A vulnerabilidade e seu tratamento nos crimes sexuais

AutorFábio Suardi D'Elia
Páginas95-160
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A VULNERABILIDADE E SEU
TRATAMENTO NOS CRIMES SEXUAIS
4.1. A criminalização das condutas em face de
vítimas vulneráveis
A criminalização das condutas atentatórias em face do
vulnerável exige a discussão acerca do âmbito de proteção do
Direito penal.
Como cediço, em termos clássicos, o raciocínio jurídico
-penal se volta para a vertente negativa,1 ou seja, a da proibição
do excesso, voltada a proteger os cidadãos de eventuais abusos
1 Ao fazer a leitura dos mandados de criminalização implícitos, Feldens
aponta dois aportes dogmáticos relacionados à teoria dos direitos fun-
damentais, sendo um deles a dupla dimensão dos direitos fundamentais,
que comporta a ideia de atuação negativa do Estado: “(...) na dupla di-
mensão dos direitos fundamentais, os quais estariam a exigir não apenas
uma atuação negativa por parte do Estado (no sentido de não invadi-los
de forma desproporcionada), mas, também, uma ação positiva, no sentido
de sua proteção efetiva, como imperativo de tutela (dever de proteção),
concepção essa que encontra gestão no desenvolvimento principiológico
de um modelo de Estado Social e Democrático de Direito”. (FELDENS, Lu-
ciano.  
das normais penais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 98).
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por parte do Estado. O Direito penal, nessa concepção clássica,
-
linquente”, termo este utilizado para expor o caráter negativo
do Direito penal, qual seja, a proibição do excesso.2
Ocorre, todavia, que principalmente com a propagação de
novas formas de criminalidade, que colocam em risco bens
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universalidade que apresentam, reclama-se uma releitura dos
caminhos da intervenção penal, também a partir da concepção
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2    
vítima do delito como uma das causas de expansão do Direito penal, Silva
Sánchez expõe: “Com efeito, nesse plano se está produzindo uma altera-
ção progressiva na concepção do Direito penal subjetivo (): de
uma situação em que se destacava, sobretudo, ‘a espada do Estado contra
o delinquente desvalido’, se passa a uma interpretação do mesmo como ‘
a espada da sociedade contra a delinquência dos poderosos. Isso provoca
uma transformação consequente também no âmbito do Direito penal ob-
jetivo (): em concreto, se tende a perder a visão deste como ins-
trumento de defesa dos cidadãos diante da intervenção coativa do Estado.
E desse modo, a concepção da lei penal como ‘Magna Charta’ da vítima
aparece junto à clássica da ‘Magna Charta’ do delinquente; e isso sem pre-
juízo de que esta última possa ceder prioridade àquela. Uma concepção
da lei penal como ‘Magna Charta’ não somente do deliquente – segundo a
caracterização de Von Liszt –, senão também – me incluso especialmente
– da vítima, desde logo não pode deixar de ter consequências no modo de
conceber o princípio da legalidade. De fato, partindo do conceito clássico,
   
restritiva (normalmente, de base teleológica) e inclusive de uma própria
redução teleológica. Do mesmo modo, é por muitos reconhecido – em
natural correlação com o anteriormente referido –, embora ainda não de
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 -
damento de tal forma de atuar é, naturalmente, a apreciação de que a lei
penal constitui uma garantia para o delinquente de modo que nada obsta
a redução interpretativa do âmbito do punível nem a analogia in bonam
partem”. ( cit., p. 65-66).
Tutela Penal da Dignidade Sexual e Vulnerabilidade
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A vulnerabilidade e seu tratamento nos crimes sexuais
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Parece lugar comum que a intervenção estatal na esfera
penal deve ser mínima e obedecer a uma pauta de direitos
humanos, concretizada em princípios penais constitucionais,
lidos por alguns, inclusive, como princípios limitadores do po-
der punitivo estatal,3 da qual o Brasil se compromete mundial-
mente a seguir.4
       -
gação da proibição de excesso com a proibição de proteção
3 Nesse sentido, nas considerações introdutórias de sua obra, Bittencourt
diz: “Poderíamos chamar de princípios reguladores do controle penal,
princípios constitucionais fundamentais de garantia do cidadão, ou sim-
plesmente de Princípios Fundamentais de Direito penal de um Estado So-
cial e Democrático de Direito. Todos esses princípios são garantias do ci-
dadão perante o poder punitivo estatal e estão amparados pelo novo texto
constitucional de 1988 (art. 5º)”. (BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado
. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 13).
4 Sobre a relevância das questões de direitos fundamentais dentro de nosso
ordenamento jurídico é exposta por Da Ponte, citando Flávia Piovesan, ao
versar sobre os mandados de criminalização, em que discorre que “(...)
assumem a condição de emenda constitucional os tratados e convenções
      
aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três
quintos dos votos dos respectivos membros. Como acentuado por Flávia
Piovesan, ‘a reprodução de disposições de tratados internacionais de di-
   
o legislador nacional buscar orientação e inspiração nesse instrumental,
mas ainda revela a preocupação do legislador em equacionar o direito in-
terno, de modo a ajustá-lo, com harmonia e consonância, às obrigações
internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os tra-
tados de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos
constitucionalmente assegurados, de forma que eventual violação do di-
reito importará em responsabilização não apenas nacional, mas também
internacional’. Com a acolhida do mandado em comento, o Estado brasi-
leiro assume sua vocação democrática no campo interno e junto à Comu-
nidade Internacional, oxigenando especialmente o Direito penal e Proces-
sual Penal e exigindo o constante repensar de um sistema punitivo que
deve ter como valor maior a dignidade da pessoa humana”. (PIOVESAN
 DA PONTE, op. cit., p. 162-163).
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