Violência doméstica/conjugal

AutorFabiana Kist
Ocupação do AutorAdvogada atuante. Professora em Direito Penal
Páginas23-64
O valor da vontade da vítima de violência conjugal para a punição do agressor 23
2 Violência doméstica/conjugal
2.1 Delimitações conceituais
Não há necessária sinonímia entre violência de gênero,
violência doméstica e violência conjugal. Conforme já enunciado
a título introdutório, é de gênero a violência (criminosa) quando
ela é por ele motivada, ou seja, alguém é autor ou vítima de violên-
cia por pertencer ao gênero (masculino ou feminino) e sê-lo em
função dele.
A referência à violência doméstica normalmente diz respeito
a um especí co locus em que ela se desenvolve, que é o ambiente
doméstico, e o sentido dado a esta palavra é como sendo o lugar
de (con)vivência das famílias, de (co)habitação; por isso, as ex-
pressões “violência familiar” e “violência intra-familiar” são seus
sinônimos, podendo envolver, além dos cônjuges/companheiros,
todas as pessoas que habitem no mesmo agregado familiar, como
pais, avós,  lhos, netos, enteados ou outros que se considerem
aparentados.
Quando a violência envolver conjugalidade1, própria da
1 A conjugalidade é espécie singular de relação entre pessoas; manifesta-se quan-
do duas pessoas se unem com propósito de vida mútua em comum e distinta da
vida social de cada um. Sobre as peculiaridades desta relação, cabe referência
à Teoria Triangular do Amor, desenvolvida pelo psicólogo americano ROBERT
STERNBERG (“A Triangular Theory of Love”. Psychological Review, nº 93, pp.
119-135, 1986), para quem a relação conjugal é um relacionamento amoroso,
ou seja, o diferencial para outras relações situa-se no amor, e que se mani-
festa em três qualidades principais: a intimidade, a paixão e o compromisso. A
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relação entre cônjuges/companheiros, trata-se de violência con-
jugal; em regra, esta violência também será doméstica, por ser
comum a convivência entre cônjuges/companheiros na mesma
habitação; mas, não é o critério da habitação o denitivo, e sim,
um certo tipo de relacionamento entre autor e vítima - conjugal/
afetivo - e por isso são tipicamente crimes relacionais2. A impor-
tância dessa especicação reside no fato de permitir classicar
como violência conjugal aquela que envolve ex-cônjuges/compa-
nheiros e namorados, que já não convivem ou nunca conviveram,
mas tenha relação com a já extinta conjugalidade ou o namoro.
Observamos, assim, relação de continência entre essas
categorias conceituais; a mais abrangente é a violência de gêne-
ro, que se especica na violência conjugal, que pode ou não ser
doméstica (será quando o lugar em que acontece é o ambiente
doméstico; mas, mesmo que se desenvolva em ambiente diverso,
persiste o interesse jurídico - de tutela da vítima)3.
intimidade refere-se a uma sensação de proximidade ou de conexão entre duas
pessoas, e tem por pressupostos a conança, a amizade e o carinho. A paixão é
o componente que fornece energia à relação, e diz respeito a emoções, atração
física (sexual e/ou romântica), e desejo/necessidade de estar com a outra pessoa.
Por m, o compromisso traduz-se na decisão de continuar no relacionamento
apesar de eventuais problemas que a relação produz, sendo, assim, responsável
pela estabilidade da relação. ROBERT STERNBERG, ademais e de forma gura-
da, põe estes elementos nas pontas de uma pirâmide e, a depender da alocação
de cada um deles, surgem tipos diferentes de relações, propondo que na conju-
galidade, a intimidade deve estar no ponto de cima da pirâmide, e a paixão e o
compromisso ocuparem cada um dos lados da sua base.
2 A expressão “crimes relacionais” sugere a existência de relação entre os envolvidos
em episódio criminoso, o que afasta a aleatoriedade na vitimização; ou seja, alguém
é vítima de crime por pertencer a determinada categoria de pessoas, como nos
crimes raciais e nos de gênero; nestes, ademais, a relação entre autor e vítima pode
pré-existir (como na violência conjugal) ou não (como nos crimes sexuais em geral).
3 Neste particular, observamos que a proteção conferida à vítima da violência
conjugal transpôs a ideia de conjugalidade presente/atual/contemporânea, es-
tendendo-se a episódios havidos quando ela já não existe (quando rompido o
“compromisso” da Teoria Triangular, acima), desde que tenham relação com a
conjugalidade pretérita, critérios adotados pela legislação penal brasileira (Lei nº
11.340/06, art. 5º, inciso III, que dispensa a coabitação).
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Na investigação que estamos a empreender, o enfoque é
na violência conjugal, com mais uma especicação: aquela em
que gura como vítima a mulher4. E esta escolha deve-se às evidên-
cias conhecidas sobre a violência conjugal, a indicarem que ela
é predominantemente unidirecional, isto é, de homens contra
mulheres.
2.2 Caracterização de violência doméstica/conjugal como violência
de gênero
Inicialmente, não é fácil denir o termo violência. Etimo-
logicamente, os dicionários informam que ela tem origem latina
em violentia, conferindo-lhe signicados como “força”, “ímpeto
extraordinário”, “grande impulso”, e “força feita por alguém c ontra
o direito”; em outra linha, tratar-se-ia de “coação”, “constrangi-
mento”, “abuso de força e de poder”, “infração” e “transgressão” ;
palavras próximas de violência são “violar” e “violentar”, derivadas
da palavra também latina vis, a signicar “força”, “poder”, “vigor ”,
“vontade”, “emprego de força”5.
Para a presente investigação, atentaremos para a conotação
ética negativa que associa a palavra violência à “irracionalidade”
(fase/parcela da natureza humana não domesticada pela razão)
e, em consequência, à sua ilegalidade (esse parece ser atributo
4 Conforme já acentuado alhures, há concepções diversas sobre a vítima, a depender
do lugar de onde se faz a abordagem. No desenvolvimento do presente capítulo,
vítima será vista nos moldes do nº 1 da Declaração dos Princípios Básicos de
Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, da ONU,
adotada em 29/11/85 (disponível http://direitoshumanos.gddc.pt), que adota a
perspectiva da titularidade do bem jurídico lesado/exposto a perigo por meio do
crime/violência conjugal.
5 Sobre essa questão, contextualizada na violência em Lisboa anos de 1912 a
1926, há relevante estudo feito por MARIA RITA LINO GARNEL, publicado
com o título “Vítimas e Violências na Lisboa da I República”; Coimbra: Imprensa
da Universidade de Coimbra, 2007.
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