Os vinte anos de um Processo de amadurecimento a duras penas

AutorSuiá Fernandes de Azevedo Souza
Páginas27-57

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I Intróito

Em 20081, a Constituição da República Federativa do Brasil e a nação fazem bodas de porcelana. Inaugurando o regime democrático vivido nos dias de hoje, a Carta aniversariante pôs fim ao período que obrigou o amadurecimento do país a duras penas. Penas essas aplicadas com ou sem o devido processo legal. E é o passado o ponto de partida do presente estudo: conhecer como e em que contexto os cidadãos brasileiros começaram a dispor de garantias como o devido processo (penal) legal. Para isso, o corte epistemológico possui como termo a quo a legislação portuguesa de 1500. Conhecendo o processo de amadurecimento do país e a escasse z de cuidados no processo penal, verificar-se-á como esses vinte anos merecem ser comemorados como bodas.

Entretanto, esse não é o fim único do presente estudo.

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De nada valeria vangloriar-se das conquistas presentes estudando tãosomente o passado. Mister se faz estudar igualmente provas desse amadurecimento, através dos vinte anos de julgados da Corte Constitucional Brasileira. Somente assim, poder-se-ia verificar a possibilidade de comemorar a construção dos próximos vinte anos.

II O processo de construção da personalidade brasileira

Note-se que, para muitos, o processo penal é confundido com o direito penal, no sentido de ambos serem instrumentos de garantias e proteção, não de punição de uma sociedade regida por um Estado Democrático de Direito.

Apesar de compartilharem de algumas garantias constitucionais, são ramos distintos do direito2. Isso porque seus atores são diferentes. No processo penal participam advogados, juízes, promotores, policiais e as partes. Mas nem sempre foi composto dessa forma.

Quando o Brasil foi descoberto, vigia em Portugal as Ordenações Afonsinas, seguidas pelas Ordenações Manuelinas. Nesta, ficou estabelecida a necessidade de organizar judiciariamente o Brasil como os processos criminais da Europa, ou seja, a formação de um corpo estatal de atores que iria efetivar o processo no país.

Não obstante, nesse momento surgiu a primeira dificuldade portuguesa, qual seja, a imposição de uma legislação num território vasto dominado pela justiça penal indígena3.

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Esse trabalho durou aproximadamente 300 anos para ser efetivado via burocratização e formalização dos tribunais régios. Para isso, foram trazidos juízes de fora e criados Tribunais da Relação para a cidade de Salvador4, ao mesmo tempo em que ia se criando uma magistratura letrada vinda de Portugal, como o ouvidor, corregedor, desembargador e juízes5.

No século XVII foram promulgadas as Ordenações Filipinas, refletindo o direito medieval português: os privilégios dos ricos e poderosos na aplicação das sanções penais.

Como já foi dito, uma das barreiras para a institucionalização do processo penal no Brasil foi a extensão territorial do país. Face à dificuldade, muitas áreas dominadas pelos holandeses foram regidas pelos costumes da Holanda complementadas por leis dos países do Alto Conselho da metrópole. A exemplo, permitia-se a obtenção de provas via torturas e fraudes, bem como provas testemunhais sob promessa de recompensa6.

Esse período de descompasso institucional só teve fim com a promulgação da Constituição Imperial de 1824 e a edição de Código de Processo Criminal do Império, de 1832, ambos estimulados pela reforma gradativa do sistema judicial do período da Independência do Brasil7 até os dias de hoje.

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Esse primeiro Código de Processo Penal brasileiro veio reforçar a autonomia brasileira frente Portugal. Inovou com a criação do instituto do habeas corpus8 e estimulou o fortalecimento da figura do juiz de paz: magistrado com atribuições policiais e criminais (art. 12, § 2º), com poderes para “autuar na formação da culpa dos acusados, antes dos julgamentos, e também de julgar certas infrações menores, dando termos de bem viver aos vadios, mendigos, bêbados por vício, meretrizes escandalosas e baderneiros.”9 Ou seja, na mesma pessoa estava a figura do acusador e do julgador. Somente em 1840 que a instrução criminal passou para o chefe de polícia. Esse mesmo diploma dispunha, em seu art. 86 que, nas audiências da esfera criminal, as testemunhas deveriam ser juramentadas conforme a religião, exceto se a seita as proibisse.

Tal legislação foi substituída pelo Novo Código de Processo Criminal de 1871, que modificou as aberrações acima. A exemplo, o processo brasileiro passou a conhecer um instituto análogo ao inquérito policial, nos seguintes termos:

“Para a formação da culpa nos crimes comuns as mesmas autoridades policiais deverão em seus distritos proceder ás diligencias necessárias para descobrimento dos fatos criminosos e suas circunstâncias, e transmitirão aosPage 31 Promotores Públicos, com os autos de corpo de delito e indicação das testemunhas mais idôneas, todos os esclarecimentos coligidos; e desta remessa ao mesmo tempo darão parte á autoridade competente para a formação da culpa.”10

A partir daí, muitas outras novidades foram criadas e outras modificadas, principalmente com a passagem do Império para a República. A título de ilustração, a primeira Constituição Republicana Brasileira manteve as garantias da Carta Anterior e, ao seu texto, adicionou a ampla defesa, o habeas corpus11 e o procedimento do júri12.

Entretanto, essas inovações não permaneceram intactas, tendo em vista que a Constituição da República de 1934 modificou o exercício desses direitos. Para a ampla defesa, estabeleceu-se a desnecessidade da entrega da nota de culpa ao acusado13 e, para o habeas corpus, excepcionou-se tal direito nos casos de transgressões disciplinares. Ademais, o ordenamento jurídico brasileiro, a partir desse momento, passou a contar com mais um instituto: a garantia do juiz natural em certas causas14.

Em sentido oposto esteve a Constituição de 1937, época da ditadura Vargas. As garantias supra-aludidas conquistadas ao longo da história ou foram extintas ou sofreram relativizações, a ver:

(i) a possibilidade de pena corpórea perpétua e pena de morte em crimes que atentassem contra a soberania do Estado, homicídios cometidos por motivos fúteis e perversos, dentre outros, e;

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(ii) a formação de Tribunal especial para crimes que atentarem contra a existência, segurança e integridade do Estado.

A garantia processual que foi inserida e mantida foi a do contraditório. O habeas corpus também foi conservado, ainda excepcionado para as punições disciplinares.

Entretanto, chamou a atenção o art. 123 da Constituição de 1937, que impunha limites a todas as garantias caso atentassem contra o bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz, da ordem coletiva e a segurança da Nação. Todos eles conceitos incertos no meio jurídico15.

Passado o período ditatorial, foram restabelecidas algumas garantias pela Constituição de 1946 e acrescentadas outras, valendo destacar o rol, dada a similitude com os dias de hoje:

Art 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:

(...)

§ 4º - A lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário qualquer lesão de direito individual.

(...)

§ 20 - Ninguém será preso senão em flagrante delito ou, por ordem escrita da autoridade competente, nos casos expressos em lei.

§ 21 - Ninguém será levado à prisão ou nela detido se prestar fiança permitida em lei.

§ 22 - A prisão ou detenção de qualquer pessoa será imediatamente comunicada ao Juiz competente, que a relaxará, se não for legal, e, nos casos previstos em lei, promoverá a responsabilidade da autoridade coatora.

§ 23 - Dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdadePage 33 de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder. Nas transgressões disciplinares, não cabe o habeas corpus.

(...)

§ 25 - É assegurada aos acusados plena defesa, com todos os meios e recursos essenciais a ela, desde a nota de culpa, que, assinada pela autoridade competente, com os nomes do acusador e das testemunhas, será entregue ao preso dentro em vinte e quatro horas. A instrução criminal será contraditória.

§ 26 - Não haverá foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção.

§ 27 - Ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior.

§ 28 - É mantida a instituição do júri, com a organização que lhe der a lei, contanto que seja sempre ímpar o número dos seus membros e garantido o sigilo das votações, a plenitude da defesa do réu e a soberania dos veredictos. Será obrigatoriamente da sua competência o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

(...)

§ 31 - Não haverá pena de morte, de banimento, de confisco nem de caráter perpétuo. São ressalvadas, quanto à pena de morte, as disposições da legislação militar em tempo de guerra com país estrangeiro...

(...)

§ 35 - O Poder Público, na forma que a lei estabelecer, concederá assistência judiciária aos necessitados.”

Como se percebe, muitas das garantias hoje vistas na Constituição de 1988 são originárias da Carta de 1946.

Porém, da década de 1940 a 1980, o processo penal brasileiro sofreu profundas mudanças. A primeira delas data de 1967, com a entrada em vigor uma nova Constituição. Mesmo sendo ela elaborada pelos militares, a gama de garantias processuais foi mantida em (tese) sua integridade.

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A primeira mudança nesse rol ocorreu em 1969...

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