A verdade da teoria, confirmada pelos adversários

AutorFerdinand Lassalle
Páginas101-168

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Mas, antes de passar adiante, permita-me que volte a insistir na força incondicional de verdade que encerra a teoria exposta por mim, sobre o que é uma Constituição e sobre a qual devo me centrar hoje, como fundamento anímico, todas as minhas investigações. Senhores, vocês sabem que entre partidos políticos opostos não há nenhuma acusação política que não suscite discussão acalorada. Nada do que um partido político acata e professa como indiscutível prevalece como tal diante dos demais que o descartam como absolutamente falso com a mesma força de convicção com a qual o vê como verdadeiro. Quase se

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sente alguém movido a pensar — e não faltam, de fato, espíritos estéticos e vacilantes que entendam — que a verdade não existe ou já desapareceu uma razão humana única e comum a todos, vendo tanto absolutamente, com que desprezo e com que despeito alguns partidos rechaçam como indiscutivelmente falso o que outros, com a mesma força absoluta, acatam como axiomático e incontestável. Apenas a ciência pode lhes penetrar nesta crua dissonância de opiniões, neste estridente coro de desarmonias, de afirmações que acusam umas às outras de mentiras, para iluminar uma verdade cujo resplendor é tão claro e potente que até os partidos políticos mais díspares se veem obrigados a reconhecer. Os casos em que isso acontece constituem, portanto, um verdadeiro triunfo da ciência e um contraste muito poderoso dos quilates de verdade que encerra uma teoria. Um destes raros casos de exceção, se dá com a teoria constitucional que tive de expor para vocês em minha última conferência.

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Pertenço, senhores, como todos vocês sabem, ao partido da democracia pura e resolvida2. Apesar disso, até um órgão político tão pouco suspeitoso de conivência com minhas ideias como Die Kreuzzeitung não pôde reconhecer menos, sem rodeios, a verdade indiscutível da teoria constitucional sustentadas por mim. No número 132 (8 de junho de 1862), este periódico consagra um artigo editorial a comentar minha conferência e se expressa nos seguintes termos: “O discurso de um judeu revolucionário do qual falou-se muito em sua época e que, com certo instinto, acerta em cheio a questão, mesmo que não diga, nem muito menos, tudo o que sabe e pensa”. Buscarei ir purgando, conforme faça falta, este último defeito que me censura. Die Kreuzzeitung pode estar seguro de que farei todo o possível para confirmar sua suspeita, expressando, a medida que as circunstâncias

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demandem, em seu momento oportuno, cada vez mais abertamente, tudo aquilo que penso e sei. O que por agora me interessa é realizar a ata de sua confissão, na qual se reconhece que acerto em cheio com minha teoria constitucional. No entanto, não é apenas este periódico da direita o que o reconhece. Os ministros também reconhecem completamente a verdade de minha teoria.

Vamos ver. Em uma sessão da câmara de deputados em 12 de setembro de 1862, o ministro da guerra, senhor von Roon, declarava que seu conceito da história tendia a que a maior parte, a parte primordial desta, não só entre os diferentes Estados, mas nas fronteiras de cada Estado, não era algo além da luta pelo poder e pela conquista de novo poder entre os diversos fatores.

É como vocês veem, expressa exatamente com as mesmas palavras, a teoria que desenvolvi sobre um amplo fundamento histórico e que logo viu a luz em um prospecto. É certo que o ministro da guerra também pronunciou na mesma intervenção e algumas linhas mais

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abaixo da passagem que acabo de citar, estas importantes palavras: Existe em Berlim, fora da câmara de deputados, pessoas afiliadas a partidos que — e agora vou citar suas palavras textualmente — “expressara por escrito e por palavras, diante de grupos políticos locais e na imprensa, as tendências mais peregrinas e também, em meu modo de ver, mais subversivas”. Como, diante dos grupos políticos locais que o ministério alude não se pronunciou até agora, que eu saiba, além da minha, nenhuma outra conferência a que possa se aplicar por nenhum conceito este qualificativo de “tendências subversivas” e como também, o afeto periódico ao ministro acusou minha conferência várias vezes, já que tive que pronunciá-la diante de três ou quatro assembleias diferentes, de encerrar tendências subversivas, vejo-me autorizado a pensar, levando em conta também, o que o ministro da guerra, pouco depois até a sua, como seu conceito da história, a ideia fundamental daquela conferência; vejo-me, digo, autorizado a crer, por todas as razões que a acusação do ministro, na parte

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que toca as conferências locais, querem aludir à pronunciada por mim há alguns meses neste auditório sobre o verdadeiro conceito de uma Constituição.

No entanto, senhores, compreenderão que precisa parecer-me maravilhoso e um tanto chocante que o senhor ministro da guerra encontre subversiva, colocada em meus lábios, a mesma concepção da história e até expressa exatamente com as mesmas palavras que, mantida por ele, tem, pelo visto, um caráter conservador. Porém, ocorre algo todavia mais importante e maravilhoso e que o ministro, na mesma inter-venção a qual nos referimos, censura à câmara por não ter desautorizado estas tendências expressas na imprensa e diante de diferentes grupos políticos locais, a que mais acima eu havia citado. É que a câmara tem jurisdição ou é de sua incumbência desautorizante a mim ou a qualquer outro orador ou publicista pelas doutrinas que mantemos? O realmente cômico é que o ministro da guerra não adverte que, convidando a câmara a desautorizar aquela concepção da história que ele acaba de abra-

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çar, a convida a desautorizar a ele mesmo e as ideias que professa. No entanto, tudo isso não são mais que ocorrências jubilosas de que o ministro terá de responder por sua conta diante da lógica e que não têm nada a ver com o tema que abordamos aqui: o que importava unicamente era relevar como o ministro da guerra da Prússia se solidarizava plenamente com aquela teoria constitucional exposta em minha conferência anterior, abraçando-a inclusive com as mesmas palavras.

I As violações da Constituição. “Prática de Direito Constitucional”

Não foi menos amável com ela o atual presidente do governo, senhor Bismarck, ao votar pelas ideias expostas aqui por mim e como contribuição de uma testemunha pessoal, mas em nome de todo o governo. Todos vocês sabem que a Constituição reconhece expressamente à câmara o direito indiscutível e indiscutido de aprovar ou rechaçar os orçamentos públicos apresentados pelo go-

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verno. O Parlamento imaginou oportuno fazer uso desta faculdade, lhes desautorizando.

Além disso, o senhor Bismarck não nega que a câmara esteja em seu direito. Mas diz — são suas palavras textuais, pronunciadas na sessão de 7 de outubro —: “Os problemas de direito da índole deste não costumam se resolver ao lutar por duas teorias opostas, mas sim paulatinamente, pela prática do direito constitucional”. Se vocês olharem bem, senhores, verão que aqui está contida e desenvolvida, mesmo que seja em termos um pouco velados e pudorosos, como se adapta a um ministro, toda a minha teoria. O senhor Bismarck traduz o que chamo de direito do Parlamento esfumando o conceito pela expressão de problemas de direito. Não nega — como deveria negá-lo? — que isto que ele chama de problema de direito e eu chamo simplesmente de direito, figura na folha de papel, na Constituição escrita. Mas, uma vez concedido, acrescenta: “Embora figure ali, na folha de papel, o que na realidade decide e da norma é a prática, a prática do direito constitucional”. Esta expressão velada, “a prática

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do direito constitucional”, a voz dos fatos e da realidade que se impõe ao direito simples e a teoria jurídica, não faz mais do que substituir, sem que a claridade saia ganhando nada com isso, ao que eu chamava de fatores reais de poder. Fiquem com a folha de papel, venham nos dizer o senhor Bismarck, traduzindo sua cautelosa linguagem ministerial à linguagem da ver-dade sem adornos; a mim, me basta manejar os fatores reais e efetivos do poder organizado, o exército, as finanças, os tribunais de justiça, estes fatores reais de poder que são, em última instância, os que decidem e dão a norma para a prática constitucional.

O veto destes fatores efetivos e mate-riais, diz o senhor Bismarck aos deputados, converte vosso direito em mera teoria, em letra morta, em um simples problema de direito e estes mesmos fatores de autoridade me garantem desde então, que o pleito não falhará precisamente em tom com este vosso direito puramente teórico, registrado em um pedaço de papel. Pouco a pouco, diz o senhor Bismarck, a prática do direito constitucio-

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nal se encarregará de resolver em um sentido muito diferente este problema de direito, isto é, este conflito entre o direito meramente escrito no papel e os fatores de poder esculpidos no bronze da realidade. E aqui, se voltamos a revelar, em uma nova perspectiva, a visão aguda do senhor Bismarck. Vocês recordarão que em minha conferência anterior eu lhes explicava que era os precedentes constitucionais. Basta para que uma vez, a primeira vez, ao repetir-se o ato, já me considere assistido do direito necessário. Como exemplo para ilustrar esta máxima, argumentei diante de vocês aquele princípio medieval do direito constitucional francês, segundo o qual “poderiam ser cobrados impostos e benefícios sem limitação das pessoas comuns”. Víamos que este princípio não havia come-çado...

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