Voz das vitimas: a discursividade critica em Dussel e o mecanismo de consulta da Convencao no 169 da OIT/Victims' voice: critical discursivity in Dussel and the consultation mechanism of ILO Convention no 169.

AutorCaldas, Josiane
  1. Introdução

    "... E os sem amor, os sem teto/Os sem paixão, sem alqueire. /No peito dos sem peito uma seta / E a cigana analfabeta / Lendo a mão de Paulo Freire. /A contenteza do triste / Tristezura do contente / Vozes de faca cortando /Como o riso da serpente / São sons de sins, não contudo / Pé quebrado, verso mudo/Grito no hospital da gente..." (Chico César, música 'Beradêro') O sistema-mundo vigente nega a vida de pessoas, culturas, povos--das vítimas, como Enrique Dussel, inspirado em Walter Benjamin, denomina "as imensas maiorias da humanidade excluídas da globalização" (DUSSEL, 2002, p. 15). Em "Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão", Dussel explicita a construção de uma nova factibilidade a partir da crítica material e formal às causas de negação das massas vitimadas. Especifica os princípios éticos que devem estar presentes em cada passo dado no sentido da transformação dessa realidade: i.) de produção, reprodução e desenvolvimento da vida em comunidade de cada sujeito ético; ii.) ético-formal da razão discursiva; iii.) de factibilidade ética; iv.) crítico material e v.) formal intersubjetivo da validade crítica (DUSSEL, 2002, p.511). Tece, a partir disso, o conteúdo e a forma do princípio-libertação (1). Assim, constroem-se as ponderações sobre a organização das comunidades de vítimas e sua auto-emancipação: os sujeitos-históricos e a intersubjetividade comunitária buscando, permanentemente, o desenvolvimento criativo e libertador estratégico da vida (DUSSEL, 2002, p. 501).

    A validade anti-hegemônica da comunidade de vítimas coloca-se, especialmente, a partir do debate sobre o princípio ético crítico-discursivo comunitário, ou seja, sobre validade moral intersubjetiva, a crítica formal. Dussel reforça a relação complexa e indissociável do momento material da ética, da verdade prática, com o momento formal, de validade intersubjetiva (2). Se, por um lado, a discursividade--determinante para a sustentação da validade--é dimensão essencial da vida humana, por outro lado, a vida humana é pressuposto da discursividade. O fundamento material da Ética da Libertação aponta que a atuação ética deve "produzir, reproduzir e desenvolver auto-responsavelmente a vida concreta de cada sujeito humano" (DUSSEL, 2002, p. 143). A produção e reprodução da vida são asseguradas com o concurso de todos, sendo a comunicação linguística procedimento essencial para a garantia dessa produção e reprodução. A verdade prática do conteúdo articula-se à validade intersubjetiva (DUSSEL, 2002, p. 169) e o critério de validade--ou procedimental--trata da pretensão de alcançar a intersubjetividade atual--histórica, não definitiva--acerca de acordos obtidos racionalmente por uma comunidade (DUSSEL, 2002, p. 208).

    Nesta esteira, examinaremos no presente artigo, em especial, o momento da crítica formal e a construção do critério e do princípio ético crítico-discursivo comunitário de validade na Ética da Libertação dusseliana, sem olvidar que a vida concreta e a crítica material fundamentam o discurso.

    O momento da crítica formal é marcado pela dualidade entre o aspecto negativo e o aspecto positivo do princípio. Considera-se, por um lado, o processo de "tomada de consciência" progressiva das vítimas sobre o que causa a negação de suas vidas, ou seja, a consciência da exclusão--o momento que Paulo Freire chama de denúncia (1981, p. 48). Por outro, há o exercício da razão crítico-discursiva por elas mesmas, construindo, a partir da imaginação libertadora, alternativas possíveis, utópico-factíveis, de transformação--o anúncio (FREIRE, 1981, p. 48).

    Na construção dos critérios e princípios presentes na Ética da Libertação, Dussel dialoga com autores de distintas escolas do pensamento, aproveitando algumas análises, apontando limites e refutando outras. No presente artigo, para tratar dos aspectos negativo e positivo do princípio crítico de validade, além de contar com o subsídio de Paulo Freire, optamos por trabalhar, especialmente, o diálogo estabelecido por Dussel com Antonio Gramsci e Ernst Bloch. Tal escolha se deu por terem contribuições-chaves na compreensão da hegemonia de negação da vida das vítimas e da construção da utopia possível, respectivamente.

    A problemática a ser enfrentada neste trabalho trata das possibilidades colocadas pelo mecanismo de consulta prévia, livre e informada, previsto na Convenção no 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), ratificada pelo Brasil em 2002, como instrumento de efetivação do princípio ético crítico-discursivo comunitário de validade. A Convenção dispõe sobre a necessidade de consultar e garantir mecanismos de participação aos povos afetados por medidas legislativas e administrativas. Dialogando com Dussel, discutimos os limites e as aberturas apresentadas por esse instrumento que, a princípio, apresenta-se como uma maneira de ouvir a voz das vítimas.

    A questão colocada, então, é: como garantir que todos os afetados pela globalização--e pela exclusão por ela gerada--participem, de fato, da discussão argumentativa, sem coação e sendo reconhecidos como iguais? A ação ético-crítica deve transformar o que causa a negatividade material da vítima e, ainda, construir novas normas, ações, instituições etc., em que as vítimas possam viver como participantes iguais e plenos (DUSSEL, 2002, p. 565). Ou seja: se alguém é excluído violentamente do discurso, deve-se criar condições para sua (re)inclusão. Para isso, é preciso não apenas reconhecer o outro como igual, mas reconhecer o dever moral de argumentar que o outro excluído deve falar. Essas são, para Dussel, as questões que dão o conteúdo mínimo da universalidade da ética.

    A partir desses elementos introdutórios, é possível debater o desenvolvimento do consenso crítico, que, longe da Ética do Discurso de Habermas--baseada numa simetria que é impossível empiricamente (DUSSEL, 2002, p. 465)--, encara a desigualdade material das vítimas e a coação a elas impingida pelo sistema de exclusão hegemônico. Assim, o ponto de partida é, justamente, a comunidade crítico-simétrica das vítimas, que foram, e são, excluídas assimetricamente da comunidade de comunicação hegemônica.

  2. As vítimas têm voz na era da globalização e da exclusão?

    O momento ético-material é marcado tanto por uma razão prático-material, que tem pretensão de verdade prática, ou seja, tem a capacidade de distinguir por meio de um juízo de fato entre aquilo que é veneno e o que é alimento para a vida; quanto pela razão ético-originária, que assente com a existência do outro, de outros sujeitos humanos, como iguais. (DUSSEL, 2002, p. 277). É por este caminho, também, que passa e se fundamenta a razão discursiva, momento ético-formal, que atinge a validade intersubjetiva por meio da participação simétrica dos outros participantes que são tratados como iguais--há um reconhecimento e uma responsabilidade pelo outro (DUSSEL, 2002, p. 466).

    Para debater a ética da discursividade crítica, a contextualização do critério de validade intersubjetiva, o segundo dos seis momentos da arquitetônica da Ética da Libertação (3), coloca as bases no sentido de, posteriormente, tratar do critério moral-formal crítico anti-hegemônico. A Ética preocupada em produzir, reproduzir e desenvolver a vida constrói-se, também, a partir da validade do discurso, tendo a "pretensão de alcançar a intersubjetividade atual acerca de enunciados veritativos, como acordos obtidos racionalmente por uma comunidade" (DUSSEL, 2002, p. 208). Para tanto, é fundamental que haja a participação efetiva na discussão argumentativa.

    A razão instrumental, terceiro momento-fundamento da Ética da Libertação, por sua vez, subsume-se pela razão ética da factibilidade, que inclina-se a uma utopia, que traça "um projeto possível" e, a partir dele, "opera ou efetua realmente a norma, ato, instituição ou sistema de eticidade (o 'bom' ou 'mal'), podendo igualmente avaliar a posteriori suas consequências" (DUSSEL, 2002, p. 466).

    Esta avaliação crítica do sistema de eticidade hegemônico permite constatar tanto existência das vítimas, o que mostra a "não-verdade" da ordem ética vigente, quanto a não participação das comunidades de vítimas nos processos decisórios e, assim, a não-validade dos consensos do sistema dominante. Dussel assevera, inclusive, a "impossibilidade empírica de não excluir alguém do discurso", diante da inexistência de uma comunidade de comunicação absolutamente perfeita. Quer dizer: não temos condições de ter consciência de todos os excluídos do presente, nem dos excluídos futuros por nossas ações presentes--o que implica a necessidade de avaliação constante de quem são as vítimas atuais e dos mecanismos de inclusão a serem adotados (DUSSEL, 2002, p. 417).

    Enquanto a Ética do Discurso pressupõe que a argumentação ocorre entre participantes em condições simétricas, negligenciando a realidade dos afetados pela globalização excludente, a Ética da Libertação, considerando que as vítimas são constantemente excluídas assimetricamente da comunidade de comunicação hegemônica, aponta a necessidade de que se reúnam em uma comunidade crítico-simétrica (DUSSEL, 2002, p. 465). A Ética da Libertação dispõe da luta pelo reconhecimento das próprias vítimas, que se transformam em agentes incumbidos de sua própria libertação.

    É através de razão crítica que, de forma inovadora, a comunidade crítica das vítimas alcança uma nova validade, anti-hegemônica, que tem origem no reconhecimento de cada uma delas, por elas mesmas, como "outra" (DUSSEL, 2002, p. 467).

    O exercício da razão discursiva crítica perfaz-se, inicialmente, com o processo de descoberta da não validade dos consensos do sistema dominante, em seguida, toma-se ciência da periculosidade inerente da crítica, pois o consenso das vítimas será tido como anti-hegemônico, ilegal e ilegítimo. O tamanho da ameaça ao status quo que representa o consenso anti-hegemônico da comunidade de vítimas relaciona-se ao contexto social, cultural, político e econômico de...

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