Venezuela: qual democracia?

AutorAdriana Suzart de Pádua/Suzeley Kalil Mathias
CargoGraduada em Relações Internacionais (UNESP-Franca), mestranda em História pela mesma Universidade/Livre-docente em Ciência Política, professora dos cursos de graduação em pós-graduação de História e Relações Internacionais (UNESP)
Páginas69-88

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Introdução

Na América Latina, da formação dos Estados até os processos de intervenção mais modernos, o fenômeno militar acompanhou a construção da cultura política de países desde o México até o Uruguai. Isso é particularmente verdade quando se observa a realidade dos países da região nas décadas de 1960 e 1970. Nesse período, os governos que aderiram ao paradigma desenvolvimentista apregoado pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), fomentaram a entrada de capital internacional por meio de empresas transnacionais na tentativa de implantar um setor industrial que atendesse às necessidades internas, evitando assim o grande número de importações que implicava em evasão de divisas. O programa de substituição de importações, porém, acabou trazendo resultados adversos ao esperado. O favorecimento dado pelo Estado às empresas transnacionais como incentivo a sua vinda para o país acabou por prejudicar o incipiente setor exportador nacional, os empresários locais e a classe trabalhadora. Não demorou muito para que a população começasse a se manifestar e uma crise social se instalasse.

Segundo O’Donnell (1987, p. 22), fatos como estes, que perturbam a estabilidade necessária para a continuidade de parâmetros socioeconômicos de uma economia capita-lista são as condições necessárias para o surgimento de golpes de Estado que acabam por resultar na instalação de Estados Burocrático-Autoritários (BAs), dirigidos frequentemente por pessoas que ocuparam cargos em organizações complexas e altamente burocratizadas, como por exemplo, as Forças Armadas. Esses dirigentes se atribuem a função de restituir a ordem perdida ao Estado: “um maior nível de ameaça leva a uma maior disposição [das Forças Armadas] para aplicar, e apoiar, uma repressão mais sistemática para conseguir a desativação política e a domesticação das organizações de classe do setor popular” (O’DONNELL, 1987, p. 23).

A partir dos anos 80, entretanto, houve um promissor movimento rumo à edificação de governos civis e da democracia. Neste aspecto, a Venezuela parece ter sido exceção à regra. De fato, enquanto em alguns de seus vizinhos não se podia conceber um regime sem a participação castrense, os venezuelanos pareciam ter resolvido a questão da demo-cracia há pelo menos 20 anos, pois desde 1958, os governos se sucederam sem nenhuma interferência militar. Muitos analistas pensavam, portanto, que ali o regime democrático havia se consolidado (O’DONNELL; SHMITTER, 1988).

A existência de tal regime em um país, todavia, não significa que todos os atores sociais passaram por processo de inclusão e/ou que todos os cidadãos tiveram seus problemas resolvidos. Ao contrário, o regime político democrático pode funcionar de uma forma ainda melhor que as ditaduras para manter a exclusão social. Assim, na Venezuela, a estabilidade política da democracia representativa foi erigida em detrimento da construção da democracia social. Nascida com o Pacto de Punto Fijo, concerto bipartidário estabelecido pela elite petroleira venezuelana, a partir de 1958, a democracia representativa foi incapaz de promover uma distribuição equitativa dos lucros oriundos da comercialização do petróleo à população, a fim de promover o seu bem-estar, conforme anunciado no plano de governo que sustentou o Pacto. Tal incapacidade, associada ao

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novo cenário econômico internacional globalizado e neoliberal de inícios da década de 1990, culminou em revolta popular, em golpes militares frustrados, em impedimento presidencial e em perda de liderança política. A história venezuelana de certa forma, cumpre, atualmente, o mesmo destino reservado à América Latina em passado recente: a ocupação do centro político pelos militares após um período de instabilidade social.

Há discussões no meio acadêmico sobre se a eleição de Hugo Chávez poderia ser considerada como uma ocupação da política pelas Forças Armadas, pois ele, apesar de possuir origem militar, foi eleito dentro das regras do jogo democrático e não representa a instituição, caso geral dos regimes implantados nos países sul-americanos ao longo dos 1960-1970. Especula-se ainda se ele não representaria, mais propriamente, o resgate de uma forma política que não precisa de instituições e até as desdenha: o populismo.

Apesar das controvérsias que impregnam o conceito de populismo, adotamos aqui a visão de Sonia Alda Mejias (2008, p. 19-21) que informa que há muito em comum entre esse novo populismo (também chamado de populismo de esquerda) e os antigos e, apesar da heterogeneidade de seus líderes, são muito parecidos entre si. Suas características são: rechaço às instituições representativas, em especial aos partidos; liderança carismática e sua relação direta com as massas; poder fundamentado em alianças eleitoreiras; aspiração ao envolvimento das massas nas decisões de governo (a chamada “revolução democrática” que leva à democracia participativa), tem ainda como alicerces o nacionalismo, o anti-imperialismo e o intervencionismo estatal (este não necessariamente traduzido em nacionalização de empresas antes privatizadas); inexistência de ideologia (“desideologização”) e facilidade do líder em manipular recursos midiáticos.

Há ainda dois outros traços de união que aparecem desde a Bolívia até a Nicarágua: a admiração pelo regime cubano e por seu líder, Fidel Castro, e o imediatismo das políticas sociais, melhor identificadas como assistencialistas. Uma última característica desses novos líderes é a forma como chegam ao poder, isto é, são fundadores de movimentos que os levam a construir um partido e a formarem o governo depois de chegarem ao centro do poder pelo voto e respeitando as regras do jogo vigentes no país.

Um traço particular da liderança de Hugo Chávez está em sua origem militar. Há um vazio intelectual que é preenchido por ideias tão díspares quanto funcionais. Assim, ele faz uso de elementos do liberalismo clássico de Hobbes ou Rousseau, mas também apoia iniciativas como a terceira via de Tony Blair ou o caminho de desenvolvimento chinês traçado por Mao Tsé-Tung, aliado ao pensamento conservador corporativo de Nolberto Ceresole (ROMERO, 2001, p. 239). Sua forma de pensar a política é, pois, eminentemente prática, utilitária.

Na primeira parte deste texto, objetiva-se avaliar como se estabeleceram as bases para a chegada de Hugo Chávez ao poder; em um segundo momento, por meio do exame de alguns artigos constitucionais, faz-se uma rápida análise das atribuições conferidas às Forças Armadas em seu governo e, por último, tendo como base o que foi determinado na Carta Magna de 1999, procura-se identificar o grau de autonomia da Força Armada Nacional (FAN) frente ao poder civil. Para tanto, partimos da hipótese de que a longevidade de Hugo Chávez no poder está assentada no papel central do segmento

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castrense em seu governo que, por meio do estabelecimento de novas relações civil--militares, serve como instrumento político para a efetivação de seu programa “socialista e revolucionário”, cujo principal pilar é a “democracia participativa”. Para trabalhar essa hipótese, a principal fonte será a Constituição Bolivariana de 1999, instrumento legal resultante de uma das primeiras ações de governo do atual presidente venezuelano.

Pavimentando o caminho

Referindo-se à Venezuela, Domingo Irwin (2000) diz que, da mesma forma que o século XIX foi dos caudilhos, o século XX foi dos militares. Esta afirmação é cheia de sentido quando se sabe que o chamado Pacto do Punto Fijo, inusitado acordo firmado entre as elites políticas e que estabelecia a distribuição equitativa do poder entre elas, originou-se de um movimento civil-mitilar que, em 1º de janeiro de 1958, tirou do governo o coronel Marcos Pérez Jiménez, ditador que chegara ao poder seis anos antes, por meio de um golpe militar que pusera fim à primeira experiência democrática do país, por sua vez iniciada em 18 de outubro de 1945, produzida por outro golpe civil--militar. Tal pacto tinha como principais características a limitada subordinação militar ao poder civil e uma política de atenção aos problemas mais urgentes da população, sob as bases dos ganhos do petróleo (MANRIQUE, 2008).

A divisão do poder promovida pelo Pacto de Punto Fijo reservava ao setor castrense o controle sobre a segurança interna e defesa da Nação, enquanto permitia aos civis dominar a direção econômica e política do país. Por meio dele, os partidos políticos Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI), de tendência social--democrata, e Ação Democrática (AD), democrata-cristão, revezavam-se no poder. E, se em um primeiro momento esse regime bipartidário parecia carente de sustentação, diferentemente do que se poderia imaginar, foi preciso que se passassem 40 anos para que fosse novamente posto à prova, em 6 de dezembro de 1998, quando Hugo Chávez ganhou as eleições de acordo com as regras do jogo político e com a promessa de substituir a democracia representativa tradicional e corrupta pela democracia do povo, caracterizada por ele como “participativa e protagônica”.

O Pacto de Punto Fijo foi eficiente em manter as regras do jogo político, dissolvendo diferentes grupos contestatórios antes que esses se fortalecessem a ponto de desestabilizar a política. Entretanto, as Forças Armadas, insatisfeitas com o seu alijamento da cena política promovido pelo sistema bipartidário, não tardaram a dar sinais de descontentamento frente àquela divisão de poder e, a partir de 1973, passaram a apresentar candidaturas de oficiais militares ao governo. Embora o setor castrense tenha marcado presença no Parlamento, não conseguiu romper a hegemonia AD-COPEI, o que levou ao início de um processo de mobilização nos quartéis (ROLANDO; SALAS, 2006...

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