Sobre a verificação de atendimento às normas técnicas e perícias

AutorCarlos Pinto Del Mar
Páginas377-402

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O cumprimento das normas técnicas e as presunções de direito

O cumprimento das normas técnicas estabelece uma presunção de conformi-dade, de qualidade, de atendimento aos requisitos técnicos. A falta de atendimento às normas técnicas, por outro lado, impõe ao construtor ou responsável o ônus de provar que o produto ou serviço atende aos requisitos mínimos de segurança e qualidade exigidos pela sociedade técnica e o mercado de consumo, ainda que não estejam normalizados.

Presunção é a conclusão que se extrai de fato conhecido, para provar-se a existência de outro desconhecido. As presunções classificam-se em legais (juris) e comuns (hominis). As presunções legais dividem-se em presunções juris et de jure (absolutas) e as presunções juris tantum (relativas). As presunções juris et de jure (absolutas) não admitem prova em contrário; a própria lei as considera como verdades absolutas. A lei presume o fato, sem admitir que se prove o contrário704. É o que ocorre com o conhecimento da lei, por exemplo. A lei presume que todas as pessoas conheçam a lei, e não admite prova em contrário705.

Trata-se de presunção absoluta, ou juris et de jure. Já a presunção juris tantum, ou relativa, admite a prova em contrário. Essa presunção legal tem a finalidade de eliminar a dificuldade no deslinde de uma questão, mas, se essa prova é possível, cai por terra a presunção. É o que ocorre em casos de pagamento de cotas periódicas, por exemplo, em que a quitação da última estabelece, até prova em contrário, a presunção de estarem solvidas as anteriores (CC, art. 322); da mesma forma, a entrega do título ao devedor presume o pagamento (CC, art. 324), mas essa presunção admite prova em contrário.

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O respeito às normas técnicas como fator de atendimento à qualidade é uma presunção juris tantum (condicional), que admite prova em contrário. Significa que, se as normas não tiverem sido obedecidas, há presunção (juris tantum) de irregularidade; cabe a quem não as cumpriu provar o contrário. Vale dizer, o desrespeito às normas técnicas impõe ao agente o ônus, o dever de provar que o produto ou serviço atende, por outro meio (além daqueles preconizados pela norma técnica), os requisitos dele exigidos.

Vícios ou defeitos por infração às normas técnicas

As construções, de modo geral, estão sujeitas a dois tipos de normas: legais e técnicas. As normas legais são prescrições contidas em leis, regulamentos, códigos sanitários e de obras. Visam à ordenação individual da obra e à sua adequação ao meio social. As normas legais podem ser civis ou administrativas: as civis regulam o direito de construir nas suas relações entre vizinhos, e as administrativas destinam-se a proteger os interesses da coletividade706.

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Já as normas técnicas são aquelas relativas à construção propriamente dita, que podem ser de natureza prescritiva ou de desempenho.

Em seu art. 18, § 6º, o CDC considera impróprios ao uso e consumo, entre outros, os produtos em desacordo com as normas regulamentares de fabricação707.

Como as normas técnicas prescrevem procedimentos visando a aplicação da boa técnica na fabricação – e constituem normas regulamentares de fabricação – segue-se que os produtos fabricados em desacordo com as normas técnicas, em princípio, são considerados impróprios para o consumo (por presunção relativa), resultando daí a caracterização de vício ou defeito por infração às normas técnicas (sempre ressalvada a possibilidade de provar que, embora elaborado em desacordo com as normas técnicas, o produto ou serviço tem qualidade igual ou superior àquele que seria atingido, caso as normas técnicas fossem atendidas).

Exceções à regra

A regra de obrigatoriedade de atendimento às normas técnicas não pode ser considerada absoluta. Comporta exceções. Isso porque as normas não podem ser consideradas como um fim em si mesmas. Trata-se de recomendações, com base na melhor técnica disponível e certificadas num determinado momento, para se atingir um resultado satisfatório. Um instrumento de meio, e não um fim.

É certo que no campo técnico existem alguns princípios básicos, elementares, e algumas normas que devem ser seguidas em qualquer circunstância, sendo, portanto, imperativas.

A questão é que algumas normas dizem respeito a procedimentos técnicos que podem sofrer evolução ao longo do tempo, ou, ainda, a resultados que podem ser atingidos por meios diferentes daqueles nelas prescritos, sem perda da qualidade. A dificuldade está em identificar quais normas são obrigatórias, pelo seu mérito, sendo certo que esse é um problema de natureza técnica.

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Pelo regime anterior de normalização, havia a especificação quanto à obrigatoriedade ou não das normas técnicas. Porém, pelo atual sistema nacional de metrologia, conforme o item 1 da Resolução n. 1/92 do Conmetro, norma brasileira é toda e qualquer norma elaborada pela Associação Brasileira de Normas Técnicas ou outra entidade credenciada pelo Conmetro, de acordo com diretrizes e critérios determinados por esse Conselho, não havendo distinção entre normas facultativas ou obrigatórias708.

A questão da obrigatoriedade ou não das normas técnicas deve ser dirimida nos campos técnico e jurídico, com prevalência do primeiro. Ou seja, antes mesmo de uma interpretação de natureza jurídica, caberá aos técnicos esclarecer se a prática recomendada por aquela norma técnica constitui requisito mínimo da qualidade, imperativo, ou se o resultado, ainda que obtido por uma outra técnica, atinge os padrões mínimos de aceitação da qualidade.

Finalmente, não seria razoável conferir obrigatoriedade irrestrita a normas voluntárias, expedidas por entidades de direito privado, sem atender a princípios que as tornem exigíveis erga omnes (como é o caso das leis), sob pena de violar o devido processo substantivo previsto no inciso LIV, do art. 5º, da Constituição Federal.

A importância que as normas técnicas ganharam mais recentemente na socie-dade globalizada e a relevância crescente e paulatina de suas implicações no campo jurídico são motivos suficientes para determinar a revisão do processo de sua elaboração nos fóruns competentes, em que se assegure maior transparência e participação, não apenas dos interessados na sua elaboração, como também daqueles que serão afetados pela suas disposições.

29.3. 1 Sobre textos deficientes das normas

É sempre recomendável que os redatores das normas técnicas tenham cuidado especial na elaboração do seu texto, diante da importância que terão na sua aplicação prática ou em caso de eventual demanda judicial.

Contudo, não havia no passado a preocupação com a força legal que as normas técnicas passaram a ter com o passar dos anos.

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A entrada em vigor do CDC trouxe um novo elemento que causa problemas na prática. É que o seu art. 39, inciso VIII, considera como prática abusiva colocar no mercado de consumo qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes ou, se normas específicas não existirem, pela ABNT ou outra entidade credenciada pelo Conmetro. Isso dá às normas da ABNT um status quase legal, pois as suas prescrições – por força de leis que impõem a obrigatoriedade de cumprimento – acabam sendo adotadas como referência legal.

Muitas vezes, será preciso interpretar as normas técnicas para delas extrair consequência jurídica, ou seja, apurar se ocorreu ou não prática abusiva pelo fornecedor, por violação às normas. E nem sempre o texto da norma técnica terá a precisão que se exige de um texto jurídico.

Inicialmente, é de se observar que o CDC colheu as normas técnicas em plena existência. Quando foi promulgado, já existiam inúmeras delas editadas e em vigor. E é natural que, enquanto não tinham a força jurídica que hoje têm, a sua redação atendia a determinados critérios, mas não tinham a preocupação de ser interpretadas como se fossem lei.

Com efeito, a redação da maioria das normas técnicas em vigor (quase a totalidade) não atendeu às prescrições da Lei Complementar n. 95, de 26 de fevereiro de 1998, que rege a elaboração das leis de um modo geral. Isso, em razão de diversos fatores. Primeiro, porque algumas normas técnicas são anteriores ao CDC, quando não existia ainda a preocupação de uma interpretação mais jurídica do texto. Segundo, porque a própria norma técnica não atende, muitas vezes, à regra que existe para a sua redação, contida na Parte 3 das Diretivas ISO/TEC: 1989 (referente à redação e apresentação das normas internacionais), e que acabou sendo adotada como Diretiva Nacional pela ABNT (Diretiva 3, Redação e apresentação de Normas Brasileiras, 1a edição, 1995). Terceiro porque, como observa Grandiski, existe uma norma técnica internacional, elaborada justamente para nortear a redação das outras, mas, ela própria, traduzida e adaptada para o português com falhas, acarreta problemas à sua própria aplicação/interpretação. Exemplo disso está nas palavras “shall” e “must”, que na língua inglesa têm diferença (a primeira indicando uma recomendação e a segunda, uma obrigatoriedade), e que nessa referida norma foram traduzidas pela mesma palavra, “deve”, sem fazer tal distinção fundamental que existe na língua inglesa709.

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O fato é que existem muitas normas técnicas, adotadas no País, que são traduções de normas internacionais, e essas...

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