Via de mão dupla - precedentes vinculantes e o respeito às decisões de primeiro grau como faces da mesma moeda sob o novo Código do CPC - uma visão de direito comparado

AutorCesar Zucatti Pritsch
CargoJuiz do Trabalho na 4a Região/RS
Páginas68-92
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REVISTA TRABALHISTA DIREITO E PROCESSO — ANO 14 — N. 55
Via de mão dupla — precedentes
vinculantes e o respeito às decisões de
primeiro grau como faces da mesma
moeda sob o novo CPC — uma visão
de direito comparado
Cesar Zucatti Pritsch(*)
Resumo:
O funcionamento do sistema de precedentes vinculantes introduzido pelo novo CPC
pressupõe, em contrapartida, a valorização das decisões de primeiro grau nas matérias
não sujeitas à uniformização, restritas ao caso concreto, como as conclusões de fato e as
decisões que envolvem discricionariedade judicial. A ausência de limites à tal reforma
permite que essas decisões sejam ignoradas e descartadas, mesmo quando tecnicamente
corretas, bastando a mera divergência de opinião entre a corte revisora e o juízo a quo.
Em tal contexto, repete-se desnecessariamente o trabalho de primeiro grau, confunde-se
o acórdão com uma nova sentença, desviando aquele de seu foco principal na unicação
e aprimoramento do direito. Ademais, a resultante alta taxa de reforma encoraja recursos
de pouca substância, contribuindo para a sobrecarga do judiciário e para a deslegitima-
ção do primeiro grau, reduzido a uma instância de passagem. Os standards de revisão
recursal, praticados nos países de common law, podem inspirar a adoção jurisprudencial
ou legislativa de tais limites, obstando a desnecessária reforma das conclusões de fato do
primeiro grau, salvo em caso de erro claro (clear error), e das decisões discricionárias,
como a aplicação de multas processuais ou o arbitramento de uma indenização, salvo se
constatada arbitrariedade (abuse of discretion).
Abstract:
e binding precedent system introduced by the new Code of Civil Procedure of 2015
presupposes that the appellate courts, to focus on precedents, must defer to the reasonable
ndings of fact and discretionary rulings of the trial courts. Currently, in the absence of
(*) Juiz do Trabalho na 4a Região/RS e Juris Doctor pela
Florida International University (FIU), EUA, laureado no
grau magna cum laude, além de Especialista em Direito
do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade
Gama Filho/RJ. O presente trabalho é uma adaptação
da versão em inglês, apresentada perante a FIU em 2014
para a conclusão de seminário em direito comparado,
“The Brazilian Appellate Procedure Through Common
Law Lenses: How American Standards of Review May
Help Improve Brazilian Civil Procedure”, ExpressO,
2015. Disponível em:
cesar_zucattipritsch/1>.
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limits to appellate review, courts of appeal in Brazil review de novo all subjects, ignoring
or discarding the trial court’s decision even when technically correct. is method ends
up unnecessarily repeating the trial court’s work, diverting the appeal’s focus away from
the consistency and development of precedents. Moreover, the resulting high reversal rate
encourages frivolous appeals, overburdening the judiciary and bypassing the trial courts.
e standards of appellate review, practiced in common law countries, may inspire the
adoption of similar appellate review limits in Brazil, by the courts or by legislature. Stan-
dards of review, in Brazil, should prevent unnecessary reversals of trial court’s ndings of
facts, except for clear error, and of discretionary rulings, except for abuse of discretion.
Palavras-chave:
Processo civil e do trabalho — Novo CPC — Respeito a precedentes — Valorização das
decisões do primeiro grau.
Índice dos Temas:
I. Introdução. Contexto atual — Panorama normativo e consequências práticas. 1. Preceden-
tes vinculantes e o lado reverso da mesma moeda — a preservação dos aspectos casuísticos
da decisão recorrida salvo erro claro ou arbitrariedade. a. Precedentes vinculantes do Brasil
e nos Estados Unidos — trabalho hercúleo — foco dos tribunais nas questões de direito das
decisões recorridas, valorizando as decisões de primeiro grau quanto às demais matérias.
2. O problema — Desvalorização das decisões de primeiro grau — Excessiva recorribilidade,
sobrecarga, protelação, desperdício.
II. Standards de revisão recursal (standards of appellate review) no direito americano. 1.
Questões de direito — standard de revisão recursal de novo. 2. Conclusões de fato do juiz
standard de revisão recursal clearly erroneous. 3. Conclusões de fato do júri — standard de
revisão recursal substantial evidence. 4. Questões mistas de direito e de fato — standard
de revisão recursal conforme a preponderância da análise do direito ou do fato. 5. Decisões
discricionárias — standard de revisão recursal abuse of discretion.
III. Aplicação dos standards de revisão recursal ao processo civil brasileiro. 1. Utilidade
e funcionamento dos standards de revisão recursal para o aprimoramento do processo
civil brasileiro. a. Interpretação das regras de direito aplicáveis — questões de direito. b.
Decisões que envolvem margem de discricionariedade. c. Conclusões quanto à verdade
dos fatos — questões de fato. d. Subsunção dos fatos ao direito — questão mista de direito
e de fato. 2. Possibilidade de aplicação dos standards de revisão recursal ao processo
civil brasileiro? a. Harmonia com a tendência de reforma do sistema recursal no Brasil,
parcialmente inspirada no direito comparado. b. Harmonia com a política nacional de
valorização do primeiro grau do Conselho Nacional de Justiça e com as aspirações da
Magistratura de primeiro grau. c. Inexistência de impedimento legal ou constitucional ao
uso de standards restritivos da revisão recursal no processo civil brasileiro. d. É necessária
alteração legislativa para que se presumam corretas as decisões discricionárias e conclusões
de fato do primeiro grau, limitando o corte revisional dos recursos através dos standards
“abuso de discricionariedade” e “claramente errôneo”?
IV. Considerações nais
V. Referências bibliográca
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I. Introdução
O respeito aos precedentes emanados de
instâncias superiores deve ser uma via de mão
dupla, com o correspondente respeito das
instâncias superiores às decisões do primeiro
grau em matérias de fato ou discricionária. O
sistema de precedentes que se apresenta através
13.015/2014 impõe um novo paradigma nas
relações entre o primeiro e segundo graus,
bem como destes com os tribunais superiores.
Há que se perceber os benefícios que a racio-
nalização dos precedentes trará em termos de
diminuição da recorribilidade, desafogamento
dos tribunais e aumento da segurança jurídica.
Entretanto, impõe-se também o reconheci-
mento de que a obtenção de tais benefícios não
depende apenas da estabilização dos entendi-
mentos de direito nos tribunais, mas também
da estabilização das decisões de primeiro grau
nas matérias não sujeitas à uniformização de
entendimentos.
Tais matérias, em que a decisão de primeiro
grau deve ser presumida correta, são as con-
clusões de fato e as decisões discricionárias. A
conclusão sobre a verdade dos fatos, baseada
na valoração da prova, é matéria para a qual os
tribunais não estão em posição tão favorável,
já que mais distantes da produção probatória.
O mesmo ocorre em decisões envolvendo
discricionariedade judicial, como o arbitra-
mento do quantum em pedidos indenizatórios
e multas processuais, indeferimento de provas
procrastinatórias e outras situações de gestão
do processo (case management). Em tais ca-
sos, o direito não limita o juiz a apenas uma
escolha correta.
Da mesma forma que a resistência do pri-
meiro grau em seguir precedentes dos órgãos
colegiados competentes, para produzi-los com
força obrigatória, pode esvaziar o trabalho da
instância superior, vulnerando o esforço voltado
para a segurança jurídica e redução da litigio-
sidade, o mesmo ocorre quando o segundo
grau ignora ou descarta o trabalho do juiz de
primeiro grau pela mera discordância pessoal,
embora tecnicamente correta a decisão a quo.
Este breve ensaio pretende apresentar a
ideia de que a sistemática adotada pelo novo
CPC pressupõe reciprocidade entre as ins-
tâncias, para que cada uma funcione bem,
dentro de sua especialidade: o segundo grau e
tribunais superiores na de unicar o direito, o
primeiro grau focado no seu mister de desco-
brir a verdade e gerir o processo. A sistemática
do novo CPC rompe com a típica tradição
romano-germânica (ou de civil law), de que
bebeu nosso ordenamento até o presente, e
arroja-o para uma posição intermediária ou
híbrida(1) entre tal tradição e aquela dos países
anglo-saxões, conhecida como common law.
Lideranças da doutrina processual (muitas
das quais inuenciaram a própria redação do
projeto do novo Código) há anos investigam
o direito comparado e buscaram, no mesmo,
soluções para os crônicos problemas de nosso
processo. No entanto, quaisquer importações
estão fadadas ao insucesso se não examinarem
o ambiente de onde é extraído o instituto im-
portado. Um transporte pela metade não logra
os mesmos resultados que o instituto ensejava
em sua origem, dada a sua desguração.
No caso dos precedentes vinculantes brasi-
leiros, elencados no art. 927 do CPC de 2015,
impõe-se examinar o contexto em que o stare
decisis do common law, funciona em sua origem,
qual seja, em conjunto com o profundo respeito
às decisões de primeiro grau em matérias não
sujeitas à uniformização de jurisprudência,
através dos standards de revisão recursal (stan-
dards of appellate review). Tais standards, nos
países de common law, são uma parte vital do
sistema, o lado reverso da mesma moeda em
que se encontram os precedentes vinculantes,
(1) VIEIRA DE MELLO FILHO, Luiz Philippe. Considerações
sobre a Lei n. 13.015/14: uniformização da jurisprudência
dos Tribunais Regionais. Palestra proferida na Escola
Judicial do TRT da 4a Região em 20.8.2015. Arquivada
em vídeo na intranet da Escola Judicial, disponível em:
106>.
Acesso em: out. 2015.
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complementando a estabilidade oriunda dos
precedentes, emprestando estabilidade e força
para as ordens e decisões judiciais de primeiro
grau. Como abordaremos abaixo, nos países de
common law, enquanto as cortes de primeiro
grau respeitam as decisões dos colegiados
recursais, debatendo-as, comparando-as com
os fatos do caso concreto e as aplicando; as ins-
tâncias superiores em contrapartida se abstêm,
se autolimitam (self-restrain), evitando inter-
ferir nas decisões do juiz de primeiro grau em
situações que não afetam a uniformização do
direito, salvo se houver erro claro (clear error)
quanto às conclusões de fato, ou arbitrariedade
(abuso of discretion), em relação às decisões
que envolvem discricionariedade judicial.
O presente artigo sugere a harmonia da
valorização de certas modalidades de decisões
de primeiro grau, com a nova sistemática de
estabilidade jurisprudencial que decorre do
CPC de 2015, bem como a viabilidade de sua
implantação, mesmo sem outras alterações
legislativas.
Inicialmente, examinaremos em nosso or-
denamento a inexistência de norma expressa
que regule o método de julgamento ou crité-
rios (standards) para a reforma das decisões
recorridas. Veremos que a ausência de quaisque r
limites à reforma de recursos gera desperdício
de tempo e energia do Judiciário, além de fo-
mentar insegurança jurídica, procrastinação e
sobrecarga. Proporemos a adoção de standards
de revisão recursal como uma modalidade de
valorização do primeiro grau, em harmonia
com a Política Nacional de Atenção Prioritária
ao Primeiro Grau de Jurisdição, Resolução
n. 194/2014 do Conselho Nacional de Justi-
ça — CNJ. Discutiremos o funcionamento
dos standards de revisão recursal no direito
comparado e sua possível operacionalização no
sistema pátrio, inexistindo impedimento legal
ou constitucional para a adoção de critérios de
julgamento que restrinjam a reforma desneces-
sária de decisões de primeiro grau. Este breve
trabalho não pretende exaurir tal complexo
tema, mas tão somente fomentar o debate
acerca da busca da redução da litigiosidade
e otimização do processo, à vista do novo
sistema proposto pelo Código de Processo
Civil de 2015.
Contexto atual — Panorama
normativo e consequências práticas
1. Precedentes vinculantes e o
lado reverso da mesma moeda
— a preservação dos aspectos
casuísticos da decisão recorrida
salvo erro claro ou arbitrariedade
a) Precedentes vinculantes do Brasil e nos
Estados Unidos — trabalho hercúleo
— foco dos tribunais nas questões
de direito das decisões recorridas,
valorizando as decisões de primeiro
grau quanto às demais matérias
No sistema proposto pelo Código de Processo
Civil de 2015, em que se prioriza a unifor-
midade dos julgados, demandando trabalho
intenso do segundo grau em tal sentido, não
mais convém que o segundo grau continue
focando a maior parte de seu tempo e energia
em aspectos casuísticos das decisões recorri-
das, como a valoração da prova, conclusões
de fato, e as escolhas discricionárias do juiz de
primeiro grau dentre opções facultadas pela lei.
Em tal senda, compara-se nossa realidade
com o sistema americano, que inspirou a
vinculação aos precedentes agora aqui im-
plantada. Lá, o sistema de precedentes possui,
como corolário lógico e indissociável, o foco do
tribunal nas questões de direito dos recursos,
scalizando a atividade do primeiro grau em
matéria de fato ou discricionária apenas quan-
to a erros claros ou arbitrariedades. O foco
nos precedentes pressupõe uma dose maior
de conança no primeiro grau para matérias de
interesse mais restrito ao próprio caso. Tais
tribunais priorizam os aspectos de interesse
geral das decisões recorridas, analisando-as sob a
ótica da criação ou uniformização de precedentes,
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com instigantes debates que versam não apenas
sobre a interpretação do direito existente, mas
também sobre questões de interesse público e
política judiciária.(2) Outrossim, uma vez que
a decisão de segundo grau lá tende a aderir ao
direito existente, renando-o, moldando-o
ou mesmo o inovando, se examina também
o “efeito agregado” (aggregate efect) de um
precedente. Em tal senda, indaga-se se o fun-
damento determinante (ratio decidendi ou
holding) de um determinado acórdão (case
ou opinion) for aplicado a milhares de casos
análogos, qual seria o efeito prático? Quais
comportamentos sociais seriam encorajados
ou inibidos? A regra de direito que surgiria
do ratio decidendi proposto seria benéca e
prática? Ou traria mais transtorno e tumulto
do que resultados úteis?
Adicionalmente, quando se unica um pre-
cedente nos Estados Unidos, não se edita uma
súmula. Aliás, a súmula é desconhecida e até
mesmo inconcebível em tal sistema.(3) É sempre
editado um acórdão onde são debatidas, à luz
dos fatos do caso concreto, todas as questões de
interpretação jurídica e de política judiciária,
às claras, expressamente. O julgador não está
(2) Debate que, quanto a assuntos novos ou de “primeira
impressão” (f‌irst impression) se inicia no primeiro grau,
já chegando em segundo grau com os argumentos de
ambas as partes e aqueles acatados ou adicionados
pelo juiz, que enriquecem a discussão em sede recursal.
(3) Registra-se aqui a sugestão de que os regimentos
internos de cada tribunal sejam revisados para que
quando editada uma súmula, tal se dê com a prévia
lavratura do acórdão onde debatidas todas as questões
que levaram à edição da súmula, mesmo quando se
utilize a faculdade do art. 926, § 1o, do CPC de 2015
(uniformização de jurisprudência), e não apenas
nos casos dos arts. 976 (incidente de resolução de
demandas repetitivas) ou 947 (incidente de assunção
de competência). Ter as súmulas como autonomamente
vinculantes — despidas do contexto fático onde surgiram
— seria um equívoco, ofensivo ao art. 926, § 2o do novo
CPC. O juiz diz o direito a partir da análise do caso
concreto, não se confundindo com o legislador, que
elabora a norma em abstrato. Ademais, a súmula,
desvinculada dos fatos que lhe deram origem prejudica
toda a dinâmica dos precedentes vinculantes, que
dependem da análise dos subjacentes fatos para sua
compreensão, aplicação e evolução.
preso apenas à hermenêutica da lei formal
(statute), e não tem receio de registrar, dentre
os fundamentos da decisão, questões meta-
jurídicas, pragmáticas, políticas etc., sendo
tais fundamentos considerados essenciais na
criação de um precedente justo e socialmente
ecaz. Aliás, tais considerações metajurídicas,
se forem determinantes para conclusão do jul-
gado (portanto, integrantes do ratio decidendi
ou holding) também se tornam vinculantes,
podendo ser citadas por advogados e juízes
em casos futuros. Logo, o registro claro e
honesto de todos os motivos que levaram a
uma determinada decisão é necessário para:
(1) permitir o conhecimento do real debate
travado e o uso dos respectivos argumentos
em casos futuros; (2) permitir que juízes da
mesma corte ou cortes inferiores entendam a
extensão e aplicação do precedente pacicado,
facilitando sua aplicação em casos futuros;
(3) alimentar o debate que irá uniformizar tal
questão na instância superior, que não pode
prescindir da reunião das melhores pondera-
ções e argumentos sobre o tema, levantados
pelas cortes inferiores.
A edição de acórdãos vinculantes pode
eventualmente se tornar um problema, quando
estes atingem número excessivo, podendo ge-
rar confusão e diculdade para se aferir quais
precedentes vinculantes ainda estão em vigor
(good law), quais foram superados (overruled)
etc. Nos Estados Unidos, tais problemas têm
sido enfrentados com a ltragem, pelos pró-
prios tribunais, de quais precedentes serão
publicados, bem como através de empresas
privadas que, além de editarem repositórios
de jurisprudência (law reports, hoje informa-
tizados), possuem grupos de advogados que
analisam as decisões publicadas, inclusive de
primeiro grau, checando as citações a outras
decisões (que são muitas, dada a praxe do case
law), separando-as por questão jurídica (a
mesma decisão pode conter vinte ou mais legal
issues, ou questões de direito), alimentando
mecanismos de busca informatizados que
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podem evidenciar se um determinado ponto
de direito (issue) de uma decisão vem sendo ci-
tado favorável ou desfavoravelmente,(4) se ainda
está em vigor, se teve seu alcance restringido
ou ampliado por decisão superveniente etc.
No Brasil, presumivelmente para evitar
tal excesso de precedentes vinculantes e sua
vulgarização, (acertadamente) limitaram-se os
precedentes vinculantes à lista do art. 927 do
CPC de 2015.(5) Assim, ao contrário do sistema
americano, os julgados dos órgãos fracioná-
rios (panels) de um tribunal não vinculam os
juízos dos graus inferiores no Brasil — o que
tornaria impraticável a vinculação, dado que
seriam milhões de precedentes vinculantes,
muitas vezes conitantes entre si. Anal, re-
manescendo precedentes contraditórios entre
si, as partes poderiam continuar invocando
precedentes da linha que lhe fosse mais con-
veniente, como é feito hoje, o que equivaleria
a nenhuma vinculação.
Entretanto, mesmo considerada a simpli-
cação do sistema de precedentes brasileiro,
que limita o efeito vinculante aos precedentes
já unicados em um tribunal, o relato acima
mostra o quão incompatível esta nova vocação
dos tribunais é com o rejulgamento de todas
(4) Como citações favoráveis, pode-se identif‌icar, e.g.,
a simples adoção do precedente, ou a sua extensão
a casos análogos (extending, analogizing). Citações
desfavoráveis, e.g., podem ser o reconhecimento de que
um caso foi superado por lei superveniente (superseded
by statute) ou por acórdão superveniente do mesmo
tribunal ou de tribunal superior (overruling), ou que
uma determinada corte deixou de aplicar um caso por
entender que o precedente não tem relação com o
caso diverso (not following, distinguishing) ou que os
fatos concretos justif‌icam o estabelecimento de uma
exceção ao entendimento mais geral anteriormente
f‌irmado (limiting, distinguishing).
(5) (I) as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle
concentrado de constitucionalidade; (II) os enunciados
de súmula vinculante; (III) os acórdãos em incidente
de assunção de competência ou de resolução de
demandas repetitivas e em julgamento de recursos
extraordinário e especial repetitivos; (IV) os enunciados
das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria
constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em
matéria infraconstitucional; (V) a orientação do plenário
ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.
as peculiaridades do caso concreto, como se o
acórdão fosse uma nova sentença, extrapolan-
do a função de revisar eventuais erros claros
ou arbitrariedades da decisão a quo. Dentro do
hercúleo trabalho da maturação e unicação
dos precedentes, inexiste espaço para a repeti-
ção do trabalho do primeiro grau, afastando o
debate recursal das questões de direito a serem
uniformizadas.
b) Na ausência de limites explícitos à
reforma, rediscussão da prova e da
justiça do julgado — desperdício e
subversão de valores
As novas atribuições dos tribunais de se-
gundo grau em matéria de precedentes, como
visto, recomendam o foco em tal atividade e
certo distanciamento dos aspectos mais casuís-
ticos das decisões recorridas, preservando o
decidido pelo juízo a quo, salvo se detectados
erro claro ou arbitrariedade. A sistemática
introduzida pelo novo CPC, portanto, deman-
da a especialização de funções de primeira e
segunda instâncias. No entanto, ante o silêncio
normativo quanto a graus, padrões ou limites
à reforma, não é incomum que os tribunais
ignorem decisões razoáveis dos juízes a quo,
substituindo-as pelas que teriam prolatado,
caso tivessem sido o juiz de primeiro grau
da causa.(6) Em tal contexto, as partes apelam
simplesmente para ter uma segunda chance,
não sendo necessário apontar erro de julga-
mento. Tal mecânica ignora o fato de que toda
a aplicação do direito implica em algum nível
de subjetividade e discricionariedade, e que a
função dos tribunais é revisar, e não prolatar
nova sentença, como já referiram Claus et al.:
“Em que pese ao irrecusável caráter herme-
nêutico da aplicação do direito corporicado
na sentença, alguns acórdãos parecem mais
uma nova sentença do que um ato de revisão,
(6) FRAGA, Ricardo Carvalho; VARGAS, Luiz Alberto de.
Fatos e Jurisprudência: Ref‌lexões Iniciais. In: Revista
Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 541, 30 dez. 2004.
Disponível em: 19> e
gas.com.br/fatos.html>.
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pois praticamente ignoram a decisão de
primeiro grau; reescrevem a litiscontestação
e examinam os fatos e a prova como se o tri-
bunal fosse o primeiro destinatário da prova
e do debate processual; como se o laborioso
trabalho que resultou na sentença pudesse
ser desconhecido. Tal atitude decorre de
uma compreensão equivocada acerca do que
seja a função revisora dos tribunais (objeto),
equívoco que se comunica ao modo de pro-
ceder no julgamento do recurso (método).(7)
Em contraponto, na cultura jur ídica norte-
-americana está sedimentado que a decisão de
primeiro grau põe m ao processo, salvo em
caso de erro,(8) e que a função dos tribunais
não é repetir o mister da primeira instância,
mas unicar o direito e corrigir erros graves.(9)
Por aqui, tanto o Código de Processo Civil
de 1973 (CPC/1973) quanto o CPC/2015 são
silentes acerca do método de revisão recursal,
limitando-se a mencionar os efeitos devolutivo
e suspensivo.(10) Na Consolidação das Leis do
(7) CLAUS, Ben-Hur Silveira; LORENZETTI, Ari Pedro;
FIOREZE, Ricardo; ROSSAL, Francisco R. de Araújo;
MARTINS-COSTA, Ricardo; AMARAL, Márcio Lima do.
A Função Revisora dos Tribunais: A Questão do Método
no Julgamento dos Recursos de Natureza Ordinária. In:
Revista do Tribunal Regional do Trabalho da 14a Região,
v. 6, p. 179-80, 2010. Sobre o assunto ver também
artigo dos mesmos autores “A Função Revisora dos
Tribunais — A Questão da Valorização das Decisões
de Primeiro Grau — Uma Proposta de Lege Ferenda: A
Sentença Como Primeiro Voto no Colegiado.”Revista
do Tribunal Regional do Trabalho da 14a Região, v. 6.
n. 2, p. 597, jul./dez. 2010. Ver ainda CLAUS, Ben-Hur
Silveira. A Função Revisora dos Tribunais Diante da
Sentença Razoável. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 4a Região, n. 40, p. 57, 2012.
(8) Não se apela, no processo civil americano, sem indicar
os pontos de erro da decisão recorrida (points of error).
(9) ROSENN, Keith S. Brazil. Legal Systems of the World: a
Political, Social, and Cultural Encyclopedia. v. 1, p. 191,
2002. Tal autor é um importante comparativista norte-
-americano, com várias publicações acerca do direito
brasileiro. Para uma interessante visão comparativa
do ordenamento brasileiro, sobretudo os entraves
ao funcionamento da Justiça e da burocracia pública,
bem como a distância entre o direito positivado e o
efetivamente praticado, ver: ROSENN, Keith S. O jeito na
cultura jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 1998.
(10) CPC/2015, art. 1012, § 1o; CPC/1973, art. 520.
Trabalho (CLT), da mesma forma, inexiste
critério objetivo que expressamente limite a
reforma. Prevalecendo a tradicional tese de
que o tribunal tem iguais poderes aos que o juiz
originário tinha quando julgou a causa,(11) tal
excessiva devolutibilidade permite não apenas
a arguição de erro ou ilegalidade, mas a própria
rediscussão da valoração da prova e da justiça
do julgado.(12) Não há, na tradição jurídica
brasileira, uma presunção de que a decisão
recorrida está correta.(13) O tribunal tende a se
considerar tão bem posicionado quanto o juiz
originário para sopesar a prova, subestimando
a importância do contato direto com a prova
oral.(14) Assim, a sentença de primeiro grau,
exarada por membro de um dos três poderes
da República, ultima ratio para a solução dos
conitos da sociedade brasileira, tem sido
valorizada a menos que um ato administrativo,
o qual é tido como dotado de presunção de
legitimidade, como decorrência do poder
de império estatal.(15)
Trata-se, no mínimo, de uma subversão de
valores, além de um inadmissível desperdício
da atividade jurisdicional de primeiro e segun-
do graus, como veremos abaixo.
2. O problema — Desvalorização
das decisões de primeiro grau
— Excessiva recorribilidade,
sobrecarga, protelação, desperdício
No Brasil, a elevadíssima recorribilidade
sobrecarrega todo o sistema. A ampla maioria
das decisões de primeiro grau são objeto de
(11) SANTOS, Moacir Amaral. Primeiras Linhas de Direito
Processual Civil. v. 3, 7. ed., 1984. p. 110.
(12) NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade.
Código de Processo Civil Comentado. 11. ed., 2010. p.
887-893. No mesmo sentido BEZERRA LEITE, Carlos
Henrique. Curso de Direito Processual do Trabalho. 3.
ed., 2005. p. 565; SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito
Processual do Trabalho. 7. ed., 2014. p. 804.
(13) ROSENN, Keith S. Civil Procedure in Brazil. American
Journal of Comparative Law. v. 34, p. 508, 1986.
(14) Idem.
(15) CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito
Administrativo. 13. ed., 2005. p. 98.
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recurso, com elevada taxa de reforma. A ausên-
cia de limites mais estritos à reforma é um dos
fatores que, dentre outros, leva a tal panorama.
Em contraste, na justiça federal americana, de
375.870 processos ajuizados em 2013, 56.475
foram objeto de apelação (15%)(16) e, dentre
os mesmos, apenas 12-14% das apelações não
criminais foram providas (menos que 2% do
total).(17)
Até o presente, muitos foram os “culpa-
dos” pela excessiva recorribilidade, como:
a pletora de recursos permitida,(18) o relati-
vamente baixo custo para recorrer, a rara e
insuciente imposição das penalidades por
má-fé processual,(19) e notadamente, a falta de
unidade da jurisprudência, permitindo a ex-
ploração pelo recorrente dos dissensos entre as
cortes.(20) Corrigir este último problema é uma
das principais bandeiras do novo CPC — dar
força à jurisprudência, a m de que as questões
já pacicadas não sejam recorridas milhões
de vezes, aumentando a segurança jurídica e
descongestionando o uxo dos processos nas
cortes. No entanto, a valorização dos prece-
dentes dos tribunais não basta. É igualmente
necessária a valorização das decisões do juiz
— linha de frente do Poder Judiciário, sua
face mais visível perante o jurisdicionado. A
redução de pleitos temerários e da excessiva
recorribilidade passa necessariamente pela
alteração do método de julgamento recursal
onde, atualmente, inexiste qualquer inibição
(16) UNITED STATES COURTS. Judicial Caseload Indicators,
2013. Disponível em:
statistics-reports/judicial-caseload-indicators-judicial-
business-2013>. Acesso em: 6 dez. 2015.
(17) UNITED STATES COURTS. Judicial Business, 2014.
Disponível em:
table/b-5/judicial-business/2014/09/30>. Acesso em:
6 dez. 2015.
(18) CPC/2015, art. 994; CPC/1973, art. 496; CLT, ar t. 893.
(19) Cf. BARRAL, Welber; MACHADO, Rafael Bicca. Civil
Procedure and Arbitration. In: Introduction to Brazilian
Law, p. 183, 2011 .
(20) Tal é historicamente um problema em nosso
ordenamento, que vem sendo combatido com as
últimas reformas no processo civil, as quais culminaram
a edição do CPC/2015, bem como, no âmbito
trabalhista, com a edição da Lei n. 13.015/2014.
ao descarte de conclusões de fato ou decisões
de cunho discricionário corretas ou razoáveis.
O resultado que decorre da utilização desse
método de apreciação do recurso só pode ser
o incremento no número de reformas das
sentenças de primeiro grau. E não pode ser
diferente. O próprio método induz à reforma
da sentença, porquanto não atenta para um
pressuposto ínsito ao fenômeno jurídico:
desconsidera que o caráter hermenêutico da
aplicação do direito implica natural discricio-
nariedade do juiz no julgamento da causa. (21)
Em que pese muitos julgadores de segundo
grau partem de criteriosa análise da sentença
para reformá-la, apenas se efetivamente en-
contrado erro, outros a ignoram como se
inexistisse, decidindo como se prolatasse nova
sentença, eventualmente sequer mencionando
a sentença recorrida. Em tal hipótese, a con-
rmação da sentença é mera obra do acaso,
ocorrendo apenas se coincidente a sentença
com a conclusão a que independentemente
chegou o órgão revisor.(22)
Tal desvalorização das decisões de primeiro
grau cria excessivos incentivos ao recurso. As
partes sucumbentes enxergam no recurso uma
elevada chance de êxito, com baixo custo ou
risco.(23) Anal, a mera discordância do juízo
(21) CLAUS, Ben-Hur Silveira; LORENZETTI, Ari Pedro;
FIOREZE, Ricardo; ROSSAL, Francisco R. de Araújo;
MARTINS-COSTA, Ricardo; AMARAL, Márcio Lima
do. A Função Revisora dos Tribunais: A Questão do
Método no Julgamento dos Recursos de Natureza
Ordinária. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 14a Região, v. 6, p. 179-80, 2010. Disponível em:
evista_
TRT14_2010_n1.pdf>.
(22) De forma similar pensam: CLAUS, LORENZETTI,
FIOREZE, ROSSAL, COSTA e AMARAL, op. cit.
(23) Na seara trabalhista, os autores estão geralmente
acobertados pela gratuidade de justiça. Logo, ante
a baixíssimo risco de penalização por recursos
infundados e a elevada taxa de reversibilidade, tal
equação sempre recomendará que se recorra. Do
lado dos reclamados — salvo pelas condenações de
pequena monta, onde o depósito recursal é suf‌iciente
desestímulo ao recurso temerário — a equação não é
diferente: a elevada chance de êxito e o baixo custo
ou risco encorajará que se recorra (quase) sempre, a
despeito do quão correta ou razoável a sentença seja.
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ad quem de uma decisão tecnicamente correta
do juízo de origem, quanto à verdade dos fatos
ou quanto ao exercício de discricionariedade
(e.g., o arbitramento de uma indenização ou
de uma multa processual), é o suciente para
a reforma.
Ademais, a repetição em sede recursal de
trabalho similar ao do primeiro grau é mate-
maticamente impossível. Se desembargadores
constituem cerca de 14% da totalidade dos
juízes no Brasil,(24) e considerando que a maio-
ria das sentenças são objeto de recurso, como
podem arcar com o mesmo trabalho que seis
vezes mais colegas de primeiro grau esforça-
damente desempenham? Com aumento de
delegação a auxiliares? É desejável a produção
em massa de decisões de segundo grau, com
o desembargador gerindo uma grande equipe
de assessores que repetiriam trabalho similar
ao já feito por um juiz de primeiro grau? Ou
o novo sistema positivado pelo CPC de 2015
pressupõe um desembargador preocupado
com o renamento e unicação do direito,
e com o uso dos precedentes de forma con-
sistente, lógica e harmônica, exercendo um
trabalho de elevada reexão em um número
mais reduzido de acórdãos? É conveniente para
a administração da justiça essa repetição em
massa, no segundo grau, da mesma sistemática
do primeiro grau, em termos de desperdício de
recursos humanos? É conveniente para o juris-
dicionado em termos de celeridade? A chance
de acerto do segundo grau (nas matérias que
dizem respeito exclusivamente ao caso concre-
to e não interessam à unicação de precedentes)
é maior do que aquela do juiz de primeiro grau,
que, e.g., observou pessoalmente a testemun ha,
ou que já sabe de outros processos em que
determinada parte litigou de má-fé?
O novo CPC é uma oportunidade. Seus
instrumentos possibilitam a compreensão da
diferenciação de funções entre as instâncias.
(24) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA — CNJ. Justiça
em Números, p. 32, 2013. Disponível em:
cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2015.zip>.
Acesso em: 2 nov. 2015.
Retiram o foco do segundo grau da rotina,
para que este assuma o papel de autoridade que
depura e desenvolve o direito em sua região,
atuando nos elementos mais concretos dos re-
cursos apenas para corrigir erros ou excessos.
Uma das principais justificativas para o
direito ao recurso é sua função de salvaguarda
procedimental, a m de proteger o jurisdicio-
nado de decisões de primeiro grau equivocadas
ou injustas.(25) Não faz sentido, entretanto,
tentar atingir tal meta através de uma revisão
recursal ilimitada, tão sujeita a erros quanto
o julgamento de primeiro grau. Na lição de
Mauro Cappelletti, “o excesso de garantias se
volta contra o sistema”, já que a maior demora
do processo, decorrente da alta recorribilidade,
afeta desproporcionalmente os economic amen-
te mais frágeis.(26) O excesso de salvaguardas do
sistema prejudica justamente a quem deveria
resguardar.
Ademais, a irrestrita revisão das conclusões
de fato (fact ndings) pelos tribunais, sem a
necessária valorização das conclusões do juízo
a quo, exclusivamente com base nos registros
escritos da prova oral colhida, sacrica a ime-
diatidade do contato entre o juiz e a prova, já
que o colegiado de um tribunal não tem como
se colocar na posição do juiz singular, para
coletar diretamente as mesmas impressões.
Em tal sentido, referem Fraga e Vargas que:
“[...] essa transmigração é impossível. Por
melhor que os registros de ata reproduzam
os depoimentos de partes e testemunhas,
jamais poderão transmitir a realidade
complexa ocorrida na sala de audiência
que somente o juiz, ‘in loco’ pode captar.(27)
(25) SCHIAVI, Mauro. Manual de Direito Processual do
Trabalho. 7. ed., 2014. p. 804.
(26) CAPPELLETTI, Mauro. Processo, Ideologias e
Sociedade. 1973, p. 278-79. Citado por CLAUS, Ben-Hur
Silveira et al. A função revisora dos tribunais: a questão
do método no julgamento dos recursos de natureza
ordinária. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 14a Região, v. 6, p. 186-89, 2010. Disponível em:
evista_
TRT14_2010_n1.pdf>.
(27) FRAGA, Ricardo Carvalho; VARGAS, Luiz Alberto
de. Fatos e Jurisprudência: Ref‌lexões Iniciais. Revista
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O mesmo raciocínio se aplica quanto a deci-
sões de cunho discricionário, já que raramente a
lei comporta apenas uma solução correta para
o caso concreto. Aqui não se cogita do termo
discricionariedade no sentido de estrito juízo
de conveniência e oportunidade do direito ad-
ministrativo, ou como sinônimo de diversidade
de possíveis soluções hermenêuticas, matéria
que é justamente o foco dos tribunais, segundo
a sistemática do novo CPC. Referimo-nos às si-
tuações em que o direito está sedimentado e os
fatos já qualicados juridicamente, mas ainda
assim o direito permite ao julgador a escolha
dentre mais de uma opção válida, conforme a
ponderação das peculiaridades do caso concre-
to. Exemplos típicos são: o indeferimento de
provas desnecessárias ou impertinentes, a xa-
ção de penalidades processuais, arbitramento
de indenizações ou mesmo de dados fáticos
faltantes na prova (por exemplo, a jornada de
trabalho média em meses para os quais não
foram juntados os registros de ponto).
Vejamos como a situação é tratada no di-
reito processual norte-americano.
II. Standards de Revisão Recursal
(Standards of Appellate Review) no
Direito Americano
No common law, tal problema é solucionado
com o uso dos standards de revisão recursal
(standards of appellate review). Os standard
of review são uma característica indissociável
do sistema de precedentes estáveis, já que não
podem os tribunais se concentrar na tarefa de
uniformização se rezerem o julgamento de
primeiro grau, com todas as peculiaridades
relevantes apenas para o caso concreto. Um
standard of re view é “o nível de deferência dado
pela corte revisora à decisão ou ato de outro
juízo”(28), uma régua que dene a profundidade
Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 541, 30 dez. 2004.
Disponível em: 19> e
gas.com.br/fatos.html>.
(28) SARGENT, Walter H. The Meaning of Standard of
Review. Appellate Practice in Federal and State
Courts, § 3.01, 2014.
da revisão recursal e aloca funções entre os
atores judiciais.(29) Assim, a reversibilidade das
decisões de primeiro grau é limitada por tais
standards, demandando das cortes recursais
o exercício de autolimitação (self-restraint) ao
prolatar suas decisões.(30) O termo standards
pode ser traduzido como “critérios,” “níveis”
ou “padrões” (de revisão recursal). Utiliza-
remos neste artigo a palavra standards para
facilitar a referência, bem como para evitar
ambiguidades.
Leciona Peters que as razões para o uso dos
standards de revisão recursal no sistema jurídico
americano incluem o equilíbrio de poderes
entre os juízes, a eciência do judiciário, uni-
formidade (consistency) e segurança jurídica
(predictability). O juízo de primeiro grau está
em melhor posição para ser o gestor da lide,
bem como para observar diretamente a prova
e se pronunciar quanto à verdade dos fatos,
enquanto que cabe ao juízo recursal vericar se
o juízo a quo aplicou o direito corretamente.(31)
Standards of review fazem, salvo em questões
de direito, com que a decisão a quo seja de-
nitiva, salvo em caso de erro que cause efetivo
prejuízo (harmful error), bem como evitam o
desperdício de tempo e recursos da corte de
apelação, prevenindo a repetição do trabalho
do juízo a quo. Finalmente, os níveis de revisão
recursal promovem a segurança jurídica, já
que as partes têm uma visão realista quanto
às chances de êxito de um recurso, desesti-
mula recursos protelatórios, encorajando a
conciliação.(32)
Conforme Casey, Camara e Wright, os stan-
dards de revisão recursal estão longe de serem
uma fórmula com precisão matemática.(33)
(29) GODBOLD, John C. Twenty Pages and Twenty Minutes:
Effective Advocacy on Appeal. Southwestern Law
Journal, v. 30, p. 810, 1976.
(30) PETERS, Amanda. The Meaning, Measure, and Misuse
of Standards of Review. Lewis & Clark Law Review, v.
13, p. 235, 2009.
(31) Ibidem, p. 235-42.
(32) Idem.
(33) CASEY, Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT, Nancy.
Standards of Appellate Review in the Federal Circuit:
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Muitas nuances de um espectro se subsumem
a cada standard. Em geral, quatro termos prin-
cipais dividem tal espectro de possibilidades
nos Estados Unidos. Uma questão de direito
passa por uma revisão de novo(34) (no sentido
de nova, sem limitações), sem que a decisão
recorrida, em tal parte, receba qualquer de-
ferência ou presunção de acerto. Na revisão
das conclusões de fato, só há reforma em caso
de erro claro (clear error), se tal conclusão é
“claramente errônea” (clearly erroneous).(35)
A Suprema Corte americana já se manifestou
sobre tal conceito, armando que “um acha-
do [conclusão de fato] é ‘claramente errôneo’
quando, mesmo havendo alguma prova que
o ampare, o conjunto da prova leva a corte
revisora à rme convicção de que um erro foi
cometido.(36) Ainda mais deferência é dada
às conclusões de fato emitidas por um júri, as
quais são mantidas como regra, bastando que
estejam amparadas em “prova substancial”
(substantial evidence) — um “conjunto pro-
batório que mentes razoáveis possam aceitar
como adequado para amparar a conclusão.(37)
Finalmente, o nível de revisão recursal mais
leniente é o da arbitrariedade, ou “abuso de
discricionariedade” (abuse of discretion), ge-
ralmente utilizado para a revisão de questões
processuais,(38) permitindo a reforma apenas
Substance and Semantics. Federal Circuit Bar Journal,
v. 11, p. 284-86, 2002.
(34) Aqui não se trata de tradução, em que pese a
coincidência de graf‌ia na língua portuguesa. “De
novo” é o termo efetivamente utilizado no jargão
jurídico norte-americano, trazido do latim.
(35) Ibidem.
(36) United States v. U.S. Gypsum Co., 333 U.S. 364, 395
(1948): “A f‌inding is ‘clearly erroneous’ when although
there is evidence to support it, the reviewing court on
the entire evidence is left with the def‌inite and f‌irm
conviction that a mistake has been committed.”
(37) Conforme também manifestou a Suprema Corte
americana, em Universal Camera Corp. v. NLRB, 340
U.S. 474, 477 (1951): “such relevant evidence as a
reasonable mind might accept as adequate to suppor t
a conclusion.”
(38) PETERS, Amanda. The Meaning, Measure, and Misuse
of Standards of Review. Lewis & Clark Law Review, v. 13,
p. 243, 2009.
quando a decisão foge à razoabilidade ou é
arbitrária.(39) Vejamos.
1. Questões de direito — standard
de revisão recursal de novo
No sistema judiciário americano, as deter-
minações quanto à matéria estritamente de
direito do juízo a quo não recebem deferência
da instância superior — standard de revisão
recursal que é chamado de novo. Teorica-
mente seria um novo começo, onde o debate
recomeçaria do ponto inicial.(40) A corte revi-
sora pode chegar a uma conclusão diferente
sem particular deferência à decisão a quo,(41)
apreciando as questões de direito de forma in-
dependente, à vista da legislação e precedentes
existentes, bem como unicando eventuais
divergências.(42) Embora o termo de novo faça
parecer que a matéria seria decidida como se
não houvesse uma decisão anterior,(43) na praxe
norte-americana uma corte de apelação nunca
começa do zero. Inicia pela revisão cuidadosa
do trabalho de primeiro grau,(44) não podendo
ser “simplesmente ignorada a sua visão dos
efeitos legais do conjunto de fatos que lhe foi
submetido.(45)
(39) CASEY, Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT, Nancy.
Standards of Appellate Review in the Federal Circuit:
Substance and Semantics. Federal Circuit Bar Journal,
v. 11, p. 284-86, 2002.
(40) SARGENT, Walter H. The Meaning of Standard of
Review. Appellate Practice in Federal and State
Courts, § 3.04, 2014.
(41) Idem.
(42) CHILDRESS, Steven Alan. Standards of Review Primer:
Federal Civil Appeals. Federal Rules Decisions, v. 229,
p. 274, 2005.
(43) “[...] as if it had not been heard before and no decision
had been rendered.” CASEY, Kevin; CAMARA, Jade;
WRIGHT, Nancy. Standards of Appellate Review in
the Federal Circuit: Substance and Semantics. Federal
Circuit Bar Journal, v. 11, p. 291, 2002.
(44) Key Pharms. v. Hercon Labs., 161 F.3d 709, 713
(Fed. Cir. 1998), citado em CASEY, Kevin; CAMARA,
Jade; WRIGHT, Nancy. Standards of Appellate Review
in the Federal Circuit: Substance and Semantics. Federal
Circuit Bar Journal, v. 11, p. 291, 2002.
(45) Conforme decisão da corte federal de apelação
US Court of Appeals for the Federal Circuit, situada
em Washington DC no caso Fina Research, S.A. v.
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2. Conclusões de fato do juiz – standard
de revisão recursal clearly erroneous
No processo civil federal norte-americano,(46)
as “conclusões de fato, tanto as baseadas em
prova oral ou quanto em outras provas, não
deverão ser afastadas salvo se ‘claramente
errôneas,’ e a corte revisora deverá dar a ne-
cessária consideração à oportunidade que o
juízo de primeiro grau teve para examinar a
credibilidade da testemunha,” conforme art.
52(a)(6) das Regras Federais de Processo Civil
(Federal Rules of Civil Procedure, doravante
FRCP).(47) “Um achado [conclusão de fato] é
‘claramente errôneo’ quando, mesmo havendo
alguma prova que o ampare, o conjunto da
prova leva a corte revisora à rme convicção
de que um erro foi cometido.(48) A corte revi-
sora não afasta a conclusão do juízo recorrido
“simplesmente porque está convencida de que
teria decidido o caso diferentemente.(49) Se a
Baroid Ltd., 141 F.3d 1479, 1481 (Fed. Cir. 1998): “[T]
he district court’s ‘view of the legal effect of the fact
pattern before it is not to be lightly disregarded.’” Nos
Estados Unidos existem 13 cor tes de apelação federais,
logo abaixo da U.S. Supreme Court. São 12 U.S. Cour ts
of Appeals para os 12 “circuitos” regionais, que revisam
a aplicação da lei pelas cortes federais de primeiro grau
(U.S. District Courts, divididas nacionalmente em 94
“distritos”) dentro da respectiva área geográf‌ica de
tais “circuitos”. A décima terceira Court of Appeals
está vinculada ao chamado Federal Circuit, com
jurisdição em todo o território dos Estados Unidos e
competência recursal para matérias especiais, como
patentes, comércio internacional e grande parte das
ações em face do governo federal. Em tal sentido ver:
role-and-structure>. Acesso em: 4 dez. 2015.
(46) E também na maioria das normas processuais estaduais,
que diferem pouco do processo federal.
(47) “[f]indings of fact, whether based on oral or other
evidence, must not be set aside unless clearly
erroneous, and the reviewing court must give due
regard to the trial court’s opportunity to judge the
witnesses’ credibility.” FRCP 52(a)(6).
(48) “A f‌inding is ‘clearly erroneous’ when although there
is evidence to support it, the reviewing court on
the entire evidence is left with the def‌inite and f‌irm
conviction that a mistake has been committed.” United
States v. U.S. Gypsum Co., 333 U.S. 364, 395 (1948).
(49) “[...] simply because it is convinced that it would have
decided the case differently.” Anderson v. Bessemer
conclusão é razoável, a corte de apelação não
pode revertê-la, embora convencida de que, se
tivesse sido o juiz originário, teria sopesado a
prova de forma diferente. Onde há du as visões
admissíveis sobre o conjunto probatório, a
escolha do juiz originário por uma delas não
pode ser claramente errônea.(50)
Tal se aplica inclusive a provas físicas ou
documentais, não apenas à credibilidade de
testemunhas. No entanto, se tem reconhecido
que ainda mais deferência é devida, sob o
standard “claramente errôneo”, às decisões de
fato que envolvem a credibilidade de teste-
munhas.(51)
A pergunta ou teste para aplicação do
standard “claramente errôneo”, não é se as
conclusões de fato estavam corretas, mas sim se
elas estavam claramente erradas. Para ter êxito
recorrendo de conclusões fáticas, o recorrente
teria de mostrar que a conclusão de fato recor-
rida “não tem qualquer ligação racional com
o conjunto probatór io, ou que o vasto pes o da
prova torna a conclusão certamente errada,(52)
o que é bastante raro na praxe americana.
3. Conclusões de fato do júri —
standard de revisão recursal
substantial evidence
Enquanto o standard de revisão “clara-
mente errôneo” se aplica às conclusões de fato
City, 470 U.S. 564, 573-74 (1985), citado em SARGENT,
Walter H. The Meaning of Standard of Review. Appellate
Practice in Federal and State Courts, § 3.04, 2014.
(50) “[...] may not reverse it even though convinced that had
it been sitting as the trier of fact, it would have weighed
the evidence differently. Where there are two permissible
views of the evidence, the factf‌inder’s choice between
them cannot be clearly erroneous.” Idem.
(51) Idem.
(52) “[...] lack any rational connection to the record or
that the vast weight of the evidence renders a f‌inding
certainly wrong. Such circumstances are rare.” CASEY,
Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT, Nancy. Standards of
Appellate Review in the Federal Circuit: Substance and
Semantics. Federal Circuit Bar Journal, v. 11, p. 299,
2002. Ver supra notas 17-18, acerca de estatísticas que
ilustram a relativa raridade com que são reformadas
as decisões de primeiro grau nos Estados Unidos.
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exaradas por um juiz, as conclusões de fato
constantes de um veredito do júri são de
reversibilidade ainda mais rara, submetidas
ao standard chamado “prova substancial”
(substantial evidence).(53) Embora inexista júri
no processo civil brasileiro, a presente nota se
faz útil para a compreensão do conjunto do
sistema dos standards of review.
Uma conclusão de fato do júri não pode ser
afastada, salvo se “inexistir amparo probatório
legalmente suciente para que um júri razoável
chegue a tal conclusão,” o que se examina a par-
tir de “toda a prova dos autos, dela extraindo
todas as inferências razoáveis que favoreçam
o veredito do júri, sem avaliar a credibilidade
de testemunhas ou valorar a prova.(54) Tal
teste de suciência da prova é chamado “prova
substancial” (substantial evidence). A prova é
“substancial” quando, sem crítica de sua
credibilidade (tarefa exclusiva do júri), o con-
junto probatório pode razoavelmente amparar
a conclusão de fato do júri,(55) ou ao menos
mentes razoáveis poderiam discordar. Se a
prova que daria suporte ao veredito é irrisória,
mera “centelha de prova”,(56) ou se nenhuma
pessoa imparcial e razoável poderia aceitar a
conclusão recorrida baseando-se em tal prova,
então inexiste “prova substancial,” devendo
haver a reforma.(57) Trata-se de salvaguarda
para evitar sentenças baseadas em vereditos
absurdos, sem suporte nas provas.
4. Questões mistas de direito e de
fato — standard de revisão recursal
(53) Ibidem, p. 307.
(54) Reeves v. Sanderson Plumbing Prods., 530 U.S. 133,
149-51 (2000), In: SARGENT, Walter H. The Meaning
of Standard of Review. A ppellate Practice in Federal
and State Courts, § 3.04, 2014.
(55) Ver Consolidated Edison Co. v. NLRB, 305 U.S. 197, 229
(1938), In: CASEY, Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT,
Nancy. Standards of Appellate Review in the Federal
Circuit: Substance and Semantics. Federal Circuit Bar
Journal, v. 11, p. 308, 2002.
(56) “Scintilla of evidence.”
(57) CHILDRESS, Steven Alan. Standards of Review Primer:
Federal Civil Appeals. Federal Rules Decisions, v. 229,
p. 283, 2005.
conforme a preponderância da
análise do direito ou do fato
Questões mistas de direito e de fato são
“questões em que os fatos históricos são in-
controversos ou já comprovados, o direito
abstratamente aplicável não é controvertido,
e o debate centra-se na subsunção dos fatos à
hipótese legal ou, posto de outra forma, se a regra
de direito, da forma como aplicada a tais fatos,
foi ou não violada.(58) Assim, a questão mista
é o que resta controvertido após o estabeleci-
mento da verdade dos fatos e da pertinente
regra de direito em abstrato — a subsunção
dos fatos do caso concreto à regra de direito.(59)
Não há fórmula rígida sobre qual standard
de revisão aplicar em tal caso, referindo a
Suprema Corte que uma revisão recursal com
mais deferência [à decisão a quo] nas questões
mistas de direito e de fato é cabível quando
se agurar que a corte de primeiro grau está
melhor posicionada que a corte recursal para
decidir a questão ou quando um escrutínio
mais aprofundado em nada contribuiria para
aclarar a doutrina jurídica.(60)
Por exemplo, em casos que envolvem a
aplicação da Oitava Emenda à Constituição
americana,(61) a aferição de excessividade de
uma multa requer a aplicação de um concei-
to constitucional aos fatos concretos, o que
é revisado sob o standard “de novo.(62)
(58) Pullman-Standard v. Swint, 456 U.S. 273, 289 n.19
(1982).
(59) United States v. McConney, 728 F.2d 1195, 1200-02
(9th Cir. 1984) (en banc), In: SARGENT, Walter H. The
Meaning of Standard of Review. Appellate Practice in
Federal and State Courts, § 3.04, 2014.
(60) Salve Regina College v. Russell, 499 U.S. 225, 233
(1991), In: SARGENT, Walter H. The Meaning of
Standard of Review. A ppellate Practice in Federal and
State Courts, § 3.04, 2014.
(61) “Não será exigida f‌iança excessiva, nem impostas
multas excessivas, nem as punições cruéis ou
incomuns” (Excessive bail shall not be required,
nor excessive f‌ines imposed, nor cruel and unusual
punishments inf‌licted). Oitava Emenda à Constituição
dos Estados Unidos.
(62) United States v. Bajakajian, 524 U.S. 321, 337 n.10
(1998), In: CHILDRESS, Steven Alan. Standards of
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Em contraste, frequentemente a aplicação do
direito aos fatos se confunde com a própria
descoberta dos fatos, protegida de excessiva
reversibilidade das questões fáticas pelo art.
52(6)(63) das FRCP.(64)
Assim, questões mistas de direito e fato
devem ser revisadas de novo, sem as restrições
da FRCP 52(a), quando os fatos são claros
mas existe necessidade de aprimoramento ou
uniformização do direito, ou quando, embora a
regra jurídica seja clara em abstrato, há impor-
tantes desdobramentos de interesse público no
caso concreto.(65) Do contrário, a questão mista
deve ser revisada pelo standard “claramente
errôneo” se a interpretação da regra jurídica é
pacíca mas os fatos são complexos, onde o re-
gistro da prova nos autos pode não ter captado
toda a complexidade da informação, inclusive
quanto à credibilidade da prova, colocando
o juízo de primeiro grau em melhor posição
para apreciar tal aplicação da norma aos fatos.
5. Decisões discricionárias — standard
de revisão recursal abuse of
discretion
Ao decidir questões processuais — como:
conitos na fase de “descoberta” (discovery),(66)
Review Primer: Federal Civil Appeals. Federal Rules
Decisions, v. 229, p. 276, 2005.
(63) “Conclusões de fato, tanto as baseadas em prova
oral ou quanto em outras provas, não deverão ser
afastadas salvo se claramente errôneas...” (“Findings
of fact, whether based on oral or other evidence, must
not be set aside unless clearly erroneous, [...]”). FRCP
52(a)(6).
(64) Miller v. Fenton, 474 U.S. 10 4 (1985), citado em
CHILDRESS, Steven Alan. Standards of Review Primer:
Federal Civil Appeals. Federal Rules Decisions, v. 229,
p. 276, 2005.
(65) CALLEROS, Charles Richard. Title VII and Rule 52(a):
Standards of Appellate Review in Disparate Treatment
Cases-Limiting the Reach of Pullman-Standard v.
Swint. Tulane Law Review, v. 58, p. 425 (1983).
(66) Descoberta (discovery), na instrução processual
norte-americana, é a colheita preliminar de provas
conduzida pelos próprios advogados, eventualmente
supervisionada pelo juiz, de onde se origina a
prova que será apresentada ao júri na audiência de
julgamento (trial). Os advogados americanos possuem
vastos poderes de instrução processual, sujeitos
xação das datas e prazos para os principais
eventos do processo (trial schedule), pedidos
de adiamento ou dilação de prazos (motion
for continuance), protestos antipreclusivos
(objections), deferimento de obrigações de
fazer ou não fazer (equitable relief) ou sanções
processuais (sanctions) — geralmente não há
apenas uma decisão correta possível. O juízo
de primeiro grau tem uma gama de alterna-
tivas legítimas e os tribunais ordinariamente
privilegiam (defer to) a decisão discricionária
a quo, salvo se a mesma se encontrar fora do
espectro permissível — quando então o juízo
originário cometeu arbitrariedade (abuse of
discretion ).(67) A corte revisora não reforma
tal decisão meramente porque, dentre as várias
decisões defensáveis, teria efetuado escolha
diversa daquela do julgador original. Para
que tenha havido arbitrariedade, a corte de
apelação deve ter a “denida e rme convicção
de que a corte a quo cometeu um claro erro de
julgamento na valoração dos fatores relevantes
para a tomada da decisão recorrida.(68)
Uma corte de apelação norte-americana está
predisposta a conrmar a decisão discricionária
eventuais abusos à penalização sumária pelo juiz da
causa, por contempt of court (com prisão, multa, ou
outros), sem prejuízo de sanções penais e disciplinares
severas. Abordaremos mais aprofundadamente o
tema em trabalho específ‌ico comparando o sistema
processual americano e brasileiro.
(67) SARGENT, Walter H. The Meaning of Standard of
Review. Appellate Practice in Federal and State
Courts, § 3.04, 2014. SARGENT baseia tal parte de
sua explanação em dois casos da Suprema Corte
americana, National Hockey League v. Metropolitan
Hockey Club, 427 U.S. 639, 642, (1976) (“the question
is not whether the appellate court would have taken
the same action; it is whether the trial court abused
its discretion in doing so”) e Pierce v. Underwood,
487 U.S. 552, 559 n.1 (1988) (“It is especially common
for issues involving what can broadly be labeled
‘supervision of litigation’ ... to be given abuse-of-
discretion review”).
(68) “[...] def‌inite and f‌irm conviction that the cour t below
committed a clear error of judgment in the conclusion
it reached upon a weighing of the relevant factors.”
In re Josephson, 218 F.2d 174, 182 (1st Cir. 1954), In:
SARGENT, Walter H. The Meaning of Standard of
Review. Appellate Practice in Federal and State
Courts, § 3.04, 2014.
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recorrida. O standard arbitrariedade decorre
do raciocínio de que a escolha das opções
discricionariamente admissíveis devem ser
deixadas para o juízo de primeiro grau, que
tem maior conhecimento das partes e dos
acontecimentos do processo, bem como de
que regras abstratas não podem prever a in-
nita variedade de situações que podem surgir,
havendo um espectro com mais do que uma
possibilidade correta.(69) Será reformada
uma decisão discricionária quando não ob-
servada a ponderação de seus requisitos ou
pressupostos (por exemplo, ao conce der uma
liminar), ou quando baseada a decisão em um
erro de direito ou de fato, ou ainda quando não
explicitadas as razões para a decisão.(70) Enm,
a corte revisora não afere se a escolha do juízo
a quo foi a melhor ou mais correta, apenas se
foi abusiva ou arbitrária.
IV. Aplicação dos Standards de
Revisão Recursal ao Processo Civil
Brasileiro
1. Utilidade e funcionamento dos
standards de revisão recursal para
o aprimoramento do processo civil
brasileiro
Para aferir a aplicabilidade dos standards de
revisão recursal ao processo civil brasileiro, a
primeira questão é se seriam úteis aos objetivos
da lei processual, quais sejam, a obtenção de
resultados justos, de forma célere, econômica
e efetiva. A resposta é armativa.
Segundo o mestre Mauro Cappelletti, uma
das principais deciências dos sistemas jurídi-
cos de civil law é o profundo desrespeito pelos
juízos de primeira instância e a gloricação de
tribunais recursais, um defeito não presente
no sistema de direito comum anglo-saxão.(71)
(69) Ver CASEY, Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT, Nancy.
Standards of Appellate Review in the Federal Circuit:
Substance and Semantics. Federal Circuit Bar Journal,
v. 11, p. 310, 2002.
(70) Idem.
(71) CAPPELLETTI, Mauro. Proceso, Ideologias e Sociedade.
1973, p. 278-79. Citado por CLAUS, Ben-Hur Silveira
O pragmatismo que fundamenta os standards
de revisão americanos aumentaria o respeito
pelos fatos apurados pelo juízo a quo e focaria
os recursos principalmente em erros de direito.
No sistema americano importa mais aferir se o
juízo a quo efetivamente errou do que decidir
novamente a lide individual das partes.
Ainda que os standards de revisão não se-
jam parte da cultura jurídica brasileira atual,
foram criados para enfrentar problemas simi-
lares aos constatados no processo civil pátrio.
Uma divisão mais racional de tarefas entre os
juízos de primeiro e segundo graus, evitando
o desperdício de esforços, seria bem-vinda no
Brasil, onde a maior parte das sentenças são
recorridas, sobrecarregando o Judiciário. O
sistema judicial brasileiro também seria bene-
ciado com o reconhecimento de que o juízo de
primeiro grau está em melhor posição para a
aferição de credibilidade de testemunhas, e que
sua proximidade das partes e procedimentos
recomendam a valorização de suas conclusões
de fato e escolhas discricionárias razoáveis.(72)
Como ocorre nos Estados Unidos, a redução
da reversibilidade de decisões razoáveis de-
sencorajaria recursos de pouco fundamento e
ltraria os recursos mais fortes ou relevantes,
economizando precioso tempo do Judiciário,
que poderiam ser direcionados para uma
maior atenção, aprofundamento e cuidado no
julgamento dos recursos remanescentes.
a. Interpretação das regras de direito
aplicáveis — questões de direito
Quanto ao standard “de novo,” aplicado na
revisão das questões de direito no processo civil
americano, tal já é a praxe em geral no Brasil,
et al. A Função Revisora dos Tribunais: A Questão
do Método no Julgamento dos Recursos de Natureza
Ordinária. In: Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 14a Região, v. 6, p. 186-89 (2010). Disponível em:
evista_
TRT14_2010_n1.pdf>.
(72) Ver CASEY, Kevin; CAMARA, Jade; WRIGHT, Nancy.
Standards of Appellate Review in the Federal Circuit:
Substance and Semantics. Federal Circuit Bar Journal,
v. 11, p. 310, 2002.
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onde a revisão recursal se dá sem qualquer
deferência à decisão de primeiro grau. Tal stan-
dard deve ser mantido em relação às questões
de interpretação do direito. Privilegiar diversas,
e possivelmente conitantes, interpretações de
uma regra de direito, mesmo que todas sejam
individualmente razoáveis, naturalmente
resultaria em inconsistência e insegurança
jurídica quanto ao signicado e alcance de tal
regra. Partes em situação fática similar, sob a
mesma regra, obteriam resultados conitantes
em diferentes juízos, gerando o descrédito do
Judiciário. A divergência de possibilidades
interpretativas é algo natural no direito e a
revisão, através de recursos, serve justamente
para uniformizar tais entendimentos, assegu-
rando aplicação isonômica da lei. A unicação
da jurisprudência reduz a insegurança quanto
à interpretação e alcance das normas, uma
das maiores causas de litigiosidade.(73) Por tal
razão, a revisão irrestrita (de novo) das ques-
tões de direito se impõe como necessária à
interpretação uniforme da legislação nacional,
em harmonia com o vetor legislativo que tem
aumentado os instrumentos de unicação da
jurisprudência, culminando com a edição da
Civil, cuja vinculação a precedentes coloca
nosso sistema a meio caminho da tradição do
common law.(74)
b. Decisões que envolvem margem de
discricionariedade
Em relação a decisões discricionárias, a
mudança de método de julgamento é extrema-
mente necessária. Já não há espaço para falácia
napoleônica de que o legislador seria capaz
de redigir uma norma completa a ponto de
(73) Ver HERZOG, Peter E.; KARLEN, Delmar Karlen. Attacks
on judicial decisions. International Encyclopedia of
Comparative Law, Civil Procedure v. 16, § 8.90, 1982.
(74) Em tal sentido VIEIRA DE MELLO FILHO, Luiz Philippe.
Considerações sobre a Lei n. 13.015/14: uniformização
da jurisprudência dos Tribunais Regionais. Palestra
proferida na Escola Judicial do TRT da 4. ed Região
em 20/08/2015. Arquivada em vídeo na intranet da
Escola Judicial. Disponível em:
br/course/view.php?id=1106>. Acesso em: out. 2015.
abarcar todo o espectro de possíveis situações
futuras, reduzindo o juiz à função de “boca
da lei” (bouche de la lois), privando-lhe de
qualquer atribuição criativa ou discricionária.
No caso concreto existem diversas situações
em que o juiz terá de escolher entre mais de
uma solução permitida pelo direito. Em tal
contexto, as cortes revisoras deveriam intervir
o mínimo necessário, apenas para coibir abu-
sos.(75) O standard de revisão “arbitrariedade”
(abuse of discretion) acertadamente respeita
tais escolhas legítimas.
Conforme dados do Conselho Nacional de
Justiça — CNJ, “92% dos quase 95 milhões
de processos em tramitação no país estão na
primeira instância, e o estoque de 67 milhões
de processos pode subir a 78 milhões em 2020
se nenhuma medida for adotada.(76) Assim,
cabe ao juiz de primeiro grau a maior parte
da responsabilidade pelo gerenciamento do
estoque de processos e manutenção de razoável
celeridade. Deve ser dado crédito, portanto, a
suas decisões discricionárias, e.g. em matéria
procedimental ou de aplicação de penalida-
des pela malícia processual, baseadas em sua
experiência quanto a medidas que garantam
efetividade da jurisdição, celeridade e boa-fé,
no processo que tramita na instância inicial.(77)
Quando desembargadores substituem uma
decisão discricionária correta do juízo a quo
(descartando-a) por aquela que teriam ado-
tado se fossem os juízes originários da causa,
acabam por ferir o sistema judiciário como
um todo, retirando-lhe efetividade. Tal decisão
resulta da desnecessária repetição do trabalho do
primeiro grau, bem como pela deslegitimação
(75) HERZOG, Peter E.; KARLEN, Delmar Karlen. Attacks
on judicial decisions. International Encyclopedia of
Comparative Law, Civil Procedure v. 16, § 8.104, 1982.
(76) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA - CNJ. Priorização
de Justiça de primeiro grau é destaque em evento do
CNJ, 6 maio 2015. Disponível em:
jus.br/noticias/cnj/79282-priorizacao-de-justica-de-
primeiro-grau-e-destaque-em-evento-do-cnj>. Acesso
em: 6 dez. 2015.
(77) HERZOG, Peter E.; KARLEN, Delmar Karlen. Attacks
on judicial decisions. International Encyclopedia of
Comparative Law, Civil Procedure v. 16, § 8.104, 1982.
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deste, esvaziando-se a sua credibilidade, trans-
formando-o em mera instância de passagem,
sem real autoridade.
Em contraponto, o Judiciário americano co-
lhe grandes benefícios sistêmicos em termos de
efetividade e de cumprimento espontâneo das
normas em decorrência do respeito e temor
inspirados pela força das decisões de primei-
ro grau — raramente reformadas, apenas em
caso de arbitrariedade ou de alguma questão
relevante para a uniformização jurispruden-
cial. Como já referido acima, nos Estados
Unidos apenas 15% das sentenças são objeto
de apelação(78) (e, dentre as apelações, apenas
12-14% das apelações não criminais são em
média providas, ou seja, um índice de reforma
inferior a 2% das sentenças(79)). Tal reduzida
quantidade de apelos permite aos tribunais
americanos maior aprofundamento na análise
das questões de direito, concentrando-se em
sua função principal, utilizando ecientemente
o caráter vinculante de suas decisões para acla-
rar, aprimorar ou corrigir o direito.
Da mesma forma, com as recentes reformas
processuais, especialmente o novo Código de
Processo Civil e o caráter vinculante de algu-
mas modalidades de precedentes, os recursos
humanos e materiais dos tribunais brasileiros
estariam melhor empregados no renamento
do direito do que na repetição do trabalho rea-
lizado no primeiro grau que tenha repercussão
restrita ao caso concreto individual, como é
o caso das decisões de cunho discricionário.
c. Conclusões quanto à verdade dos fatos
— questões de fato
Similarmente, as conclusões de fato não
deveriam ser reformadas, salvo se “claramente
(78) UNITED STATES COURTS, Judicial Caseload Indicators,
2013. Disponível em:
statistics-reports/judicial-caseload-indicators-judicial-
business-2013>. Acesso em: 6 dez. 2015.
(79) UNITED STATES COURTS, Judicial Business, 2014.
Disponível em:
table/b-5/judicial-business/2014/09/30>. Acesso em:
6 dez. 2015.
errôneas,” evitando-se a reforma quando o
colegiado simplesmente se convenceu de que
teria decidido de forma diversa, sem que seja
demonstrado erro claro de julgamento. Em um
sistema sobrecarregado, descartar as conclu-
sões de fato razoáveis do primeiro grau é um
desperdício de energia que o Judiciário não
pode se dar ao luxo de perpetrar. Ta l situação
deslegitima o primeiro grau e sobrecarrega
o segundo, sem que em contrapartida haja
relevantes ganhos em termo de maior índice
de acerto e justiça. Quem poderá armar com
certeza que a verdade dos fatos é aquela encon-
trada pela turma de desembargadores e não
aquela que foi objeto de reforma? Poder-se-ia
alegar como fundamento para um corte revi-
sional ilimitado a maior possibilidade de erro
dos sobrecarregados juízes de primeiro grau do
que de um colegiado de juízes mais experientes
no segundo grau? Tal argumento é falho, já que
o estímulo à recorribilidade decorrente de uma
fácil reforma em segundo grau faz com que os
desembargadores estejam tão ou mais assober-
bados que a primeira instância, pressionados
a montar equipes com múltiplos assessores a
m de dar conta de volume de trabalho desu-
mano, equivalente ao desempenhado por seis
vezes mais juízes na primeira instância.(80)
Ademais, a revisão da prova testemunhal em
segundo grau ca prejudicada pela falta de
imediação com a testemunha, para ns de ava-
liação de credibilidade. Logo, uma conclusão
de fato deveria ser reformada apenas quando
“claramente errônea,” sem qualquer conexão
racional com a prova dos autos considerada
em seu conjunto.
d. Subsunção dos fatos ao direito —
questão mista de direito e de fato
Embora um pouco mais complexa, também
poderia ser aplicada ao processo civil brasileiro
(80) Como mencionado acima, desembargadores
constituem cerca de 14% da totalidade dos juízes no
Brasil. CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA — CNJ.
Justiça em Números, p. 32, 2013. Disponível em:
jn2015.zip>. Acesso em: 2 nov. 2015.
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a sistemática relativa às chamadas questões
mistas de direito e de fato, ou seja, envolvendo
aplicação do direito aos fatos, após estes ha-
verem sido estabelecidos cada qual conforme
seu standard de revisão.(81) Tais questões ense-
jariam a revisão de novo (irrestrita, como feita
atualmente) quando houvesse utilidade do
debate para a denição do alcance da norma
em casos futuros, por exemplo, aferindo se a
regra se aplica para um determinado tipo de si-
tuação fática. Por outro lado, deve ser aplicado
o standard erro claro” ou “claramente errôneo”
quando a relevância do debate for restrita ao
caso concreto, importando em análise mais
casuística e intensivamente dependente dos
fatos concretos à luz de conceitos legais já
pacicados.(82)
2. Possibilidade de aplicação dos
standards de revisão recursal ao
processo civil brasileiro?
Depois de debater a conveniência e funcio-
namento dos standards que limitam a revisão
recursal para tornar o sistema pátrio mais
racional e eciente, resta saber se existe óbice
à sua introdução no processo civil brasileiro. A
resposta é negativa. Há ambiente favorável para
inovações que atendam aos vetores axiológicos
da efetividade e celeridade. Por outro lado,
a inexistência de norma especíca expressa
não impede que a doutrina e jurisprudência
desenvolvam uma forma de autolimitação
da revisão recursal, em decorrência do novo
sistema de precedentes, inexistindo óbice legal
ou constitucional.
(81) Ver tópico III.4, acima.
(82) Se a aplicação do direito aos fatos fosse sempre revisada
pelo standard “de novo,” reduziria desnecessariamente
a possibilidade de valorização de decisões razoáveis
do primeiro grau sem vantagens para a unif‌icação do
direito. O contrário também é verdadeiro. Usar o
standard “claramente errôneo” para toda a aplicação
do direito aos fatos faria tábula rasa do standard “de
novo,” já que em todos os processos se faz necessária a
subsunção dos fatos ao direito. Ademais, a manutenção
de decisões conf‌litantes em questões mistas de direito
e fato em assuntos relevantes para a uniformização
de jurisprudência comprometeria a própria ideia de
uniformização.
a. Harmonia com a tendência de
reforma do sistema recursal no Brasil,
parcialmente inspirada no direito
comparado
No Brasil, há ambiente fértil para a im-
plementação de inovações que promovam a
melhoria do processo, especialmente quanto à
racionalização dos recursos, que se proliferam
em quantidades inviáveis, em detrimento da
duração razoável do processo e efetividade
da Justiça.
Os últimos vinte anos foram pródigos de
alterações legislativas que tentaram limitar
a excessiva recorribilidade e unificar a ju-
risprudência, e.g, para que o relator de um
recurso pudesse negar seguimento ao mesmo
se “manifestamente inadmissível, improce-
dente, prejudicado ou contrário à súmula do
respectivo tribunal ou tribunal superior,(83)
e mesmo autorizando-o a dar provimento
monocraticamente ao recurso se a decisão re-
corrida contrariasse súmula ou jurisprudência
dominante de tribunal superior.(84) Em 2004,
a Emenda Constitucional n. 45 introduziu a
súmula vinculante(85) e a repercussão geral para
os recursos extraordinários(86)
Não é diferente a situação no processo do
trabalho, onde a busca pela celeridade sempre
foi central. Recentemente, grande parte da
disciplina dos recursos de revista foi altera-
da pela Lei n. 13.015, de 2014, para facilitar
a missão do TST de unicação nacional da
jurisprudência trabalhista. O TST deixou
(83) CPC 1973, art. 557, com redação dada pela Lei n. 9.139,
de 1995 (grifo nosso).
(84) CPC 1973, art. 557, § 1-A com redação dada pela Lei
n. 9.756, de 1998.
(85) CRFB 1988, art. 103-A, introduzido pela EC n. 45/2004.
Trata-se do primeiro esboço brasileiro de precedente
vinculante, notável desvio da tradição dos países de
civil law, decorrente da constatação que as reformas
processuais até então implementadas ainda estavam
longe de lograr a “razoável duração do processo,”
elevada à estatura de garantia constitucional por força
da mesma emenda.
(86) CRFB 1988, art. 102, § 3o, introduzido pela EC n.
45/2004.
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de julgar divergências entre Regionais, cujas
respectivas turmas internamente divergirem
entre si, podendo determinar o retorno dos
autos ao respectivo Tribunal Regional a m
de que este proceda à uniformização da sua
jurisprudência.(87) Adicionalmente, através do
incidente de resolução de demandas repetiti-
vas, como já ocorria no STF e STJ,(88) o TST
passa a poder julgar um caso que exemplica
a controvérsia repetitiva, cuja decisão vincula a
todos recursos de revista fundados em idêntica
questão de direito.(89)
Tais reformas foram mantidas ou apro-
fundadas no CPC/2015, que avançou ainda
mais, rompendo parcialmente com a tradi-
ção romano-germânica. O novo CPC torna
nosso ordenamento um híbrido entre o civil
law e o common law,(90) à vista da ênfase nos
precedentes vinculantes e instrumentos para
a sua imposição. Tais reformas ilustram o es-
forço para corrigir falhas na administração da
justiça, bem como evidenciam a abertura do
sistema brasileiro para inovações inspiradas
no direito comparado.(91) Considerando o
vetor das reformas, bem como a progressiva
aproximação entre o ordenamento brasileiro e
common law,(92) não há razões para supor que
exista incompatibilidade dos standards de re-
visão recursal com o direito processual pátrio.
(88) Art. 896-B da CLT.
(89) Art. 896-C da CLT.
(90) VIEIRA DE MELLO FILHO, Luiz Philippe. Considerações
sobre a Lei n. 13.015/14: uniformização da jurisprudência
dos Tribunais Regionais. Palestra proferida na Escola
Judicial do TRT da 4a Região em 20.8.2015. Arquivada
em vídeo na intranet da Escola Judicial. Disponível em:
106>.
Acesso em: out. 2015.
(91) E.g., Exposição de Motivos do CPC 2015, que em
diversos momentos menciona a inspiração no direito
comparado português, alemão, italiano e inglês. Ver
Exposição de Motivos. Anteprojeto do Novo Código
de Processo Civil. 2010. p. 11-33. Disponível em:
vocpc/pdf/
anteprojeto.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2015.
(92) Não apenas o brasileiro, trata-se de fenômeno
mundial, com especial ênfase nos países da União
Europeia, onde as cortes comunitárias forçam a
convivência entre os dois sistemas.
b. Harmonia com a política nacional
de valorização do primeiro grau do
Conselho Nacional de Justiça e com as
aspirações da Magistratura de primeiro
grau
Além da harmonia com a tendência de
reforma da lei processual, há também compa-
tibilidade dos limites de revisão recursal com
o vetor axiológico determinado pelo CNJ,
através da Política Nacional de Atenção Prio-
ritária ao Primeiro Grau de Jurisdição.(93) Uma
vez que 90% dos processos tramitam perante a
primeira instância, o CNJ instituiu política vi-
sando “iniciativas voltadas ao aperfeiçoamento
da qualidade, da celeridade, da eciência e da
efetividade dos serviços judiciários da primeira
instância dos tribunais brasileiros.(94)
A mera equalização de orçamento e pessoal
entre primeiro e segundo graus, sem que se
combatam os desequilíbrios no próprio uxo
do processo, entretanto, não produzirá os
resultados almejados. Uma técnica de julga-
mento dos recursos que evite a duplicidade
de tarefas entre as instâncias é decisiva para
otimizar tal uxo, além de elevar a respeitabili-
dade das decisões do primeiro grau, auxiliando
este na efetividade de seu trabalho. A maior
previsibilidade de que uma razoável decisão
será confirmada, caso recorrida, encoraja
seu cumprimento espontâneo, diminuindo
incidentes temerários, malícia processual,
bem como desnecessárias anulações e retorno
dos autos à origem, situações que conturbam
e retardam o processo. Não é incomum que
partes resistam ao cumprimento de ordens
judiciais procrastinando seu cumprimento
na expectativa de cassar a ordem e as astrein-
tes, retroativamente, em sede recursal. Em
contraste, nos Estados Unidos, e.g., um juiz
não necessita desperdiçar tempo reiterando
ordens ou apreciando escusas infundadas, já
que o descumprimento de ordens judiciais e
(93) CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA — CNJ. Resolução
n. 194 de 2014. Disponível em:
br/f‌iles/atos_administrativos/resoluo-n194-26-05-2014-
presidncia.pdf>. Acesso em: 8 dez. 2015).
(94) Idem.
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a malícia processual são punidos severamente
(contempt of court), punições estas que são
reformadas em sede recursal apenas em casos
teratológicos. Os benefícios do prestígio das
decisões do primeiro grau se faz sentir em
todo o sistema. Ordens judiciais são cumpridas
imediatamente, o processo ui melhor, a busca
pela verdade é mais fácil, as partes e advogados
em geral respeitam as regras. Enm, a adoção
dos standards de revisão garantiria melhorias
na celeridade, eciência e efetividade dos ser-
viços judiciários de primeira instância, como
preconiza a Política Nacional de Atenção Prio-
ritária ao Primeiro Grau de Jurisdição do CNJ.
Finalmente, registro que o presente tema
tem sido recorrente no âmbito da Magistratura,
no debate à função revisora dos tribunais, a
quem não caberia o rejulgamento dos proces-
sos, como se prolatassem nova sentença.(95) O
tema foi inclusive objeto de uma das comissões
temáticas(96) do XVI Congresso Nacional dos
Magistrados da Justiça do Trabalho (Cona-
mat), em 2012, resultando na aprovação de
teses similares aos institutos de common law
aqui debatidos.(97)
(95) Ver CLAUS, Ben-Hur Silveira; LORENZETTI, Ari Pedro;
FIOREZE, Ricardo; ROSSAL, Francisco R. de Araújo;
MARTINS-COSTA, Ricardo; AMARAL, Márcio Lima
do. A Função Revisora dos Tribunais: A Questão do
Método no Julgamento dos Recursos de Natureza
Ordinária. Revista do Tribunal Regional do Trabalho
da 14a Região, v. 6, p. 161, 2010. Dos mesmos autores
ver ainda A Função Revisora dos Tribunais – A Questão
da Valorização das Decisões de Primeiro Grau – Uma
Proposta de Lege Ferenda: A Sentença Como Primeiro
Voto no Colegiado. Revista do Tribunal Regional do
Trabalho da 14a Região, v. 6. n. 2, p. 597, jul./dez.
2010; CLAUS, Ben-Hur Silveira. A Função Revisora
dos Tribunais Diante da Sentença Razoável. Revista
do Tribunal Regional do Trabalho da 4a Região, n. 40,
p. 57, 2012.
(96) Sob o título “Reconf‌iguração do Processo do Trabalho.
Valorização Sistêmica das Decisões do Juiz Originário.”
(97) E.g., “VALORIZAÇÃO SISTÊMICA DAS DECISÕES
ORIGINÁRIAS. FUNÇÃO REVISORA DOS TRIBUNAIS
Ementa — VALORIZAÇÃO SISTÊMICA DAS DECISÕES
ORIGINÁRIAS. FUNÇÃO REVISORA DOS TRIBUNAIS.
RESPEITADA A CONVICÇÃO E A INDEPENDÊNCIA
DE CADA JULGADOR, OS TRIBUNAIS DO TRABALHO
VALORIZARÃO A AVALIAÇÃO DA PROVA ORAL
FEITA PELO JUÍZO DE 1o GRAU. A FALTA DE
VALORIZAÇÃO SISTÊMICA DAS DECISÕES DO
c. Inexistência de impedimento legal ou
constitucional ao uso de standards
restritivos da revisão recursal no
processo civil brasileiro
Não há princípio constitucional expresso ou
implícito, nem norma infraconstitucional que
impeça a adoção de critérios de autolimitação
JUIZ ORIGINÁRIO CONTRIBUI DECISIVAMENTE
PARA A TAXA DE CONGESTIONAMENTO DOS
TRIBUNAIS.O PRINCÍPIO DA IMEDIATIDADE
INDUZ À PRESUNÇÃO DE QUE A AVALIAÇÃO
DA PROVA ORAL PELO JUIZ DE 1o GRAU
É ADEQUADA. DEVERÃO SER ADOTADAS
MEDIDAS PARA VALORIZAÇÃO SISTÊMICA
DAS DECISÕES DE 1o GRAU.” (JOSÉ CARLOS
KULZER, AMATRA 10 E AMATRA 4, grifos nossos);
PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA NO DIREITO DO
TRABALHOEmenta — PRINCÍPIO DA BOA-FÉ
OBJETIVA NO DIREITO DO TRABALHO. 1. O PRINCÍPIO
DA BOA-FÉ OBJETIVA (ART. 422 DO CC) TEM PLENA
APLICAÇÃO AO DIREITO DO TRABALHO, SERVINDO
À RESSIGNIFICAÇÃO DE PROBLEMAS JURÍDICO-
LABORAIS TRADICIONALMENTE ASSENTADOS
SOBRE BASES CONSERVADORAS OU POSITIVISTAS.
2. UMA VEZ QUE OS PRESSUPOSTOS ANALÍTICOS DA
BOA-FÉ OBJETIVA ANALISAM-SE E DESCOBREM-SE
CASUISTICAMENTE, À LUZ DAS CIRCUNSTÂNCIAS
CONCRETAS DE CADA LITÍGIO, COMO TAMBÉM
À VISTA DAS INTERSECÇÕES ENTRE O PRINCÍPIO
DA BOA-FÉ E O PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE,
CONVÉM ASSENTAR JURISPRUDÊNCIA NO
SENTIDO DE QUE AS DECISÕES QUE EM 1o GRAU
DE JURISDIÇÃO CALCADAS NOS PARADIGMAS
DA BOA-FÉ OBJETIVA SEJAM MANTIDAS EM
2o GRAU, DESDE QUE RAZOÁVEIS.”(AMATRA
15 e GUILHERME GUIMARÃES FELICIANO, grifos
nossos); VALORIZAÇÃO DA SENTENÇA DE 1o
GRAU E CONSEQUENTE VALORIZAÇÃO DO
PODER JUDICIÁRIO — Ementa — VALORIZAÇÃO
DA SENTENÇA DE 1o GRAU E CONSEQUENTE
VALORIZAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO. 1. SENTENÇA
JUDICIAL DE 1o GRAU; A LÓGICA DO RAZOÁVEL;
VALORIZAÇÃO DA SENTENÇA DO JUIZ DE 1o GRAU.
2. LIMITAÇÃO DA POSSIBILIDADE DE REVISÃO
DO 2o GRAU NOS CASOS DE A SENTENÇA
ESTAR AMPARADA EM JURISPRUDÊNCIA SUPERIOR
(SEJA DO PRÓPRIO TRIBUNAL REVISANDO OU DE
TRIBUNAL SUPERIOR AO DO REVISANDO) OU DE ES-
TAR FUNDAMENTADA DENTRO DA LÓGIC A DO
RAZOÁVEL. 3. INEXISTÊNCIA DE SENTENÇA IDEAL.
4. DESESTÍMULO A RECURSO ESTILO “LOTERIA”.
5. A EFETIVA VALORIZAÇÃO DAS DECISÕES
ORIGINÁRIAS, INCLUSIVE POR PARTE DE SEUS
PARES (JULGADORES DE 2o GRAU), GARANTE
MAIOR VALORIZAÇÃO AO PODER JUDICIÁRIO
COMO UM TODO. (RICARDO JAHN e Amatra 12,
grifos nossos). Disponível em: 0.
blogspot.com/p/artigos.html> Acesso em: 9 dez. 2015.
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(self-restraint) no julgamento de recursos pelos
tribunais de segundo grau brasileiros.
Inicialmente, veja-se que os standards de
revisão recursal não conitam com a inde-
pendência judicial. Como uma das garantias
de um regime democrático, a independência
judicial visa a proporcionar decisões judiciais
livres de pressão, seja da sociedade organizada,
a partir de grupos de interesses políticos ou
econômicos, ou de outros juízes ou tribu-
nais.(98) No Brasil, a independência judicial
está positivada, e.g., no dever de decidir com
independência,(99) na imunidade quanto ao
conteúdo das decisões,(100) bem como nas ga-
rantias constitucionais da vitaliciedade, inamo-
vibilidade e irredutibilidade de subsídio.(101)
O estabelecimento de limites mínimos para
a reforma de determinados tipos de decisões
não introduz no sistema pressão ou inuência
indevida sobre o julgador, para que decida
beneciando uma parte ou outra, afetando sua
independência de decidir, mas apenas limita o
corte revisional, racionalizando a distribuição
de tarefas entre primeiro e segundo graus. Ali-
ás, todas as recentes reformas da disciplina dos
recursos, inclusive as do novo CPC, militam
no mesmo sentido.
Os standards de revisão recursal também
não são obstaculizados pelo princípio do duplo
grau de jurisdição. Tal princípio simplesmente
implica na possibilidade de revisão dos jul-
gados por corte superior, não impedindo o
estabelecimento de limites, como pressupostos
(98) SOUTO MAIOR, Jorge Luiz; FAVA, Marcos Neves.
A Defesa de sua Independência: Um Dever do
Magistrado, Revista de Direito do Trabalho, Revista
dos Tribunais, v. 123, p. 67, 2006.
do magistrado: I – cumprir e fazer cumprir, com
independência, serenidade e exatidão, as disposições
legais e atos de ofício; [...]”.
casos de impropriedade ou excesso de linguagem,
o magistrado não pode ser punido ou prejudicado
pelas opiniões que manifestar ou pelo teor das
decisões que proferir.”
(101) CRFB 1988, art. 95.
de admissibilidade (e.g., depósito recursal,
inexistência de súmula em contrário etc.), ou
mesmo a eliminação de certos recursos. Não
se pode cogitar que os standards de revisão re-
cursal conitem com o princípio do duplo grau
de jurisdição, quando tantas outras limitações
à recorribilidade já provaram a relatividade
de tal princípio. Aliás, os standards de revisão
nem mesmo limitam a recorribilidade, mas
apenas mudam a lógica do julgamento de tais
recursos, presumindo o acerto de certos tipos
de decisões, diminuindo a probabilidade de
reforma.
Finalmente, nada há na legislação positi-
vada que impeça a adoção de critérios mais
rígidos para a reforma das decisões de primeiro
grau. O efeito devolutivo signica apenas que a
questão apelada é devolvida ao conhecimen-
to do Judiciário, não impondo que a corte
recursal rejulgue a matéria de forma ampla e
irrestrita, como se fosse a primeira a julgá-la,
descartando uma decisão razoável do juízo
a quo. Similarmente, quando o art. 1.008 do
CPC/2015 (art. 512 do CPC/1973) menciona
que “o julgamento proferido pelo tribunal
substituirá a decisão impugnada no que tiver
sido objeto de recurso,” tal norma apenas indi-
ca que a decisão que passa a produzir efeitos é a
da corte recursal, mesmo que o tribunal tenha
conrmado a decisão a quo.(102) Tal dispositivo
nada refere quanto aos critérios para a reforma
da decisão a quo. A atual reversibilidade ili-
mitada da matéria recorrida não tem amparo
no texto, mas sim foi inferida a partir do seu
silêncio. No entanto, nada na legislação pro-
cessual impede que se adote limite mais rígido
à reforma em matéria fática ou discricionária,
conforme critérios debatidos acima.
d. É necessária alteração legislativa
para que se presumam corretas as
decisões discricionárias e conclusões
de fato do primeiro grau, limitando
(102) NERY JUNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de
Andrade. Código de Processo Civil Comentado. 11.
ed., 2010. p. 886.
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o corte revisional dos recursos
através dos standards “abuso de
discricionariedade” e “claramente
errôneo”?
Resta perquirir se, para a adoção dos limites
à reforma aqui debatidos, seria essencial alterar
a atual legislação. A resposta é negativa. Em-
bora desejável, viabilizando aplicação desde
já mais abrangente e uniforme, a alteração
legislativa não é o único caminho viável. Há
na doutrina, jurisprudência(103) e no direito
comparado(104), grande papel a desempenhar.
Nada impede que se construa jurispru-
dencialmente a autolimitação (self-restraint)
na revisão recursal, em uma interpretação
sistemática do ordenamento, à luz da garantia
constitucional da razoável duração do proces-
so(105) e do novo regramento dos precedentes
vinculantes inaugurado com o CPC de 2015.
Aos juízes cabe preencher as lacunas do
sistema para garantir a força normativa dos
princípios constitucionais.(106) Uma análise
sistemática da garantia da celeridade, da ime-
diatidade entre quem colhe a prova e quem
julga, da especialização do segundo grau na
unicação de jurisprudência, bem como todo
o exposto acima, autorizam a presunção de que
apreciação das provas pelo juiz de primeira
instância foi realizada de forma adequada.(107)
(103) Como ocorreu no caso da disregard doctrine, ou
lifting the corporate veil, entre nós conhecida como
desconsideração da personalidade jurídica, que
passou a ser utilizada, de forma incipiente, mesmo
antes de sua positivação no art. 28 do Código de
Defesa do Consumidor – CDC, em 1990.
(104) Observe-se que, no âmbito trabalhista, o direito
comparado consta expressamente da CLT como
critério de integração das normas trabalhistas,
conforme art. 8o.
(105) CRFB art. 5, LXXVIII, incluído pela EC n. 45/2005.
(106) BARROSO, Luís Roberto. Here, There, and
Everywhere: Human Dignity in Contemporary Law
and in the Transnational Discourse. Boston College
International and Comparative Law Review, v. 35,
p. 331, 356, 2012.
(107) Ve r supra notas 96 e 97.
O mesmo raciocínio vale para as decisões
discricionárias, presumindo-se o acerto da
autoridade que está mais próxima dos acon-
tecimentos do processo, conhecendo-os com
mais minudência. A legislação processual
permite certa margem de discricionariedade
ao julgador, não se resolvendo todas as situ-
ações apenas na consulta literal de seu texto.
Assim, permitir que a mera divergência (e
não necessariamente erro ou arbitrariedade)
provoque a reforma de uma decisão razoável
resulta em inaceitável desperdício, violando
o sistema que tem como norte os princípios
da razoável duração do processo, economia
processual e eciência, e mais recentemente,
a estabilidade da jurisprudência.
Logo, a presunção relativa de acerto das
conclusões de fato e decisões discricionárias
dos juízos de primeiro grau, em sede recursal,
decorre do próprio sistema e não depende de
alteração legislativa, ainda mais ante os novos
instrumentos de unicação de jurisprudên-
cia positivadas na Lei n. 13.015/2014 e no
CPC/2015. A adoção de standards ou limites
à revisão recursal pela via jurisprudencial
poderia se tornar vinculante a partir de sua
pacicação em decisões elencadas como vin-
culantes no art. 927 do CPC de 2015.
Outras soluções possíveis seria a inclusão
no regimento de cada Tribunal, ou em outra
norma que minudencie os procedimentos
internos no trâmite dos recursos. Finalmente,
uma mudança legislativa, a médio prazo, seria
a solução mais desejável, por seu alcance geral
e maior tendência a produzir a almejada uni-
formidade de procedimento, tão necessária à
redução da recorribilidade quanto a própria
diminuição da reforma das razoáveis decisões
de primeiro grau.
V. Considerações Finais
O respeito aos precedentes emanados de
instâncias superiores, conforme sistemática
maturada pelo novo CPC, deve ser uma via de
mão dupla, com o correspondente respeito das
instâncias superiores às decisões do primeiro
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grau em matérias de fato ou discricionária.
Deve haver reciprocidade entre as instâncias,
para que cada uma funcione dentro de seu
mister: os tribunais no de aprimorar e unicar
o direito, o primeiro grau focado na descoberta
da verdade e gestão do processo. Para tanto,
é necessário que sejam observados limites à
excessiva reforma das decisões de primeiro
grau em matéria fática ou decisões envolvendo
discricionariedade. Tais limites já existem nos
países de common law, chamados de standards
de revisão recursal.
Na praxe atual em nosso ordenamento, a
ausência de limites à reforma das conclusões
de fato ou decisões discricionárias razoáveis,
permite que estas sejam descartadas pela mera
divergência de opinião, ainda que corretas,
sendo substituídas pela decisão que os mem-
bros do colegiado prolatariam se fossem os
juízes originários – como uma nova sentença,
não uma revisão para corrigir erros. A eleva-
da taxa de reforma dos julgados de primeiro
grau encoraja a recorribilidade, mesmo sob
argumentos triviais, alongando o processo e
transferindo o poder de decisão para os tri-
bunais em matérias para as quais o julgador a
quo estaria melhor posicionado. A repetição
desnecessária do trabalho do primeiro grau
em sede recursal é um luxo a que não pode se
dedicar o sobrecarregado Judiciário brasileiro.
Os standards de revisão recursal, praticados
nos países de common law, enfrentam tais
problemas, promovendo uma divisão equi-
librada de tarefas entre primeiro e segundo
graus, valorizando as conclusões de fato e
decisões discricionárias do juízo de primeiro
grau, com diferentes níveis de deferência à
decisão recorrida conforme o tipo de matéria.
Uma questão de direito é revisada de novo (no
sentido de nova análise, sem limitações), sem
especial deferência já que a função precípua
do segundo grau é justamente a unicação do
direito. As conclusões de fato, entretanto, são
reformadas apenas se “claramente errônea
(clearly erroneous), sem amparo na prova, não
bastando para a reforma mera divergência de
opinião entre a corte revisora e o juízo a quo.
Já a qualicação jurídica dos fatos à vista do
direito (questão mista de direito e de fato) é
analisada de novo, salvo quando tal qualicação
dependa predominantemente das especicida-
des de cada caso concreto, sem relevância para
o aclaramento ou unicação do direito, em
hipótese revisada pelo standard “claramente
errôneo”. Finalmente, decisões envolvendo
discricionariedade, notadamente em matéria
processual, são reformadas apenas quando
houver arbitrariedade (abuse of discretion),
fora das opções facultadas pela lei.
Em que pese desejável a introdução de tais
institutos pela via legislativa, ensejando maior
uniformidade e segurança jurídica, pode-se
também cogitar da introdução pela via ju-
risprudencial de tais critérios de julgamento,
inclusive com apoio no direito comparado,
ou mesmo a inserção nos regimentos dos
tribunais. Inexistem normas legais ou consti-
tucionais que impeçam o seu uso, antes, pelo
contrário, estão em harmonia com os esforços
das recentes reformas processuais, centradas
na redução da excessiva recorribilidade e na
unicação da jurisprudência, bem como com
a Política Nacional de Atenção Prioritária ao
Primeiro Grau de Jurisdição, Resolução 194
de 2014 do CNJ.
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