Vícios do negócio jurídico

AutorRogério Andrade Cavalcanti Araujo
Páginas401-456
CAPÍTULO 16
VÍCIOS DO NEGÓCIO JURÍDICO
ASPECTOS INTRODUTÓRIOS
A vontade é elemento nuclear do negócio jurídico. Sua exteriorização, como
já visto, não apenas deve ser livre, mas válida para surtir seus efeitos esperados. Ad-
verte Menezes Cordeiro1 que dois princípios, nesse ponto, coordenam-se de forma
dinâmica limitando-se mutuamente: a tutela da conf‌iança e a autonomia privada. O
primeiro deles protege os partícipes do negócio que tenham dado crédito às decla-
rações dos demais. O segundo, em contraposição ao primeiro, impõe que a vontade
juridicamente relevante corresponda à efetiva vontade do emissor.
Não se pense, portanto, que, sob o pretexto de proteger a real vontade interna
do declaratário, banaliza-se o desfazimento dos efeitos de negócios pretensamente
viciados. Não apenas a tutela da conf‌iança, subprincípio da boa-fé, mas também
o princípio da conservação dos negócios jurídicos haverá de indicar que estes, ao
serem celebrados, devem ter preservado, ao máximo, os seus signif‌icados úteis2: é o
que se entende pelo postulado do favor negotii. Além disso, a máxima preservação
dos efeitos do negócio jurídico, como regra a ser prestigiada pelos operadores do
direito, também se ref‌lete em institutos como a conf‌irmação, a conversão e a redução
do negócio jurídico, como serão estudados nos capítulos vindouros3.
Corolário do que se expõe é entender que o desfazimento do negócio jurídico
decorrente da incidência de defeito demanda a observância obrigatória de requisitos
específ‌icos, uma vez que a regra é a da conservação do negócio tal qual praticado.
1. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2000, v. I, t. I,
p. 572-573.
2. LABARIEGA VILLANUEVA, Pedro Alfonso. Los principios del derecho europeo de los contratos y el favor
contractus. Disponível em: https://archivos.juridicas.unam.mx/www/bjv/libros/5/2348/21.pdf. Acesso
em: 28 jun. 2021. Lembra o autor que: “Por un lado, se habla de un principio de conservación del contrato
(favor contractus), del negocio jurídico (favor negotii), o más ampliamente del acto jurídico (favor acti);
mas por otra parte, se habla de un principio de conservación de la sentencia (favor sententiae) y de otros
actos procesales y, en f‌in, de un principio de conservación de la norma jurídica; en otras palabras, se trata de
aspectos particulares del más amplio principio de conservación del acto jurídico, que en una formulación
concisa podría enunciarse así: ‘todo acto jurídico de signif‌icado ambiguo debe, en la duda, entenderse en
su máximo signif‌icado útil’”.
3. GLITZ, Frederico Eduardo Zenedin. Favor contractus: alguns apontamentos sobre o princípio da conservação
do contrato no direito positivo brasileiro e no direito comparado. Revista do Instituto do Direito Brasileiro,
n. 1, p. 490-499, Lisboa, 2013.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 401DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 401 17/09/2021 11:08:4317/09/2021 11:08:43
DIREITO CIVIL BRASILEIRO – PARTE GERAL • ROGÉRIO ANDRADE CAVALCANTI ARAUJO
402
Dessa forma, indica-se a sua anulação apenas nos restritos casos em que os defeitos
evidentemente existam.
Tal ocorre, em linhas gerais, quando, na formação do negócio, haja uma di-
vergência entre a vontade interior e a forma como é manifestada. Adverte Stolf‌i que
manda a lógica seja, em tais hipóteses, declarado nulo o ato. Ocorre, porém, pros-
segue o civilista, que, inúmeras vezes, uma solução assim radical poderia fragilizar
a segurança das relações jurídicas. Em razão disso, a lei elege a parte prejudicada
como árbitro da manutenção ou não dos efeitos do negócio, tornando-o simples-
mente anulável e não nulo4.
Tradicionalmente, os defeitos do negócio jurídico são extremados em dois
tipos: os vícios de consentimento e os vícios sociais. Nos primeiros, como visto no
parágrafo anterior, a divergência se dá na formação da vontade. O agente deseja
algo, mas celebra negócio distinto do que almejava, justamente por haver sido sua
manifestação exterior de vontade contaminada pelo defeito. É o que ocorre no erro,
no dolo, na coação, no estado de perigo e na lesão.
Distintos, por outro lado, são os vícios sociais. Neles os agentes não expe-
rimentam qualquer divergência entre a vontade interior e sua manifestação. Em
realidade, celebram os negócios exatamente como haviam planejado. No entanto,
se tais negócios terminam por prejudicar terceiros, tornam-se anuláveis pela lei. No
Código Civil do Brasil, seu exemplo é o da fraude contra credores.
Estabelecidos os apontamentos iniciais, avancemos para a análise do primeiro
vício de consentimento: o erro.
O ERRO – NOÇÃO GERAL
Entende-se por erro uma falsa representação da realidade. Ignorância, por
outro lado, é o total desconhecimento da realidade. Os dois vícios, embora concei-
tualmente diferentes, são tratados de forma unívoca pelas legislações, acarretando
as mesmas consequências para os negócios por eles acometidos5: anulabilidade.
Colocado assim o problema, pode-se imaginar que o desfazimento do negócio por
4. STOLFI, Giuseppe. Teoria del negozio giuridico. Pádua: Cedam, 1961, p. 136, nesse sentido, assim se
manifestou: “Per essere valido, e produrre quindi i suoi effetti, il negozio giuridico deve constare no solo
di una volontà liberamente sorta. Se dunque il suo processo di formazione sia stato turbato da una causa
che abbia indotto la parte ad esprimere una volontà diversa da quella che avrebbe palesata, è dubbio se
l’atto debba ritenersi valido o non. Dirlo nullo pela sconcordanza tra la volontà e la manifestazione, può
magari soddisfare le esigenze della logica, ma ha in pratica l’inconvenite di mettere troppo spesso in forse
la sicurezza dei rapporti giuridici, con grave danno di tutti gli interessati”.
5. SCIALOJA, Vittorio. Negozi giuridici. Roma: Foro Italiano, 1950, p. 250-251, bem sintetiza o tratamento
legislativo dado ao erro e à ignorância: “Error e ignorantia sono due parole le quali si trovano nelle nostre
fonti spesso considérate come equivalente, e nei libri per lo più si chiama indiferentemente errore o igno-
ranza questo speciale stato della mente della persona. Più propriamente, però, si dice ignoranza lo stato
negativo dela conoscenza; una persona è ignorante quando non conosce tutte le circonstanze dell’atto che
compie, o non conosce le regole di diritto che devono governare il negozio da lei compiuto; l’errore invece
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 402DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 402 17/09/2021 11:08:4317/09/2021 11:08:43
403
CAPÍTULO 16 • VÍCIOS DO NEGÓCIO JURÍDICO
erro ou por ignorância seja algo corriqueiro. Mas não é. Existem requisitos para suas
respectivas incidências, cuja compreensão demanda uma breve incursão à história
dos institutos, o que será feito no próximo tópico.
Cabe, por ora, diferenciar erro de outro fenômeno a ele assemelhado: o vício redi-
bitório. Quanto ao último, lembra Pothier que, no contrato de compra e venda, como,
de resto, nos demais contratos comutativos e nas doações com encargo (artigo 441 do
Código Civil), é da natureza de tais pactos que o adquirente da coisa a receba isenta de
certos vícios que a tornem inútil e, em certos casos, nociva ao uso ao qual se destina6.
Assim, se, no momento da tradição, existirem defeitos ocultos na coisa, ela poderá ser
enjeitada ou será possível que se pleiteie abatimento proporcional de preço (artigo 442).
Percebe-se que, apesar de oculto, o defeito objetivamente existe na coisa. O erro,
por sua vez, dá-se na formação da vontade do agente, quando, por exemplo, adquire
um objeto banhado a ouro, quando, em realidade, gostaria de comprar utensílio de
ouro. Não há, no objeto banhado a ouro propriamente um defeito. A questão se põe
em nível subjetivo, pois, em nosso exemplo, o adquirente almejava um objeto com
certas características, mas o adquiriu, embora sem defeitos, com outras.
Feitas essas breves observações, passemos à abordagem histórica do vício
estudado.
ASPECTOS HISTÓRICOS ACERCA DO ERRO
As referências mais antigas e relevantes ao vício estudado vêm de Roma. A
origem do defeito estudado se confunde, nos primórdios, com a do dolo7, o que
explica a semelhança até hoje encontrada entre os dois: ambos representam falsas
representações da realidade, embora o erro seja espontâneo e o dolo provocado.
O erro, como visto, já era conhecido pelos juristas romanos. Mesmo que não
tenham desenvolvido sua teoria geral8, com base na maneira como casuisticamente
equilibravam a necessidade de tutelar os interesses daqueles que erravam com a
necessidade de se garantir segurança às relações jurídicas, podemos vislumbrar, já
entre os romanos, uma preocupação em se desfazer negócios jurídicos tisnados de
è non solo questo stato negativo di ignoranza, ma uno stato positivo di falsa cognizione:si crede che vi sia
qualceh cosa, che non c’è, si ignora ciò che c’è”.
6. POTHIER, Robert-Joseph. Tratado de los contratos. Buenos Aires: Atalaya, 1948, p. 107, assim nos introduz
ao estudo dos vícios redibitórios: “203. Es de naturaleza del contrato de venta el garantir el comprador de
que la cosa vendida está exenta de ciertos vicios que la hacen inútil y hasta algunas veces nociva, dado el
uso a que se la destina en el comercio”.
7. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2000, v. I, t. I,
p. 597.
8. BIONDI, Biondo. Istituzioni di diritto romano. Milano: Dott. A. Giuffrè, 1946, p. 143-144, nesse sentido,
esclarece: “I romani non hanno una dottrina generale nè la ricca casistica delle fonti consente di ricostruirla:
decidono piuttosto le singole fattispecie, contemperando la giusta tutela di chi erra con la sicurezza dei
rapporti”.
DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 403DIREITO CIVIL BRASILEIRTO 2ED.indb 403 17/09/2021 11:08:4317/09/2021 11:08:43

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT