Uma visita a Georg Simmel: o "conflito" como uma categoria crítica de análise conceitual fundamental para os estudos antropológicos de violências no Brasil

AutorMicheline Ramos de Oliveira
CargoFaculdade Estácio de Sá
Páginas537-548

Micheline Ramos de Oliveira1

    A visit to Georg Simmel: the "conflict" as a critical category for conceptual analysis in the studies on violence in Brazil

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Ao eleger fazer nesse artigo um debate "em torno da conjunção de juízos estéticos e reflexivos" nas escolhas metodológicas dos antropólogos nos estudos de violências no Brasil, penso no "conflito simmeliano" 2 como uma

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categoria crítica de análise conceitual fundamental no indicativo da necessidade de um constante escrutínio dos valores incrustados em nossos pressupostos teóricos, cujos argumentos parecem, por vezes, não escaparem da conhecida ideologia liberal iluminista e normatizadora constituinte, entre outros, de nosso discurso de política e poder 3 na contemporaneidade.

Minha aproximação com as idéias de conflito defendidas por Simmel começou em meu mestrado realizado entre os anos de 2000-2002 no PPGAS / UFSC, quando pesquisei trajetórias sociais e itinerários urbanos de mulheres/ mães moradoras de uma favela denominada Matadouro, situada no município de Itajaí/SC. Foi, a partir do uso de métodos já clássicos na antropologia, como a descrição densa (GEERTZ, 1978) daquele contexto, alcançada prioritariamente pela observação participante (MALINOWSKI, 1976), pela etnografia do cotidiano (De CERTEAU, 1995) e ainda pelo estudo de narrativas biográficas (ECKERT & ROCHA, 2000), que in loco comecei a refletir sobre uma certa "inadequação" de alguns pressupostos teóricos e metodológicos que gravitam em torno da temática das violências, no sentido de irem na contramão daquela realidade estudada, que bem ao "gosto" simmeliano exibia que dentro da "sociação" cabe um elemento de conflito. Nesse sentido seleciono um trecho do meu diário escrito nos idos de 2000 durante o meu campo de mestrado:

Hoje, 9 de maio de 2000, estou mais uma vez no "boteco" da Dna. Maria, neste momento não estou mais apenas em frente a uma "velha conhecida", dirigente da Associação de Moradores do bairro [...] Aquela mulher que está sempre pronta para resolver um "pepino" do bairro, ou é cumprimentada por todos a sua volta [...] Estou diante de uma moradora do bairro Matadouro, que vive numa área do local denominada pejorativamente pela vizinhança de "a negada lá de baixo"[...] Uma mulher que em seu "pedaço" vive imersa numa "província de significados", em que o conflito parece constituir e atravessar sejam suas relações com os seus vizinhos evangélicos, traficantes, vizinhança em geral, entre outros. Vejamos algumas palavras de Dna Maria: "Esses evangélicos, esses crentes são um porre minha filha [...] de vez em quando saem corridos daqui de casa,

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principalmente quando vem me incomodar no Domingo, quando eu tô de bom humor, até mando eles entrar, ofereço um cafezinho pra eles, e assim vai, entre tapas e beijos a gente vai vivendo [...]". "Esses traficantes só fazem denegrir ainda mais a imagem do bairro, quando eu perco a paciência vou em cima deles mesmo, mas de vez em quando eles dão um brinquedinho pra rapaziada, quebram algum galho pra gente, daí assim vai indo [...]". "Essa gente porca vive jogando lixo na minha porta, depois ainda reclamam quando a gente xinga, um dia desses quase me peguei nos tapas com aquela vizinha ali da frente, fazer o que não é? Vizinho a gente não escolhe [...]"

Então, se num primeiro momento fiz uso dos já clássicos métodos antropológicos com o intuito de investigar, utilizando uma expressão de Geertz "o ponto de vista dos nativos" sobre violências, quando ingressei em 2005 no doutoramento, o meu objetivo era a partir de minha experiência de mestrado e de um alargamento e de uma densificação de minha etnografia continuar refletindo sobre a problemática das violências, agora discutindo além dos dados etnográficos, uma etnografia da etnografia, ou seja, investigando uma suposta violência que possa estar impregnada a um certo tipo de pensamento antropológico que ao negar o conflito corre o risco de se tornar hegemônico e universalizante.

Ora, pode parecer paradoxal numa discussão preocupada com a produção de discurso de política e poder eleger um autor que prima pelos estudos da forma como crucial para sua análise, isso se não estivéssemos atentos a idéia de que para Simmel a forma do procedimento pode valer tanto ou mais que o conteúdo que se chega, simplesmente porque o conteúdo só é de determinado modo enquanto resultado de um determinado tipo de procedimento.

Nesse sentido, Simmel nos dá uma ferramenta importante para pensarmos e refletirmos sobre o processo de nossas pesquisas a medida que demonstra o sentido e validade da ênfase na forma e no procedimento diante da constatação de que o processo afeta os resultados. Isso quer dizer que o conteúdo só terá sentido enquanto relacionado a uma forma (WAIZBORT, 2000).

Poderíamos pensar então que o aspecto formal do procedimento coordena, determina o processo de investigação, assim, dando ênfase aos processos, temos a possibilidade de ver como, por de trás de um conteúdo fixado há um processo que conduziu a ele (WAIZBORT, 2000). Se esse processo se dará de uma forma ou de outra dependendo por exemplo de nossas escolhas teóricometodológicas, das suas formas de lidar e proceder com o objeto, Simmel brinda-nos com a possibilidade da mobilidade perante esse processo, eis o desafio: pensarmos nossos estudos de violências não mais pautados por uma tradição,

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embora camuflada, ainda inspirada por uma sociologia durkheimiana do consenso e das sociologias marxistas e weberianas do conflito 4 .

Todos sabemos o quão paradoxal pode ser, como bem nos alertou Foucault 5, um discurso 6 aparentemente neutro para a legitimação de práticas sociais encobridoras de relações de poder. O antropólogo passa aqui, do papel de mero observador e toma o lugar de sujeito posicionado, auto -crítico de suas adesões teórico - políticas, capaz de enxergar sua participação direta ou indireta na construção e desconstrução dos discursos vigentes.

Aqui um dos recursos metodológicos fundantes da antropologia-o distanciamento necessário do objeto de análise para uma produção de saber no mínimo coerente, não deságua num relativismo radical, pelo contrário, utiliza esse distanciamento para repensar, critérios para distinguir uma postura política progressista de uma política conservadora, não servindo mais de desculpa para uma aparente postura a-política e a-crítica, postura essa incoerente desde quando reconhecemos o antropólogo como autor.

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Nesse mesmo viés, penso de acordo com (MOOR, 2000), que dentro da academia além de lugar teórico, há um lugar político, aliás, que o próprio lugar teórico revela lugar político, questionando as categorias unitárias e universais e tornando histórico e contextual conceitos que normalmente são tomados como naturais.

Nesse ínterim, o texto clássico de Zaluar (1999) pode ser considerado emblemático, já que longe de ser apenas uma periodização histórica das produções intelectuais sobre o tema, o livro é antes uma tentativa de organizar o vasto e diversificado debate, a partir da relação paradoxal entre a postura do cientista social (orgânico ou universal) e os modelos explicativos acionados, definidos como modelo marxista dicotômico de sociedade, modelo da construção da nação, modelo da organização da sociedade civil, modelo da sociabilidade violenta.

O que podemos perceber é que existe aí nesses modelos, fora o último, a presença menos ou mais...

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