La e de volta outra vez: da critica marxista da concepcao de direito em Hegel aos limites hegelianos como limites do mundo burgues/There and back again: from the Marxist critique of Hegel's conception of law to the Hegelian limits as limits of the bourgeois world.

AutorCavallini, Victor

1 INTRODUCAO

Ha um fragmento de texto de autoria de Marx que e de conhecimento obrigatorio a qualquer um que tenha, em qualquer medida, se interessado pelo estudo do marxismo: "Os filosofos apenas interpretaram o mundo de diferentes maneiras; porem, o que importa e transforma-lo." (MARX; ENGELS, 2009, p. 539, grifo do autor). De passagem, e ate possivel afirmar que esta ultima das teses ad Feuerbach e de conhecimento menos obrigatorio do que inevitavel: quem nunca leu, afinal, estas tao repetidas, porem nem um pouco gastas palavras, e se sentiu tocado com a sutileza com que definem a trajetoria do conhecimento ocidental, sem mencionar a singela forma pela qual se define a tarefa fundamental do pensamento marxista?

E certo que tal passagem denota claramente, em adicao, o rispido desdem que Marx cultivava em relacao ao "espirito filosofico". Mas, em certo sentido, e forcoso reconhecer que ele muito bem poderia, tambem, ser considerado um filosofo. A transformacao do mundo por ele defendida certamente passa pelo conhecimento do mesmo, por uma diferente especie de entendimento que transforma o que compreende (EAGLETON, 1999, p. 7-8). O conhecimento, nestes termos, envolve a mudanca pratica das condicoes de quem conhece, sendo, portanto, muito mais do que a mera "reflexao" sobre determinada situacao material: "e conhecimento como um evento historico em vez de especulacao abstrata, no qual saber que nao mais se separa claramente de saber como" (EAGLETON, 1999, p. 8, grifo do autor). Diante disso, muito acertada e a opiniao de que Marx pode ser situado na categoria dos antifilosofos (EAGLETON, 1999, p. 9), que, vendo algo de errado na filosofia de seu tempo, transcendem-na sem abandona-la completamente.

Dirigindo-se, assim, a filosofia "da moda" de sua epoca--o idealismo alemao, o desenvolvimento teorico de Marx se dirige a uma filosofia que nao estaria indo longe o bastante, que parte das ideias sem considerar as relacoes e condicoes materiais que precedem o inicio da reflexao. De fato:

A producao de ideias, de representacoes, da consciencia, esta, em principio, imediatamente entrelacada com a atividade material e com o intercambio material dos homens, com a linguagem da vida real. [...] Os homens sao os produtores de suas representacoes, de suas ideias e assim por diante, mas [apenas o sao enquanto] os homens reais, ativos, tal como sao condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forcas produtivas e pelo intercambio que a ele corresponde, ate chegar as suas formacoes mais desenvolvidas. A consciencia [Bewusstsein] nao pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente [bewusste Sein], e o ser dos homens e o seu processo de vida real. (MARX; ENGELS, 2009, p. 93-94, grifo nosso). Para Marx trata-se, portanto, nao de buscar como o pensamento se erige em seu reino proprio, "costurando o mundo todo no interior de seus conceitos" (EAGLETON, 1999, p. 12), mas de investigar as causas e condicoes materiais em que o pensamento se desenvolve, apreendendo-o, assim, como enraizado nas condicoes materiais que ele procura examinar. E e neste sentido que, "totalmente ao contrario da filosofia alema, que desce do ceu a terra, aqui se eleva da terra ao ceu" (MARX; ENGELS, 2009, p. 94).

Tal modo de compreensao e muito significativo quando confrontado com uma de nossas velhas conhecidas: a concepcao juridica de mundo. Esta, enquanto modo particular de encarar a realidade social, pode ser considerada quase uma antipoda do pensamento marxista. O modo como a teoria juridica encara o surgimento desta ordem pseudonatural que e o Direito muito tem a dizer sobre as bases nas quais a sociedade capitalista assenta, na exata medida em que explica, sem explicar, as contradicoes inerentes as relacoes que expressam. O resgate da critica marxista ao Direito pode ser encarado, portanto, como a compreensao necessaria das relacoes juridicas como relacoes que unificam a sociedade apenas em sentido meramente formal.

Em sua primeira parte, o presente trabalho adota uma inversao pouco "tradicional" em sua exposicao. O primeiro objetivo aqui empreendido e uma analise da critica contida nos escritos considerados "de juventude" de Marx em relacao a concepcao idealista (ou, como se vera mais adiante, burguesa) de Direito e de Estado, pelo que se definiu um trajeto capaz de caracterizar esta subida da terra em direcao ao ceu, isto e, das condicoes concretas do trabalho humano estranhado a significacao politica, filosofica e juridica dada pelo pensamento burgues (juntamente com a busca de seu real significado). Assim, opera-se uma inversao cronologica na exposicao, que nao deve ser interpretada, contudo, como uma inversao logica. Tal recurso servira apenas para esclarecer, num primeiro momento, qual e esta dupla natureza da atividade de exteriorizacao do ser humano, isto e, as bases materiais que dividem o homem ao meio e que permitem que as relacoes sociais se revistam de uma forma juridica, expressao deste dilaceramento. Tal inversao possibilitara, posteriormente, o desenvolvimento de uma construcao mais solida acerca da critica marxista dirigida a concepcao burguesa do direito e do Estado.

Como sera possivel observar, nos escritos do "jovem" Marx tudo parece girar em torno de Hegel. Tanto que seria impossivel nao abordar a concepcao hegeliana de direito e de Estado no presente trabalho. Tal situacao, contudo, nao teria como ser mais oportuna: Hegel pode ser considerado a expressao maxima da filosofia e do Direito burgues, na medida em que traduziu com notavel rigor a logica interna do funcionamento da sociedade burguesa (isto e, sob o peculiar ponto de vista burgues). Por este motivo que depois de chegarmos la (isto e, apos a elucidacao das criticas elaboradas por Marx), logo estaremos de volta outra vez: a ultima parte do presente trabalho se dedicara a explorar os limites do proprio idealismo alemao sob sua perspectiva interna, as quais serao capazes de demonstrar os limites da propria concepcao burguesa de mundo.

2 A CRITICA DO TRABALHO NOS MANUSCRITOS ECONOMICO-FILOSOFICOS

Ao se falar da interpretacao marxista do sistema hegeliano, ha que se compreender que Marx esta se dirigindo a uma filosofia capaz de interpretar o mundo "de acordo com a possibilidade de total revolucao do existente" (RANIERI, 2001, p. 12). Isso porque o metodo de Hegel se volta a compreensao do objeto a partir de sua legalidade interior, isto e, em seu proprio movimento, indissociavelmente ligado a sua forma de exposicao; quer dizer, o metodo hegeliano "trata o objeto a partir de sua consistencia interna" (RANIERI, 2011, p. 23). A dialetica e o resultado final da Fenomenologia: a negatividade enquanto principio motor, que impulsiona adiante (MARX, 2010a, p. 123). Esta verdade, todavia, so pode advir quando a consciencia e capaz de apreende-la. E e no sentido apontado por Marx que o idealismo e insuficiente, pois "existe todo um conjunto de questoes concernentes a logica da producao e reproducao da vida humana que estas disciplinas nao foram capazes de enfrentar adequadamente" (RANIERI, 2001, p. 14). Vejamos, portanto, o cerne de tais insuficiencias.

2.1 O aspecto positivo do trabalho

Hegel estabelece a relacao da consciencia-de-si (sujeito) com o mundo como se fosse um retorno da consciencia-de-si a si mesma, que suprassume a exteriorizacao e a objetividade. O mundo pertence ao seu ser, e a exteriorizacao da consciencia-de-si poe este objeto enquanto coisidade na sua autoexteriorizacao (Selbstentausserung), um mundo efetivo pertencente ao seu ser, muito diferente da forma "natural" da externalidade (Ausserlichkeit) (MARX, 2010a, p. 126). E, assim, os objetos estranhos, mediante a sua exteriorizacao (Entausserung), sao as forcas essenciais do homem, que, para Marx, so enquanto ser objetivo (assentado mediante objetos) e capaz de assentar objetos--quer dizer, so e capaz disso enquanto natureza. E assim seu produto objetivo confirma sua atividade objetiva (MARX, 2010a, p. 126-127), que atraves do saber vem-a-ser para a consciencia (MARX, 2010a, p. 129): o sujeito se realiza como sujeito ao exteriorizar-se em objetos. E, nesse sentido, a consciencia-de-si esta junto de si em seu ser-outro--e este e o movimento da vida que se constitui atraves da autoconfirmacao em contradicao consigo mesma (MARX, 2010a, p. 129-130).

O homem se apropria, assim, de seu ser objetivo "mediante sua suprassuncao na sua existencia (Dasein) estranhada" (MARX, 2010a, p. 132), isto e, mediante a retomada, de volta em si, da exteriorizacao. Assim, para Marx (2010a, p. 132), Hegel apreende o autoestranhamento, a exteriorizacao da essencia enquanto autoaquisicao, objetivacao, isto e, apreende--ainda que abstratamente--o trabalho como o ato de producao de si do homem. Como afirma Ranieri (2011, p. 79), "o trabalho e o momento primordial da saida-de-si da consciencia, assumindo um papel originariamente plasmador, que e o espirito que sai de si e penetra no elemento estatico da natureza". Entretanto, Marx (2010a, p. 124, grifo do autor) afirma que "o trabalho que Hegel unicamente conhece e reconhece e o abstratamente espiritual", quer dizer, o ato de auto-objetivacao do homem e apreendido apenas formal e abstratamente, pois e negacao da negacao enquanto abstracao absoluta, novamente fixada como tal (MARX, 2010a, p. 133). E nessa atividade a relacao com a natureza e a relacao com um puro nada, ja que a sua intuicao abstrata significa a criacao de um ser-Outro que e produto puro do trabalho do pensar; ou seja, esta intuicao e apenas a confirmacao de sua abstracao da intuicao da natureza, e mera forma do ser-Outro da consciencia. Fora destas abstracoes, a natureza tem apenas o sentido de uma externalidade a ser suprassumida, uma debilidade que nao deve ser, pois o verdadeiro e a Ideia (MARX, 2010a, p. 135-136).

A alienacao ou exteriorizacao (3) (Entausserung), momento em que o espirito sai de si, objetivando-se, para retornar a si suprassumindo-se, nao envolve a superacao material da...

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