Vulnerabilidade e mulher nos direito s das famílias: desigualdades nas relações de conjugalidade e cuidado

AutorElisa Cruz
Ocupação do AutorDoutora e Mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora. Defensora Pública no Estado do Rio de Janeiro
Páginas181-196
VULNERABILIDADE E MULHER NOS DIREITOS
DAS FAMÍLIAS: DESIGUALDADES NAS
RELAÇÕES DE CONJUGALIDADE E CUIDADO
Elisa Cruz
Doutora e Mestra em Direito Civil pela UERJ. Professora. Defensora Pública no Estado
do Rio de Janeiro.
Sumário: 1. Introdução. 2. Ponto de partida: conceito de vulnerabilidade. 3. Vulnerabilidade,
mulher, feminismos e Direito das Famílias. 4. Família e casamento. 5. Família, cuidado e
guarda. 6. Conclusões. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Teorias feministas sobre o Direito fazem parte da história da produção do conhe-
cimento acadêmico, mas não seria de todo incorreto af‌irmar essa perspectiva tem sido
assumida com maior frequência em trabalhos recentes, como sustenta Carmen Hein
de Campos, em especial em pesquisas sobre violência de gênero e direitos sexuais e
reprodutivos1.
Embora o Direito das Famílias se apresente como um campo favorável à incorpo-
ração das teorias feministas para a análise dos seus institutos, considerando-se a corre-
lação entre afetividade e mulher sobre a qual se construiu esse ramo jurídico2, o debate
se revela incipiente e pontual, possivelmente fruto do legado de um “sistema que teima
em recusar a travessia do indivíduo ao sujeito, e do sujeito à cidadania”3. Temas como
guarda parental possuem maior permeabilidade de captação das críticas feministas em
relação aos demais institutos familistas.
Esse artigo busca se apropriar de parte das críticas feministas ao Direito e aplicá-las
a alguns institutos do Direito das Famílias. A escolha recaiu sobre as relações de conju-
galidade e guarda e cuidado dos f‌ilhos por serem essencialmente de caráter existencial e
com caráter feminino latente, tanto pelas ciências políticas e sociais como pelo Direito.
Cabe o destaque de a análise é realizada tendo a mulher como centro das relações, mas
1. CAMPOS, Carmen Hein de. Críticas feministas ao Direito: uma análise sobre a produção acadêmica no Brasil. In:
SÍMON, Sandra Lia et alii. Tecendo f‌ios das críticas feministas ao Direito no Brasil. Ribeirão Preto: FDRP/USP, 2019,
p. 32.
2. FERRY, Luc. Amor, f‌ilosof‌ia, sabedoria e felicidade. In: Schüler, Fernando Luís; WOLF, Eduardo. Pensar o contem-
porâneo. Porto Alegre: Arquipélago, 2014, p. 100-102.
3. FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do Direito Civil à luz do novo Código Civil brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003, p. 11.
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deve-se reconhecer que existem outros gêneros4 sem visibilidade dentro do Direito das
Famílias.
A realização das críticas vem mediada pela vulnerabilidade, conceito que circula
entre diversas áreas de conhecimento e que, portanto, revela aptidão para incorporar ao
Direito análises realizadas por outros saberes. Assim, o artigo se inicia pela apresentação
dos signif‌icados possíveis de vulnerabilidade e o conceito utilizado no presente trabalho,
conectando-se com a seção 03 em que se busca apresentar um panorama sobre a vulnera-
bilidade da mulher no Direito das Famílias. Após essas seções introdutórias, as seções 04 e
05 irão conter análises específ‌icas de vulnerabilidade sobre casamento, guarda e cuidado.
2. O PONTO DE PARTIDA: CONCEITO DE VULNERABILIDADE
A expressão vulnerabilidade apareceu em texto legislativo no Brasil pela primeira
vez no Código de Defesa do Consumidor – CDC, em seu artigo 4º, I, como um dos prin-
cípios da política nacional das relações de consumo.
Sem constar expressamente da Constituição da República nem do Código Civil
de 1916, vigente na data de publicação do CDC, o desenvolvimento do conceito de
vulnerabilidade desenvolveu-se no contexto das relações de consumo5 e culminou com
sua tripartição em vulnerabilidade técnica, jurídica e econômica6. A vulnerabilidade
econômica ou fática consiste no reconhecimento da fragilidade do consumidor frente ao
fornecedor que, por sua posição de monopólio, fático ou jurídico, por seu forte poderio
econômico ou em razão da essencialidade do produto ou serviço que fornece, impõe sua
superioridade a todos que com ele contratam. A vulnerabilidade técnica do consumidor
consiste na ausência de conhecimentos específ‌icos sobre o produto ou serviço que ele
adquire ou utiliza em determinada relação de consumo. A vulnerabilidade jurídica con-
siste na falta de conhecimentos jurídicos específ‌icos, ou seja, na falta de conhecimento,
pelo consumidor, dos direitos e deveres inerentes à relação de consumo7.
Embora essas construções considerem a pessoa do consumidor e devam, portanto,
cumprir a dignidade da pessoa humana, pode-se af‌irmar que elas foram direcionadas para
a regulação de relações de caráter patrimonial em que se busca proteger o consumidor
dos riscos decorrentes de uma sociedade de consumo8. Ou seja, esses conceitos vincu-
lam-se fortemente às relações travadas pelas pessoas em relações consumeristas, sendo
de difícil transposição para situações jurídicas essencialmente existenciais ou dúplices9,
4. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 8. ed. São Paulo: Civilização Brasileira,
2015.
5. BARBOZA, Heloisa Helena. Proteção dos vulneráveis na Constituição de 1988: uma questão de igualdade. In:
NEVEZ, Thiago Ferreira Cardoso (Coord.). Direito e justiça social. São Paulo: Atlas, 2013, p. 108.
6. CALIXTO, Marcelo Junqueira. O princípio da vulnerabilidade do consumidor. In: MORAES, Maria Celina Bodin
de (Coord.). Princípios do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 324.
7. Para Claudia Lima Marques, essa espécie de vulnerabilidade, denominada jurídica ou científ‌ica, também inclui
a ausência de conhecimentos de economia ou de contabilidade. (MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código
de Defesa do Consumidor. 4. ed. São Paulo: Ed. RT, 2003, p. 148).
8. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
9. TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado; KONDER, Carlos Nelson. Situações jurídicas dúplices: controvérsias nas
nebulosas fronteiras entre patrimonialidade e extrapatrimonialidade. In: TEPEDINO, Gustavo; FACHIN, Luiz
Edson (Coord.). Diálogos sobre direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2012, p. 8, v. III.
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