A violência doméstica e familiar contra a Mulher no Brasil e o seu enfrentamento: o que a criminologia crítica nos ensina?

AutorPriscila Aparecida Lamana Diniz
Páginas465-483

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Ver Nota1

Introdução

Para a abordagem do tema proposto, optou-se pela análise do histórico de proteção legislativa da mulher em situação de violência doméstica e familiar, com particular enfoque no contexto de edição e conteúdo da Lei 11.340/2006 e nos dados existentes sobre referida prática com o escopo de investigar a gravidade da situação e as medidas adotadas para o seu enfrentamento.

Por sua vez, sob a perspectiva da criminologia crítica, de viés abolicionista ou minimalista, intentou-se forjar solução para o adequado enfrentamento da violência familiar e doméstica contra a mulher com o objetivo de assegurar a este sujeito de direitos a mais efetiva proteção.

1 A violência doméstica e familiar contra a Mulher no Brasil e o seu enfrentamento

A violência doméstica e familiar contra a mulher, no Brasil, outrora considerada problema privado no qual o Estado não deveria imiscuir-se, atualmente,

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é enfrentada como uma das formas de violação dos direitos humanos2e que, portanto, deve merecer especial atenção e repressão estatal, por abalar as posições jurídicas concernentes às pessoas de maior relevância, porquanto ligadas à liber-dade, igualdade e vida.

Embora o percurso normativo de combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no país não seja tão recente3, não há como negar que o grande marco para a mudança de paradigma veio com a Lei 11.340/2006, popularmente conhecida como Lei Maria da Penha, editada após a condenação do Brasil na Comissão Interamericana de Direito Humanos, por ser tolerante com a violência praticada contra Maria da Penha Maia Fernandes ao permitir a impunidade de seu companheiro.

No caso, Maria da Penha, após ser vítima de sucessivas agressões e tentativas de homicídio por seu companheiro, que culminaram por ocasionar sua paraplegia e a condenação dele, apresentou, por meio do Centro pela Justiça e o Direito Internacional – CEJIL e o Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher – CLADEM, seu caso à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em 1998, insurgindo-se contra a injustiicável inércia estatal que, embora tivesse condenado o agressor, passados mais de quinze anos, tolerava sua liberdade aceitando recursos processuais procrastinatórios.

Como decorrência, em 2001, a Comissão Interamericana apreciou o caso
12.051 e condenou o Estado brasileiro por negligência e omissão em relação à violência doméstica praticada contra Maria da Penha, recomendando-lhe, dentre outras medidas, “prosseguir e intensiicar o processo de reforma, a im de romper

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com a tolerância estatal e o tratamento discriminatório com respeito à violência doméstica contra as mulheres no Brasil”.4Além disso, recomendou-se, especiicamente, a adoção de medidas de capacitação e sensibilização dos funcionários judiciais e policiais especializados para que compreendam a importância de não tolerar a violência doméstica; a simpliicação dos procedimentos judiciais penais, a im de que possa ser reduzido o tempo processual, sem afetar os direitos e garantias de devido processo; o estabelecimento de formas alternativas às judiciais, rápidas e efetivas de solução de conlitos intrafamiliares, bem como de sensibilização com respeito à sua gravidade e às consequências penais que gera; a multiplicação do número de delegacias policiais especiais para a defesa dos direitos da mulher e a dotação dos recursos especiais necessários à efetiva tramitação e investigação de todas as denúncias de violência doméstica; a prestação de apoio ao Ministério Público na preparação de seus informes judiciais e a inclusão em seus planos pedagógicos de unidades curriculares destinadas à compreensão da importância do respeito à mulher e a seus direitos reconhecidos na Convenção de Belém do Pará, bem como ao manejo dos conlitos.

O ineditismo da decisão foi bem ressaltado por Flávia Piovesan, ao apontar que foi a primeira oportunidade em que um caso de violência doméstica ensejou a condenação de um país no âmbito do sistema interamericano de direitos humanos, o que impulsionou, inclusive, a edição da Lei 11.340/2006, bem como o pagamento de indenização à vítima.5A lei, portanto, motivada por pressão externa, a revelar que o grave caso da violência doméstica e familiar contra a mulher estava sendo tolerado pelo Estado brasileiro, dentre vários méritos, foi importante ao deini-la, de forma elástica, em seu art. 5º, como qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial, no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por ainidade ou por vontade expressa; em qualquer relação

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íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação.

Além disso, a menção à violência praticada com base no gênero revela que a proteção legal não deve ser dispensada a qualquer caso de conduta contra a mulher, mas tão-somente quando inserida no contexto da violência de gênero.

Depreende-se, assim, que a aplicação da referida lei justiica-se quando houver, para além do ato de violência, exteriorização de dominação e discriminação como decorrência do reconhecimento da mulher como um ser não-igual ou, melhor dizendo, um não-ser, encarado no sentido de mero objeto de dominação contra o qual se exerce poder.6Outrossim, a lei foi salutar ao vedar, em seu art. 17, a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, das penas de cesta básica7ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição de pena que implique o pagamento isolado de multa, de modo a impedir que a vítima fosse duplamente penalizada, já que, após ser vítima de violência, o agressor muitas vezes se valia do patrimônio comum ou mesmo exclusivo dela para cumprir sua pena ou medida imposta.

Para alguns8, teve o mérito, também, de vedar, em seu art. 41, a aplicação da Lei 9.099/95, e seus institutos despenalizadores, quais sejam, a transação penal e

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a suspensão condicional do processo aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista.

Ainda no plano normativo, em 2010, com a promulgação da Emenda Constitucional nº 65, a preocupação com o tema ganhou envergadura constitucional, ao ser acrescentado o § 8º ao art. 226, dispondo que a família, base do Estado, tem especial proteção, de modo que se deve assegurar assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações.

Na mesma senda, no dia 17 de dezembro de 2014, o Senado Federal aprovou projeto de lei para acrescentar, no art. 121, do Código Penal, qualiicadora para o homicídio cometido por razões de gênero, inclusive no âmbito doméstico e familiar, denominado de feminicídio9, o qual, após ser aprovado também na Câ-

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mara dos Deputados, foi sancionado pela Presidência da República, com a edição da Lei 13.104, de 09 de março de 2015, instituindo-se punição mais severa para o delito praticado contra mulheres, por questão de gênero, qualiicando-o e elevando-o à categoria de crime hediondo, bem como para prever causas de aumento de pena para os crimes praticados contra mulheres durante a gestação ou nos três meses posteriores ao parto; contra mulher menor de 14 ou maior de 60 anos ou com deiciência, e na presença de descendente ou ascendente da vítima.

A preocupação legislativa e constitucional com o tema sinaliza que a eliminação da violência familiar e doméstica contra a mulher talvez seja o maior desaio a ser enfrentado pelo Estado e pela sociedade quando o tema é a família e sua proteção, notadamente diante dos poucos e alarmantes dados existentes sobre o tema.10De acordo com pesquisa da Organização das Nações Unidas, a violência doméstica é a principal causa de lesões em mulheres entre 15 e 44 anos no mundo, demonstrando que ela se conigura como um fenômeno generalizado.11

Em semelhante sentido, já houve divulgação de dados do Banco Interamericano de Desenvolvimento no sentido de que uma em cada cinco mulheres que

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faltam ao trabalho o faz por ter sofrido agressão física, revelando o impacto da violência contra a mulher também na economia e previdência social.12Estudo recente organizado pelo sociólogo Júlio Jacobo Wailselisz, intitulado “Mapa da violência 2012 – atualização: homicídio de mulheres no Brasil”, permite concluir pela gravidade do quadro também no âmbito nacional.13Segundo consta, nos 30 anos decorridos entre 1980 e 2010, registrou-se o homicídio de mais de 92 mil mulheres, sendo 43,7 mil só na última década, revelando aumento de 230%, mais que triplicando o quantitativo de mulheres vítimas de referido delito. Apontou-se, ainda, que, no primeiro ano de vigência efetiva da Lei Maria da Penha, 2007, as taxas experimentaram leve decréscimo, voltando imediatamente a crescer de forma rápida até o ano 2010, último dado atualmente disponível, igualando o máximo patamar já observado no país, qual seja, aquele de 1996.

Outra informação interessante constante do estudo é que, a partir do local do incidente que originou as lesões que levaram à morte da vítima, constante das Declarações de Óbito, depreende-se que, entre os homens, só 14,3% dos incidentes aconteceram na residência ou habitação, enquanto que, entre as mulheres, essa proporção eleva-se para 41%, revelando a gravidade...

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