Violencia contra mulheres e a critica juridica feminista: breve analise da producao academica brasileira Violence against women and feminist critiques of Law: a brief analysis of Brazilian academic production.

AutorCampos, Carmen Hein de

Introducao (1)

Esse trabalho e um esforco de mapeamento e de analise (2) da producao academica feminista no campo do Direito a partir dos anos 1970, com enfase nos trabalhos sobre violencia contra mulheres. Entendemos essa tarefa como necessaria, pois a producao feminista nesse campo e significativa, embora nao necessariamente reconhecida pelo malestream (3). Alem disso, consideramos importante resgatar esse percurso historico da construcao de perspectivas feministas no direito como um processo de construcao cumulativa e constante e que, a cada dia, ganha mais proeminencia. Salientamos que nosso trabalho certamente nao abarca toda a producao feminista nesse campo, mas aquela que conseguimos acessar atraves de nossas proprias pesquisas ate o momento e que permitisse explicitarmos as principais caracteristicas da trajetoria intelectual no campo juridico feminista brasileiro.

Ha muito, ainda, por ser feito em termos de reconstrucao da genealogia dos feminismos juridicos brasileiros. Procuramos, aqui, apenas apreender os contornos iniciais do pensamento feminista sobre o (ou critico ao) direito, suas formas de articulacao com a luta por direitos humanos das mulheres no Brasil e apontar para as potencialidades desse campo em forte desenvolvimento mais recentemente.

Consideramos como producao academica feminista aquelas que assim se declaram em sua tematica, sua linha editorial ou na abordagem teorico-metodologica escolhida (SILVA, 2013). Priorizamos a analise da producao veiculada em formato de livros, de artigos publicados em revistas com propositos academicos e de relatorios resultantes de acoes de advocacy (4) feminista.

Identificamos que as autoras brasileiras pioneiras no uso da abordagem feminista do direito sao oriundas de diversas areas de formacao, cujas analises sao construidas tanto a partir do meio academico quanto do contexto das estrategias de acao politica feminista. E, portanto, nos estudos (5) sobre mulheres, relacoes de genero e violencia domestica, campo interdisciplinar em crescimento desde meados dos anos 1970, que podemos encontrar alguns dos contornos da critica feminista brasileira as instituicoes juridicas e politicas e, tambem, identificar algumas das nossas juristas (6) feministas pioneiras.

Para a analise dessa producao utilizamos a classificacao proposta por Isabel Cristina Jaramillo (2000) sobre os tipos de interacao entre feminismo e direito expressos nas producoes academicas feministas latino-americanas: a) o feminismo como critica ao direito e b) o direito como ferramenta do feminismo. A autora ainda subdivide o grupo dos estudos de critica feminista ao direito em dois: as criticas aos pressupostos gerais do direito e de suas nocoes fundamentais (teorias feministas criticas do direito) e as criticas as instituicoes juridicas (e politicas) particulares. Dentre as producoes que discutem os usos do direito, ela distingue aquelas que abordam os usos estrategicos e os usos nao estrategicos do direito pelos feminismos.

No Brasil, a producao academica feminista relativa ao direito, apesar da sua recente expansao, pode parecer bastante reduzida ou incipiente, quando comparada ao vigor dos estudos juridicos feministas em regioes do Norte Global. Isso porque os estudos reunidos sob os eixos feminist jurisprudence ou feminist legal theory tem se consolidado como um importante campo teorico de critica juridica desde o final dos anos 1980 nos Estados Unidos e em alguns paises da Europa, como o Reino Unido.

Nosso argumento e que as analises feministas brasileiras sobre o direito vem se consolidando como um campo delimitado de investigacao na academia juridica e tem sido, por um lado, tecidas em dialogo com um campo interdisciplinar em vigoroso crescimento no Brasil desde meados dos anos 1970 - os chamados estudos sobre mulheres, genero e violencia contra as mulheres -, e, por outro, produzidas de modo fortemente associado as estrategias feministas de mobilizacao politico-legal pela afirmacao dos direitos humanos das mulheres.

Tal campo de estudos tambem emergiu segundo dinamicas proprias do feminismo brasileiro e pela interacao com as vertentes europeias e norte-americanas marcada por uma duplice dinamica de recepcao-assimilacao e de conflito-diferenciacao-acomodacao. De acordo com Bila Sorj e Maria Luiza Heilborn (1999), nos Estados Unidos, por exemplo, os chamados Women's Studies originaram-se em meio aos movimentos de protestos nas universidades nos anos 1960, juntamente com os estudos raciais, questionando os fundamentos cientificos das ciencias sociais. Ja na academia brasileira, os estudos sobre mulheres e genero emergiram de modo articulado a outras agendas de mobilizacao da esquerda, como a critica as desigualdades sociais e ao autoritarismo politico. As pesquisas sociais voltadas a fundamentacao de propostas de politicas publicas e mudancas dogmatico-normativas especificas tambem foram mais recorrentes entre as feministas brasileiras, em relacao a enfase das norte-americanas na critica epistemologica.

No caso da interacao entre feminismo e direito, nosso argumento e que as juristas feministas brasileiras privilegiaram, ao inves da disputa no campo da teoria do direito ou da epistemologia juridica, a elaboracao de analises criticas as instituicoes especificas do direito e sobre o uso estrategico do discurso juridico. Isso fica bem ilustrado quando analisamos, por exemplo, a producao teorica sobre violencia domestica: as discussoes ai travadas refletem, em grande medida, os aportes conceituais do feminismo a dogmatica nacional e internacional dos direitos humanos e as nocoes de sujeito de direitos, de cidadania, de espaco publico, de democracia e de acesso a justica.

No que se refere a producao academica brasileira sobre mulheres, genero e violencia, esta tem crescido consideravelmente desde a decada de setenta em diversas areas, a partir de condicoes criadas pela rearticulacao do movimento feminista brasileiro nos anos 1970 e da centralidade que a tematica da violencia contra as mulheres foi assumindo desde entao (BANDEIRA, 2014; BRUSCHINI; UNBEHAUM, 2002).

Esperamos que tal analise possa contribuir com uma agenda de pesquisa ainda incipiente no Brasil sobre o pensamento juridico feminista brasileiro e sobre as contribuicoes teoricas e metodologicas que os estudos sobre violencia, genero e feminismo tem trazido para o campo do direito.

  1. Panorama sobre estudos juridico-feministas, relacoes de genero e violencia contra as mulheres nos anos 1970-1990

    O ressurgimento do feminismo como movimento social, especialmente a partir de 1975, aconteceu em forte articulacao com as lutas sociais pela redemocratizacao do pais - a exemplo da luta pela Anistia -, com as vertentes teoricas marxistas e com as perspectivas feministas norte-americanas e europeias, nesse caso, em grande parte provocada pelo exilio de brasileiras no exterior.

    No debate pelas liberdades democraticas, as feministas criaram jornais para divulgar as suas ideias. Em Sao Paulo, dois importantes jornais, o "Brasil Mulher" e o "Nos Mulheres", passam a repercutir os debates feministas. Segundo Maria Paula Araujo (2000), esses jornais inovavam na linguagem e divulgavam uma nova concepcao politica que explicitava as relacoes entre o publico e o privado, tornando politico o que era, ate entao, considerado assunto pessoal e politizando as emocoes, as relacoes pessoais e os lacos familiares; atribuiam importancia as transformacoes no cotidiano e as questoes da esfera domestica; e abordavam temas como amor, sexo, dor, frustracao, valorizando as experiencias pessoais.

    Em dialogo com as vertentes marxistas, esses veiculos abordaram a tematica da forca de trabalho feminino ou do trabalho feminino assalariado, mas incorporando diversos outros temas como maternidade, reproducao, sexualidade, creches, escolas e saude. Destaca o Jornal Nos Mulheres:

    Queremos, portanto, boas creches e escolas para nossos filhos, lavanderias coletivas e restaurantes a precos populares, para que possamos junto com os homens assumir as responsabilidades pela sociedade (JORNAL NOS MULHERES, 1976, p. 2). Essa mesma simbiose tambem aparece nos trabalhos das academicas brasileiras pioneiras nas abordagens feministas. A sociologa Heleieth Saffioti, em 1969, publica o livro "A Mulher na Sociedade de Classes: mito e realidade", que logo se torna uma das principais referencias nas discussoes sobre a condicao da mulher no mundo do trabalho. A autora analisa como o fator sexo opera nas sociedades de classe de modo a alijar do mercado, especialmente, a forca de trabalho feminina. Para ela, a organizacao capitalista, bem como as funcoes que a mulher desempenha na familia (sexualidade, reproducao e socializacao dos filhos), produzem uma hierarquia entre os sexos como um meio de expropriacao. Tanto a sua condicao de trabalhadora, quanto a de inativa sao construidas a partir da hierarquizacao dos sexos (SAFFIOTI, 1969). Esse trabalho se tornou referencia para a reflexao academica brasileira sobre a condicao feminina nas sociedades de classes e para grupos feministas que despontavam naquele periodo em todo o pais, e influenciou diversas abordagens de juristas feministas.

    Por sua vez, o Ano Internacional da Mulher em 1975 e o apoio das Nacoes Unidas para a realizacao da Conferencia sobre as mulheres brasileiras impulsionaram a aproximacao das feministas brasileiras do discurso sobre direitos no repertorio de estrategias politicas do feminismo, tambem de carater transnacional e cada vez mais crescente. A participacao do movimento feminista em redes nacionais e internacionais de direitos humanos fortaleceu um intenso trabalho de advocacy que envolveu uma forte critica as legislacoes internas discriminatorias, a proposicao de novos marcos normativos e o uso dos instrumentos de direitos humanos para denuncias e investigacoes de violacoes dos direitos humanos das mulheres (PITANGUY, 2002; BARSTED; HERMAN, 1999). E em meio a esse contexto que o trabalho de critica juridica...

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