What family is this? Mosaic of differences, contradictions, discriminations Que familia e esta? Mosaico de diferencas, contradicoes, discriminacoes.

AutorBertelli, Edilane
CargoTexto en portugues - Ensayo

Introducao

Ainda que nao se constituam questoes exclusivas da contemporaneidade, no contexto brasileiro, a partir da decada de 1970, afirmacoes sobre familia e relacoes de genero, no passado e no presente, comecaram a adquirir outros contornos e interpretacoes em pesquisas cientificas de areas das ciencias humanas e sociais. Haja vista que, numa perspectiva de longa duracao, quando se trata do tema familia, observam-se tendencias a sua homogeneizacao e naturalizacao, nao exclusiva do senso comum, pois fora compartilhada e difundida tambem pelo conhecimento cientifico.

Estudos historicos, antropologicos e sociologicos, em particular de feministas, relacionados ao tema familia (e genero) no Brasil revelaram nao apenas a complexidade que o envolve, mas tambem o quanto se trata de tema sujeito a determinismos e generalizacoes, os quais se tornam obstaculos a investigacao cientifica e/ou a intervencao profissional. O carater de familiaridade para aqueles que a estudam e/ou nela intervem traz impregnado o risco de torna-la tao familiar que "narciso acha feio o que nao e espelho" (1). Nesse sentido, demonstram a "face" da familia nao homogenea e linear de que foi revestida historicamente--"formatada" num modelo unico e como regra universal.

O campo profissional do Servico Social, desde sua emergencia na sociedade brasileira em meados da decada de 1930, desenvolveu acoes direcionadas as familias da classe trabalhadora. Destacou-se, porem, ao longo dessa trajetoria, a abordagem de orientacao positivista-funcionalista, a qual atribuia ao individuo e a familia a responsabilidade pelos "sucessos" e "falencias" no cotidiano da vida social sob as hostes do modo de producao e reproducao social capitalista. Tal entendimento foi questionado, em parte, no periodo pos-reconceituacao do Servico Social, sob a perspectiva analitica da teoria social-marxista. Essa perspectiva, a partir da decada de 1980, constituiu as bases da construcao do projeto etico-politico e das diretrizes da formacao profissional, considerando, portanto, os multiplos condicionantes estruturais ao analisar as condicoes objetivas vividas pela classe trabalhadora--individuos e familias que as configura.

Todavia, questoes relacionadas a familia permaneceram obscurecidas nesse debate, adquirindo determinada visibilidade a partir da ultima decada do seculo XX em decorrencia dos direitos sociais assegurados pela Constituicao Federativa da Republica do Brasil de 1988, que representou legalmente o reconhecimento de necessidades sociais como direitos sociais e de novos sujeitos de direitos. Verificou-se o "ressurgimento" da familia como agente de protecao nas politicas sociais--adquirindo, desse modo, centralidade nas regulamentacoes infraconstitucionais relacionadas a esses direitos e as respectivas politicas sociais; entretanto, sem considerar as condicoes concretas condicionadas as determinacoes de classe, genero e etnicoraciais.

Diante desses aspectos, importa trazer a tona determinadas ideias e concepcoes de familia difundidas socialmente. Contrariamente a aparente naturalidade, enfatiza-se neste artigo a familia a partir da sua historicidade, conflitos e contradicoes sociais, remetendo a complexidade e a multiplicidade de fatores envolvidos quando se trata de pensar, conceber e definir familia.

Assim, o proposito dessa reflexao, atraves de revisao da literatura de estudos das ciencias humanas e sociais sob o tema do ponto de vista historico, e problematizar interpretacoes deterministas e generalizantes sobre a familia e a posicao das mulheres na sociedade. Tais interpretacoes as "engessam" e geram obscurecimentos quanto a dinamica da vida social e, nao raro, reiteram e reproduzem estigmas e preconceitos sociais, inclusive no trabalho cotidiano de profissionais das multiplas areas de conhecimento e de intervencao.

A abordagem de familia como "algo" que se define historica e contraditoriamente percorreu neste artigo, inicialmente, reflexoes sobre concepcoes de familia patriarcal na sociedade brasileira e de familia nuclear burguesa no mundo ocidental capitalista, particularizando o contexto brasileiro. Na sequencia, sao contextualizadas mudancas nas dinamicas sociais e demograficas relacionadas as familias, as quais esboroam determinados "tracados" fixos e lineares quando se trata da familia e das relacoes de genero que a constitui.

De "um" passado da "familia brasileira"

Determinismos e generalizacoes, especialmente quando se trata de estudos de familia, nao sao recentes na historia e na historiografia. Uma breve incursao as interpretacoes da formacao social brasileira, em Oliveira Viana (1938), Gilberto Freyre (1933), Antonio Candido de Mello e Souza (1951), por exemplo, permite constatar a importancia economica e politica da familia na organizacao da vida em sociedade (2). A referencia, no entanto, era um determinado modelo de familia--a patriarcal, extensa e rural.

Contrariamente, estudos no ambito das ciencias humanas e sociais, a partir dos anos 1970 e 1980, puseram em xeque essa versao particular de familia, desenvolvida por Gilberto Freyre (1933) sobre dado contexto delimitado, e, ao mesmo tempo, apresentaram outras versoes para a historia da familia no Brasil e, incluso, das mulheres. Esse pensamento social brasileiro, pelo menos ate determinado momento da historia e da historiografia, corrobora a afirmacao de Michelle Perrot (1992, p. 185) sobre o oficio do historiador: "um oficio de homens que escrevem a historia no masculino", uma vez que "os campos que abordam sao os da acao do poder masculinos [...]. Economia, a historia ignora a mulher improdutiva. Social, ela privilegia as classes e negligencia os sexos. Cultural ou 'mental', ela fala do homem em geral, tao assexuado quanto a Humanidade".

A antropologa Mariza Correa (1994), quando analisa a historia das formas de organizacao familiar no Brasil colonial, baseada nas interpretacoes de Gilberto Freyre (1933) e Antonio Candido (1951), questiona a adocao desse modelo tradicionalmente utilizado como parametro em que outras formas sao silenciadas. Poe em questao, por conseguinte, se essa familia patriarcal de fato se constituiu no modo cotidiano de viver da maioria da populacao, ou, antes, tratava-se do modelo ideologico dominante, numa determinada epoca e lugar.

De acordo com essa autora,

ocorre uma homogeneizacao historica: uma situacao bem localizada no tempo e no espaco--a economia acucareira pernambucana dos seculos XVI e XVII ou a plantacao de cafe dos seculos XVIII e XIX--transformase em matriz, em denominador comum da sociedade colonial inteira do seculo XVI ao seculo XIX. (CORREA, 1994, p. 19).

As interpretacoes de familia sao aquelas da classe dominante--senhorial -, as quais exageram na generalizacao desse modelo para um territorio com diferentes culturas produtivas e tipos de mao de obra, alem de marginalizarem e tornarem invisiveis outras formas de organizacao familiar.

Nao se trata de negar a concretude dessa familia patriarcal, nem, tampouco, os seus efeitos no ordenamento economico, politico e cultural da vida em sociedade, mas de atentar para sua inconsistencia como forma exclusiva de organizacao social familiar em solo brasileiro. Concordando com a afirmacao de Correa (1994, p. 27), "apenas nao existiu sozinha, nem comandou do alto da varanda da casa-grande o processo total de formacao da sociedade brasileira". A critica e, portanto, ao uso indiscriminado do conceito de familia patriarcal, pois, "como tem sido utilizado ate agora, achata as diferencas, comprimindo-as ate caberem todas num mesmo molde que e entao utilizado como ponto central de referencia quando se fala de familia no Brasil" (CORREA, 1994, p. 27).

A historiadora Eni de Mesquita Samara (1987) partilha dessa critica a concepcao homogenea e generica de estrutura familiar quando verifica, nas pesquisas historicas de outrora, o encobrimento da complexidade social brasileira e, inclusive, a geracao de confusoes entre conceitos. A familia brasileira tornara-se sinonimo de familia patriarcal, que passou a significar familia extensa. Para completar, familia e parentela adquiriram o mesmo significado. A subsuncao de sua diversidade e verificada a partir de estudos datados do ultimo terco do seculo XX--entre esses, sua propria pesquisa sobre a composicao da familia paulista no inicio do seculo XIX, publicada sob o titulo A familia brasileira, em 1983.

Ao observar essa realidade e compor um quadro da familia paulista, a autora constata que a do tipo "patriarcal" ou "extensa" constituia apenas 26% dos domicilios. Portanto, era pouco representativa e caracteristica de determinado segmento social. Dessa feita, o que dizer em face dos 74% "outros"? A autora ratifica a...

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