A Vitimização Infantil: Breves Comentários a Dispositivos Específicos do Estatuto da Criança e do Adolescente

AutorLia Felberg
Páginas311-319

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1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 normatizou as diretrizes para a concretização de um estado Democrático de Direito, o qual, à vista dos princípios contidos no art. 1º, se comprometeu não só com a democracia política, mas também com uma demo-cracia social, visando a uma progressiva melhora nas condições de vida dos brasileiros e, com esta visão, ampliou especificamente as normas referentes às crianças e aos adolescentes, preconizando no seu art. 227 que:

[...] é dever da família, da comunidade, da socie-dade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Desta forma, a doutrina da proteção integral impôs a participação de todos, União, Estados, Municípios, família e sociedade tornando-se a diretriz básica do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A ideia de reconhecer proteção especial para a criança e o adolescente, evidentemente, não é nova. Surgiu em 1924 na Declaração de Genebra, foi reiterada em 1948 na Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas e consagrou-se no artigo 19 do Pacto de San José da Costa Rica em 1969, ratificado pelo Brasil em 1992. Assim como também a Convenção sobre o Direito da Criança aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 assinada e aprovada pelo Brasil em 1990. Todos estes documentos serviram de norte para a elaboração do ECA.

A proteção às crianças no Brasil passou por várias fases e, em razão disso, a criança foi sucessivamente alvo da filantropia até chegar à doutrina da proteção integral. No Brasil, as primeiras políticas de atenção à infância, desde a chegada dos portugueses até a década de 1920, foram marcadas pelo assistencialismo, prática por meio da qual a criança era vista como objeto de caridade e todo e qualquer tipo de atendimento a esta era encarado como um favor, e não um direito. A partir da vigência do ECA,

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ocorreu uma mudança importante neste sentido: as crianças e os adolescentes passaram de objetos de tutela a sujeitos de direitos.

De acordo com a norma constitucional acolhida pelo ECA, a proteção integral tem como fundamento:

[...] a concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos frente à família, à sociedade e ao Estado rompe com a ideia de que sejam simples objetos de intervenção no mundo adulto, colocando-os como titulares de direitos comuns a toda e qualquer pessoa, bem como direitos especiais decorrentes da condição peculiar de pessoas em desenvolvimento.1

Todavia, em que pese o pretendido acerto do Estatuto menorista no que tange à proteção dos menores sob todos os aspectos, desde seu nascimento, é certo que a violência contra as crianças e os adolescentes sempre esteve presente na história, é praticamente impossível de ser erradicada e se tornou o centro de estudos no Brasil em vários âmbitos do conhecimento, como a Psicologia, a Assistência Social, a Medicina e o Direito.

Infelizmente a violência é uma questão latente nas relações humanas e é um problema mundial. Especificamente contra a criança, sempre existiu desde tempos remotos, com variações culturais de país para país. Na Grécia antiga, o infanticídio era permitido, sendo considerado um meio para eliminar as crianças que nasciam com deficiências físicas.

A vitimização se traduz nos maus-tratos, na ausência de afetividade, na omissão dos pais ou responsáveis, no abuso sexual, na exploração, no abandono etc.

Neste aspecto é importante estabelecer a diferença entre a vitimação e vitimização, pois são fenômenos diversos, e, para tanto, invocamos a definição perfeita de Mário Santoro Junior:

A vitimação é definida como a situação na qual se privam as crianças de condições essenciais ao seu desenvolvimento e crescimento, em virtude das relações sociais desiguais. É um fenômeno típico das sociedades nas quais se privilegia a “mais-valia”. A vitimização é o produto das relações interpessoais desfavoráveis, onde os laços de afeto são substituídos por conflitos e violência.

Enquanto a vitimação ocorre em países pobres ou nas classes marginalizadas, a vitimização é de distribuição universal, ocorrendo em todas as classes sociais, sistemas políticos, raças e credos.2

O art. 13 do ECA prevê os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente obrigando a comunicação destas ocorrências ao Conselho Tutelar da comunidade ou a qualquer outra autoridade. O Código Penal, por sua vez, tipifica o crime de maus-tratos em seu art. 136, aumentando a pena em 1/3 se o crime for praticado contra pessoa menor de quatorze anos (§ 3º acres-cido pela Lei n. 8.069/90 — ECA).

Art. 13 (ECA): Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

Art. 136 (CP): Expor a perigo a vida ou a saúde de pessoa sob sua autoridade, guarda ou vigilância, para fim de educação, ensino, tratamento ou custódia, quer privando-a de alimentação ou cuidados indispensáveis, quer sujeitando-a a trabalho excessivo ou inadequado, quer abusando de meios de correção ou disciplina:

Pena: detenção, de 2 meses a 1 ano ou multa.

§ 3º Aumenta-se a pena de 1/3 se o crime é praticado contra pessoa menor de quatorze anos.

Assim, verificada qualquer suspeita de maustratos, hospitais, delegacias, vizinhos, parentes etc. devem comunicar imediatamente ao Conselho Tutelar. Constatando a efetividade das agressões, o Conselho tem o dever de providenciar o abrigamento da criança, conforme determina o art. 98 do ECA. Concomitantemente, o fato será levado ao conhecimento da Vara da Infância e da Juventude para as devidas providências.

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Art. 245. Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente.

Pena: multa de três a a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

Ainda que o ordenamento jurídico contenha o referido dispositivo que obriga o profissional a comunicar qualquer suspeita ou confirmação de maus-tratos contra o menor, é certo que, apesar de estas ocorrências serem costumeiras, ainda há grande subnotificação neste sentido, pois apenas os casos mais graves ou as mortes acabam chegando ao conhecimento público, na maioria das vezes, pelos meios de comunicação.

A Organização Mundial de Saúde define violência de modo amplo:

O uso deliberado da força física (ou do poder) seja na forma de ameaça, ou efetiva contra si mesmo, ou outra pessoa ou grupo ou comunidade, causando ou com probabilidade de causar lesões, morte, danos psicológicos, transtornos psicológicos ou privações.3

Deste conceito se extrai a face mais visível da violência, a sua primeira imagem, que se exprime por meio da agressividade. A agressão é uma forma de interação social, pois se origina e se efetiva na relação com o outro, uma vez que não existe agressão sem vítima.

A violência que ocorre no ambiente doméstico contra o menor, então, é a mais difícil de ser constatada, pois é cercada pelo silêncio. As vítimas geralmente permanecem no processo de vitimização e dependem da iniciativa de professores, vizinhos ou qualquer pessoa estranha à família para efetuar a denúncia. Assim, não há dúvida de que a notificação dos casos de violência doméstica contra a criança, se estes realmente fossem comunicados às autoridades competentes como determina a lei, representaria uma grande possibilidade para o enfrentamento do problema.

Maria Cecília de Souza Minayo ressalta que só se pode falar de violências, pois se trata de uma realidade plural, diferenciada, cujas especificidades necessitam ser reconhecidas. Contudo muitas são as tentativas de explicação para suas causas. De um lado estão teóricos que sustentam que a violência resulta de necessidades biológicas, psicológicas ou sociais, fundamentando-se na sociobiologia ou na etiologia, teorias que subordinam a questão social às determinações da natureza. De outro, estão os que explicam a violência como fenômeno de causalidade apenas social, provocada pela dissolução da ordem, quer pela “vingança” dos oprimidos, quer ainda pela fraqueza do Estado. Mais adiante reiteram que a violência é um fenômeno histórico, quantitativa e qualitativamente, e, portanto, sua compreensão passa pelos marcos de relações socioeconômicas, políticas e culturais específicas, cabendo diferenciá-la no tempo e no espaço, e deste ponto de vista, requer, a busca social das condições que a engendram4.

Em nosso...

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