Conflito de interesses entre o administrador e a companhia - inexistência de impedimento de votar em deliberação do conselho de administração da controlada, do qual é membro, que aprova concessão de mútuo à controladora, da qual é chefe do departamento jurídico

AutorCarlos Augusto Da Silveira Lobo - Rafael De Moura Rangel Ney
Páginas275-286

Page 275

CONSULTA

Um ilustre Advogado consulta-nos sobre o abaixo exposto:

  1. O Consulente, advogado inscrito na OAB, no exercício do cargo de Con-sultor-Geral Jurídico da Cia. "A", provê diretamente aconselhamento jurídico aos órgãos da administração da companhia e chefia os demais advogados lotados no seu Departamento Jurídico e nos demais setores jurídicos das sociedades por ela controladas. O cargo de Consultor-Geral Jurídico não é cargo da administração da Cia. "A", no sentido do Capítulo XII da Lei 6.404/1976.

  2. A Cia. "A" é a sociedade dominante de um grupo de fato de sociedades, dentre as quais figurava a Cia. "B", uma companhia aberta, na época em que se realizaram a deliberação e a operação objeto desta consulta. A Cia. "B", por sua vez, controlava outras sociedades, formando um subgrupo de fato. Posteriormente, a Cia. "B" veio a ser incorporada à Cia. "A", estando, portanto, hoje, extinta.

  3. O Consulente, sem prejuízo de exercer o cargo de Consultor-Geral Jurídico da Cia. "A", foi eleito pela sociedade controladora, a Cia. "A", para integrar, como membro efetivo, o Conselho de Administração da Cia. "B", tendo tomado posse e exercido regularmente essa função.

  4. Nessa qualidade participou da reunião do Conselho de Administração da Cia. "B" realizada em 18.8.2005 e votou na deliberação, aprovada por unanimidade, que autorizou a celebração de contratos de mútuo pelo prazo de 150 dias, nos quais a Cia "C" (uma subsidiária direta da Cia. "B") figurou como mutuante e a Cia "D" (uma subsidiária direta da Cia. "A") figurou como mutuária. O Consulente informa que os aludi-

    Page 276

    dos mútuos foram contratados mediante condições compatíveis com as vigentes no mercado financeiro para operações similares, que a quantia mutuada correspondia a excesso de caixa da mutuante, cuja aplicação se impunha, e que os juros foram fixados no ponto médio entre as taxas para depósitos e para financiamentos em moeda estrangeira com prazo de 150 dias, pelos bancos de primeira linha, razões pelas quais, no caso, ganharam ambas as partes em relação ao que obteriam no mercado.

  5. A Comissão de Valores Mobiliá-rios/CVM, através de ofício, solicitou do Consulente que se manifestasse sobre as razões pelas quais participou da deliberação dos empréstimos, enquanto Conselheiro de Administração da Cia. "B", na Reunião do Conselho de Administração de 18.8.2005, a despeito de à época exercer o cargo de Consultor-Ge-ral Jurídico na Cia. "A". A solicitação indica como fundamento o art. 156 da Lei 6.404/1976.

  6. O Consulente atendeu ao ofício da CVM, manifestando-se formalmente no prazo de 10 dias úteis, que lhe foi concedido, afastando, assim, a incidência da multa prevista na Instrução CVM-273/ 1998, aludida no ofício.

  7. Todavia, a Administração da Cia. "A" considera a matéria de fundamental importância para a boa gestão do grupo de sociedades sob seu controle, entre outros motivos porque, como sociedade controladora, a Cia. "A" tem o dever, perante seus acionistas, de estabelecer as políticas gerais do grupo e monitorar sua execução, sendo certo que o bom desempenho dessas funções exige a presença e a efetiva participação de administradores e altos funcionários de sua organização, especialmente o Consultor-Geral Jurídico, nos órgãos administrativos das subsidiárias. Por esse motivo, além da manifestação pessoal do Consulente, já apresentada, entende necessário conhecer também a opinião de outros juristas sobre o assunto.

    PARECER

  8. Conceito de "conflito de interesses"

    "Interesses", no sentido a ser examinado neste parecer, são os desejos, que todo ser humano tem, de obter bens da vida, entendendo-se "bem da vida" na sua mais lata significação, isto é, não somente os bens tangíveis e intangíveis definidos pelo ordenamento jurídico, como também status e posições diante de situações atuais ou prováveis. Os seres humanos organizam-se em coletividades para alcançarem interesses comuns, caso em que se diz que os interesses são da coletividade. Se o ente coletivo é organizado sob a forma jurídica de sociedade anônima, diz-se que os interesses são da companhia.

    Os interesses povoam as relações sociais e se cruzam em uma grande variedade de relações entre variados sujeitos e obje-tos. Freqüentemente entram em conflito uns com outros, e normas destinadas a prevenir ou resolver os efeitos da confrontação de interesses conflitantes constituem disposições importantes de praticamente todos os ramos do Direito.

    Define-se o "conflito de interesses" como a relação entre dois interesses (ou dois pólos de interesses) na qual a satisfação de um importa necessariamente sacrifício do outro. De se ressaltar - como observa Galgano - que o sacrifício total ou parcial de um dos interesses, para que o outro seja satisfeito, é elemento essencial do conceito. Ausente esse elemento, não há conflito: os interesses são alcançados harmonicamente. No mesmo sentido, Jae-ger salienta que entre dois interesses conflitantes há uma relação de incompatibilidade absoluta, pelo quê se pode dizer que a realização de um desses interesses exige o sacrifício do outro.1

    Passamos, então, a responder à con-sulta.

    Page 277

    Eis a sempre citada definição de Gal-gano, que se refere ao conflito de interesses entre a sociedade e o sócio, mas que se aplica, mutatis mutandis, ao caso em foco: "Ocorre conflito de interesses entre o sócio e a sociedade quando o sócio se encontra na condição de ser titular, diante de uma determinada deliberação, de um duplo interesse: do seu interesse de sócio e, por outro lado, de um interesse externo à sociedade; e esta duplicidade de interesses é tal que ele, o sócio, não pode realizar um sem sacrificar o outro interesse. Todavia, a simples duplicidade de interesses em um mesmo sujeito, por si só, não implica situação de conflito no sentido técnico. As duas posições de interesse podem ser de solidariedade entre eles: o sócio pode realizar o próprio interesse sem prejudicar o interesse da sociedade" (tradução e grifos dos signatários).2

    Antes de atingir o objeto deste parecer - que é o estudo do conflito de interesses entre a companhia e seu administrador - nos deteremos no estudo dos conflitos de interesses entre partes de uma relação fiduciária em geral, pois a relação entre a companhia e seus acionistas, de um lado, e o administrador, de outro, é de natureza fiduciária.

    As normas dispõem sobre conflitos de interesses entre fiduciante e fiduciário ou determinam medida preventiva (vedação de o fiduciário agir ou votar) ou repressiva (o fiduciário não é impedido de agir ou votar, mas responde se a ação ou voto em benefício próprio causar prejuízo ao fiduciante).

    As disposições legais que usam a vedação como medida preventiva fazem-no mediante uma das duas seguintes técnicas legislativas: ou (i) enunciam especificamente os negócios sobre os quais incide a vedação, valendo-se de uma presunção iuris et de jure para determinar o conflito de interesses3 (conflito de interesses formal), ou (ii) definem os negócios vedados através de uma cláusula geral, deixando ao operador do Direito a tarefa de examinar caso a caso, para verificar a existência do conflito (conflito de interesses substancial).

    A primeira técnica só pode ser adota-da em um número limitado de hipóteses, pois é impossível especificar todos os atos da vida real em que podem estar presentes interesses conflitantes. Tem, todavia, a virtude de afastar o fiduciante de operações em que se apresenta prima facie como suspeito, mediante um preceito simples e direto. O art. 497,I, do CC constitui exemplo sugestivo da adoção dessa técnica, ao fulminar com nulidade absoluta a compra, ainda que em hasta pública, pelos tutores, curadores, testamenteiros e administradores, dos bens confiados à sua guarda e administração. Outro exemplo é a disposição constante da primeira parte do § 1o do art. 115 da Lei das S/A (Lei 6.404/1976): "O acionista não poderá votar nas deliberações da assembléia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador (...)". Nota-se que essa técnica só é adotada em hipóteses evidentes e gritantes de conflito de interesses, em que seja admissível basear a vedação em uma presunção absoluta.

    A segunda técnica, por se utilizar de uma cláusula geral, tem a virtude da abran-gência extensiva, compreendendo todo o vasto território do conceito; mas apresenta a desvantagem de requerer o exame de cada caso concreto para concluir se um conflito de interesses está configurado. Exemplo de disposição que adota essa segunda técnica é o caput do art. 156 da Lei das S/A, que constitui o alvo deste estudo: "É vedado ao

    Page 278

    administrador intervir em qualquer operação social em que tiver interesse conflitante com o da companhia (...)".

    Essa segunda técnica é também empregada pela parte final do § 1o do art. 115 da Lei das S/A, que veda o voto do acio-nista: "(...) em quaisquer outras [deliberações] que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia".

    Cumpre reiterar que a vedação da lei incide enquanto o efeito do conflito de interesses se encontra em potência. A disposição legal é preventiva, e a vedação se deflagra enquanto o dano se encontra em estado potencial.4 Vedação a posteriori, referida em alguns respeitáveis pronunciamentos, nos parece ser uma contradição em termos, pois é impossível vedar o que já foi feito. Após a produção do efeito, com a consumação do sacrifício do interesse prejudicado, a lei atua mediante uma terceira técnica: a responsabilidade civil do titular do interesse favorecido, que agiu ou votou abusivamente.

    Por fim, seria de se indagar se efetiva-mente houve, ou não, conflito de interesses no caso. A resposta a esta indagação exigiria o exame...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT