourt” não passaria a ser mais aplicada com tanto afinco, dando prioridade à criação de laços com países que poderiam consumir o petróleo produzido pela Venezuela.

Em 1976, ao final do governo Pérez, a Venezuela nacionalizou a indústria petroleira. Acreditava-se que a estatal Petróleos de Venezuela (Pdvsa) seria a casa matriz de um conjunto de empresas que até a noite anterior eram transnacionais. Desse modo, o que mudou na política externa venezuelana é que, se antes da nacionalização o Estado taxava as companhias de petróleo e buscava, com isso, o aumento dos preços no mercado internacional, com a nacionalização, e consequente criação da Pdvsa, o petróleo passa a ser controlado pela burocracia da empresa, que é venezuelana, mas que advém das oligarquias petroleiras anteriores, e que, portanto, se configura como um grupo social internacionalizado (MOMMER, 2003). O sucesso do petróleo, causado pelos seus preços exorbitantes nessa época, indicou um retorno ao pensamento bolivariano de liderar a América Latina, integrando-a em torno da Venezuela.

A partir dos anos oitenta e até o final dos anos noventa, os preços internacionais do petróleo caem, com algumas variações, de maneira constante. Internamente, os recursos petroleiros que chegavam a todas as classes tornam-se, cada vez mais, restritos aos grupos sociais ligados ao Estado e à companhia de petróleo. O período da Apertura Petrolera, a partir de 1990, reduziu, de forma significativa, a arrecadação de impostos e preparou o terreno para a desnacionalização da Pdvsa. Entre outras coisas, ela liberou a entrada de capitais transnacionais nas atividades primárias, reduziu a soberania jurídica e impositiva, diminuiu de forma significativa os ingressos fiscais do petróleo e colocou a Venezuela em rota de colisão com os outros sócios da Opep.

Na política externa, o modelo neoliberal significava a defesa de uma nova proposta de “regionalismo aberto” (CEPAL, 1998), ou seja, a integração passa a ser vista, então, como um mecanismo relevante, mas com um papel diferenciado, já que o objetivo não é mais substituir em escala regional as importações, mas permitir ao país uma inserção no cenário internacional. A política...

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