Violencia estrutural contra mulheres em Belo Monte: o que os dados oficiais (nao) revelam/Structural violence against women in Belo Monte: what official data does not reveal.

AutorBarroso, Milena Fernandes

Introducao

Maria, negra, domestica, mae solteira de tres criancas. Foi obrigada a sair da casa onde morava porque nao conseguia mais pagar as contas de energia e o aluguel, que ficou tres vezes mais alto nos ultimos meses. Foi morar em um dos "baixoes" (1) da cidade porque se tornou inviavel morar na mesma regiao. Os filhos estao sem estudar porque proximo a nova moradia nao existe escola e, desse modo, teve de sair do emprego, ja que nao tinha com quem deixar as criancas. Entre tantas dificuldades, descobriu-se com cancer e nao faz tratamento por falta de atendimento especializado na cidade. Atualmente, pede esmola na rua com as criancas para sobreviver. O relato, longe de ser uma excepcionalidade, demonstra o estado normal de coisas (ZIZEK, 2014) e pode tanto representar um fato ocorrido em um grande centro urbano brasileiro como em qualquer rincao desse pais.

O caso de Maria, cada vez mais comum em Altamira (2), apos a construcao da Usina Hidreletrica (UHE) de Belo Monte, traz elementos importantes para a analise da violencia estrutural. E emblematico, pois articula questoes determinantes para a existencia dessa violencia e expoe a "normalidade" e a impessoalidade como uma de suas particularidades. O caso de Maria nao se relaciona "a vantagens que uma ou outra pessoa busca extrair diretamente dela", mas se revela na "opcao impraticavel" ou "ausencia de opcao" (MIGUEL, 2015, p. 33). Diz respeito a forma como a sociedade se organiza, as cidades se organizam, ou seja, como se da a producao e a reproducao da vida. E a propria violencia como modo de vida. (3)

Isto posto, neste artigo (4) buscamos relacionar a violencia contra as mulheres, particularmente no contexto de Belo Monte, as determinacoes estruturantes da sociabilidade patriarcal-capitalista. (5) Os dados oficiais confirmam o aumento da violencia contra as mulheres no periodo da construcao da UHE Belo Monte? Para isso, foram observados dados documentais sobre a violencia contra as mulheres na regiao oriundos do levantamento realizado nas instituicoes de seguranca publica do municipio de Altamira, a partir de uma analise comparativa entre os anos anteriores a obra e o periodo de sua construcao e anotacoes do Diario de Campo.

Nao acreditamos no acaso ou na mera coincidencia no aumento dos registros de casos oficiais de violencia direta contra as mulheres desde o inicio das obras de construcao da UHE Belo Monte, tampouco buscamos uma explicacao na condicao masculina--no sentido de uma estrutura psicologica masculina naturalmente violenta e inabalavel. Longe de ser algo esporadico ou excepcional, a violencia contra as mulheres atravessa toda a sociedade e e reproduzida atraves de mecanismos que nao podem ser analisados unicamente no plano individual ou limitado as relacoes interpessoais. Por isso, almejamos apreende-la a partir das relacoes de poder patriarcais, racistas e classistas que dao sustentacao as instituicoes, as politicas governamentais e aos comportamentos e modos de ser e estar no mundo. A simbiose entre essas estruturas complexas, historicas e contraditorias solidifica "a ideia de que as relacoes de producao nao estao limitadas ao 'dominio publico', mas invadem a 'esfera privada'", e, concomitantemente, "as relacoes sociais de reproducao expandem-se do 'terreno privado', penetrando no plano da producao 'publica'" (SILVA, 1992, p. 29).

Partimos do pressuposto da violencia contra as mulheres como um complexo social que tem efeitos concretos na vida das mulheres, ou seja, possui uma existencia real e, por sua vez, tambem e um fenomeno de multiplas significacoes, explicitado conforme determinadas condicoes socio-historicas. Essa violencia se manifesta no controle social do corpo feminino e das mulheres, e tem como alicerce primeiro (no sentido temporal) o patriarcado, sistema de opressao e dominacao fundamentado na hierarquia, na desigualdade, no privilegio e na discriminacao, atraves da persistencia de valores, comportamentos, normas e leis. (6) Esse sistema de opressao, assim, tem como premissa a divisao sexual do trabalho que se desdobra na existencia de uma inferioridade natural das mulheres, base da hierarquia presente nas relacoes sociais de sexo/genero.

Na sociedade de classes, a violencia contra as mulheres e produto nao apenas do patriarcado, (7) mas da imbricacao com outros sistemas de hierarquia e dominacao ou sistemas estruturantes: o racismo e o capitalismo. Nessa perspectiva, tais sistemas se consubstanciam na chamada sociedade patriarcal-racista-capitalista, que produz as relacoes sociais de sexo/genero, classe, raca/etnia e, consequentemente, a exploracao-opressao que dela deriva. Logo, a violencia contra as mulheres nao e apenas produto: e, do mesmo modo, condicao para tais relacoes e, portanto, condiciona a experiencia feminina. O estupro, como fato ou ameaca na vida das mulheres, e ilustrativa disso.

Assim sendo, a partir desses pressupostos, empreendemos uma sintese conceitual sobre a categoria violencia contra as mulheres desde a teoria feminista e, por fim, apresentamos alguns apontamentos sobre a violencia estrutural contra as mulheres em Belo Monte, levando-se em consideracao as informacoes oficiais que foram acessadas no ambito da pesquisa. (8)

A violencia contra as mulheres na sociedade classista, patriarcal e racista (9)

E fato que a violencia contra as mulheres nao e mais um "segredo". Nao sem tensionamentos e constrangimentos, a questao tem sido reconhecida e seus efeitos e consequencias foram denunciados pelos movimentos de mulheres e feministas. Assim, esses movimentos produziram consciencia, conhecimento e resistencia, e revelaram a teia de cumplicidade, muitas vezes institucional, que permitiu/permite a sua persistencia, concebendo propostas para preveni-la ao longo dos ultimos 40 anos (RO-MITO, 2008). Apenas na decada de 1970 o fenomeno deixa de ser uma experiencia estritamente individual e passa a ser considerado coletivo, nomeado como tal. Entretanto, apesar da mobilizacao social em torno da questao, das mudancas nas legislacoes, das novas praticas sociais de prevencao a violencia e protecao as vitimas, a violencia contra as mulheres "parece" nao dar treguas.

De forma geral, e prudente reconhecer que os dados so existem pelo crescimento de estudos e pesquisas quantitativos e qualitativos sobre o tema, que passaram a contribuir para tornar algumas expressoes mais visiveis e revelar novas, como a violencia sexual no casamento; o assedio moral e sexual nos espacos de trabalho; o trafico de meninas e mulheres; a violencia no contexto indigena; a violencia sexual cometida por membros da Igreja Catolica; a violencia contra (e entre) mulheres lesbicas; a violencia digital (cyberviolence), com destaque para a pornografia de vinganca (o revange porn); para citar alguns exemplos. De outra parte, a visibilizacao do tema trouxe a tona praticas e discursos de culpabilizacao das vitimas e de negacao ou desqualificacao da violencia como sendo algo de menor importancia, revelando uma cultura de permissividade em se tratando da violencia contra as mulheres.

A despeito da importancia em demonstrar factualmente a existencia da violencia contra as mulheres, os dados carecem de uma analise em termos de determinacoes sociais. E comum os registros serem apreendidos como resultado biologico ou psicologico de uma natureza masculina, dissociados dos seus componentes raciais e de classe (DAVIS, 2017). Angela Davis (2017, p. 48) chama atencao para a predominancia desse tipo de analise e questiona os motivos que fazem os paises que hoje vivem uma epidemia de estupros serem exatamente aquelas nacoes capitalistas consideradas desenvolvidas, que enfrentam severas crises socioeconomicas e estao saturadas de violencia em todos os niveis: "Os homens estupram porque sao homens ou porque sao socializados pela propria opressao economica, social e politica--bem como por um grau generalizado de violencia social no pais em que vivem--para impor a violencia sexual as mulheres?"

Para a autora, a violencia sexual decorre diretamente da politica oficial e das estruturas de poder existentes em determinada sociabilidade, mas ela destaca que nao se trata de uma relacao direta e...

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