A vida e as lutas de Marielle Franco.

AutorRocha, Lia de Mattos

Conheci Marielle Franco ha quase dez, quando ela ja trabalhava na Comissao de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, junto com o Deputado Estadual Marcelo Freixo do Partido Socialismo e Liberdade. Nos nos conhecemos por amigos em comum, que tambem atuam na area de Direitos Humanos. Como eu, Marielle era sociologa, e tinha muitos interesses academicos, especialmente na area de sociologia urbana, estudos de segregacao socioespacial e violencia urbana. Por isso, em um dos meus primeiros cursos no Programa de Pos-Graduacao em Ciencias Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Marielle ja estava presente, como ouvinte (1). Naquele momento ela estava aplicando para fazer seu mestrado, e por compartilharmos interesses comuns nos tornamos parceiras de pesquisa e reflexoes, seja nos cursos e reunioes de pesquisa, seja no grupo de estudo que participamos com Claudia Trindade, Otto Faber e Juliana Farias. Mais do que colegas, nos tornamos muito amigas ao longo desses anos, e desde sua execucao, em 14 de Marco de 2018, tem sido muito dificil para todos nos que a conheciamos viver esse luto e travar essa luta por justica. Mas, como dizemos desde seu assassinato, Marielle era uma semente. Seu legado e uma inspiracao para nos. Dizemos ainda "Lute como uma Marielle". E o que temos tentado fazer desde entao, e o que pretendo fazer aqui.

Apos sua morte milhoes de brasileiros e pessoas no mundo todo conheceram e passaram a amar Marielle Franco. Infelizmente, para muitos foi somente apos a sua morte. Quem teve a sorte de conhecer Marielle viva sabe a forca que ela transmitia no olhar e no sorriso, sempre aberto e caloroso. Apesar de ser para nos tao especial, Marielle na verdade era uma mulher como muitas outras, mae de uma filha de 18 anos, trabalhadora, que lutou muito para ter sua formacao universitaria. Nascida em uma familia de migrantes do Nordeste, Marielle foi criada na Favela da Mare, bairro do Rio de Janeiro onde moram atualmente 140 mil pessoas (Censo 2010). Como as vezes parecemos esquecer, as favelas cariocas sao o local de moradia de um em cada cinco moradores da cidade do Rio de Janeiro (ainda segundo o Censo 2010). As favelas sao espacos bastante heterogeneos, mas sao vistas pela sociedade brasileira de forma generalizada como o locus da pobreza, da desorganizacao social, do crime (ZALUAR, 1985; LEITE, 2000; MACHADO DA SILVA, 2002). Os moradores de favela sao estigmatizados e criminalizados ha mais de cem anos, desde o surgimento das primeiras favelas no final do seculo XIX (VALLADARES, 2005). A forte presenca da populacao negra (que era muito numerosa no pais a epoca (2) e ali encontrou abrigo apos a Abolicao da escravidao, e que ainda hoje e a maioria entre os favelados (3)) explica porque os moradores de favelas no Brasil sofrem com uma especie de duplo estigma: o racismo e o preconceito por morarem em locais ocupados, por nao terem a propriedade do terreno onde moram, por serem considerados invasores.

Mas as favelas sao tambem lugar de resistencia. Quando a Favela da Mare comecou a ser ocupada mais intensamente--em meados de 1940--ja foi criada a primeira associacao de moradores para melhoramentos do local. Assim, a historia da Favela da Mare e de seus moradores e tambem uma historia de luta e organizacao coletiva, o que se refletiu diretamente na trajetoria de Marielle. Foram os proprios moradores que aterraram boa parte do terreno onde se localiza a favela, atualmente uma area de mais de 400 hectares (ou 4 milhoes de metros quadrados), e tambem construiram ruas, colocaram eletricidade nas casas, entre outros melhoramentos.

E foi tambem a organizacao coletiva dos moradores da Mare que criou, em 1988, o Pre-Vestibular Comunitario da...

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