No Zigue-Zague da Marginal: o Trabalho do Motociclista Profissional (Motoboy)

AutorJorge Luiz Souto Maior
Ocupação do AutorJuiz do Trabalho, titular da 3ªVara do Trabalho de Jundiaí
Páginas315-328

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“Porque a realidade é terrivelmente superior a toda história, a toda fábula, a toda divindade, a toda surrealidade.”

Antonin Artaud (In: ARTAUD, Antonin. Van Gogh: o suicida da sociedade)

1. Introdução

Este texto tratará sobre um trabalho considerado marginal, mas de muita utilidade para atender à correria do dia a dia em grandes metrópoles como São Paulo. O trabalho do motociclista profissional ou motofretista, mais conhecido por “motoboy”. Faz parte de um conjunto de outros artigos que tratarão de trabalhos considerados “marginais” como o trabalho de prostitutas, ambulantes, apontador, situação de não concursados e até advogados, apresentados como trabalhos de conclusão da disciplina de pós-graduação.

Neste conjunto de artigos, se verificará que há uma construção social imaginária que taxa algumas profissões ou categorias de trabalhadores como marginais, seja pelo desconhecimento de suas características ou pela falta de seu reconhecimento legal. Tais trabalhos passam a sofrer de um estigma social e são vistos como de “categoria inferior” ou são tidos como próprios de quem não “estudou e se especializou” numa profissão com saber/conhecimento técnico-científico instituído como verdadeiro.

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Em palestra proferia no Instituo de Engenharia de São Paulo, Biavati1 diz que a motocicleta foi cada vez mais introduzida e utilizada pela população jovem de periferia para adquirir mobilidade na cidade, como um meio de transporte auxiliar para driblar o trânsito e o serviço falho de transporte coletivo. Mas esta população aprende a pilotar sozinha, nos bairros mais afastados, que geralmente, são mal sinalizados, sem asfalto, sem calçadas, com inúmeros problemas, portanto, sem técnicas de pilotagem, de segurança e sem informações sobre as leis de trânsito. Assim, não se pode desejar que, mesmo a trabalho, um motociclista venha para as regiões centrais e como num passe de mágica respeite todas as regras.

Bem, para falar sobre o trabalho do motociclista profissional, tido como trabalho marginal, mal visto pela sociedade por aparentemente ser um sujeito de comportamento destemido, enlouquecido, que pratica conduta de risco no trânsito, se faz necessário recorrer ao dicionário para compreender os diferentes significados do verbete marginal.

Aqui destacamos os seguintes: “1 — que se encontra ou vive às margens de rios ou de outros cursos d’água — ribeirinho; 2 — Fig. feito à parte ou a propósito de algum assunto; que não aceita os valores predominantes da sociedade ou da maioria; 3 — Econ. de importância secundária; que tem fraco valor quantitativo ou não é essencial num dado sistema; 4 — que ou quem vive à margem da sociedade, desconsiderando a lei e a moral; delinquente; fora da lei, criminoso” (HOUAISS, 2009. p. 1245/46).

Nota-se que marginal pode significar aquele sujeito2que ficou ou foi excluído do sistema legal vigente na sociedade, indivíduo que está à margem, não foi absorvido pelo sistema político-econômico ou encontra dificuldades de inserção social.

Para facilitar a imagem dialética da “inclusão-exclusão” que o sistema capitalista processa para capturar (incluir e sujeitar, por exemplo: superqualificação profissional) e marginalizar (excluir, por exemplo: desqualificação profissional) de seu sistema aquilo que, momentaneamente lhe interessa, o fenômeno da Pororoca parece ser o mais apropriado.

Na Pororoca as águas do oceano invadem o leito do rio e, com sua força, revolvem tudo o que está às margens do rio. Esta imagem parece apropriada se considerarmos que alguns homens se valem da condição de “civilidade” exatamente para excluir outros. Nestas águas revoltas a percepção do outro implica em um incomodo, a tolerância diminui e esconde-se atrás do “sistema” que visa ao lucro e, para que seja alcançado se produz e reproduz formas brutais de violência.

A questão a ser considerada que se refere ao capitalismo implica no que foi revolvido e de certa maneira interessava ser capturado, e o que não lhe servia mais e foi deixado às margens do rio para que se refaça. Esse refazer que o rio terá de dar conta, reabsorvendo para si, para seu leito e margens, aquilo que não mais servirá às águas do oceano pode ser comparado àquele contingente de trabalhadores que a sociedade precisa dar conta de absorver e cuidar.

Com a chamada reestruturação produtiva, que acontece após a crise do petróleo (décadas de 1960/1970) diferentes expressões passaram a ser utilizadas no sentido de incentivar os trabalhadores assalariados a aderir aos planos de demissão voluntária ou à terceirização e criar seu próprio negócio.

Uma dessas ideias foi a do empreendedorismo. Essa ideia convoca o sujeito a acreditar no fato de que ser um profissional com autonomia e liberdade de contratar, de exercer uma atividade

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econômica por conta própria, lhe asseguraria a possibilidade de mudança de classe social. Vislumbrando, assim, uma perspectiva de ascensão e reconhecimento social, deslumbrado pela ideia de sair da condição de empregado e virar patrão, anestesiado pela sensação de liberdade ao fazer o seu trabalho, como dono de seu destino.

No caso do motociclista profissional, se verificará que não aconteceu dessa forma. A aparente autonomia e liberdades de trabalho são um engodo. Há um controle extremado de seus deslocamentos e a motocicleta que lhe serve de ferramenta para a empregabilidade, a produtividade e a rentabilidade pode na verdade levá-lo ao acidente ou à morte em razão da forma como a organização do trabalho empregada pelas empresas submete-o a uma enorme variabilidade de situações e aos constrangimentos de temporais.

Para se ter uma ideia dessas situações a Classificação Internacional de Doenças — CID-10 — possui um capítulo especial para tratar de “Causas externas de morbidade e de mortalidade (V, W, X, Y) estruturado em 9 grupos sendo os acidentes de transporte o primeiro. O Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Vigilância em Saúde, trata do assunto sob o tema Acidentes e Violência (ou Violência e Acidentes) como problemas de Saúde Pública. A preocupação com acidentes de transporte ultrapassa o âmbito nacional, há uma crescente preocupação internacional com as mortes e acidentes no trânsito.

Neste sentido, os Ministérios da Saúde e das Cidades, seguindo a resolução3 da Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU) — elaborada com base em estudos da Organização Mundial de Saúde, sobre mortes e acidentes de trânsito no mundo, que declarou o período de 2011-2020 como a “Década de Ações pela Segurança Viária Prevenção das Lesões e Mortes e Paz no Trânsito” —, lançaram em 11 de maio de 2011 o Pacto Nacional pela Redução dos Acidentes no Trânsito — Pacto pela Vida4.

O Ministério da Saúde, com base em dados sobre internações de vítimas de acidentes de trânsito (SUS) divulgou um custo aproximado de 187 milhões com este tipo de acidentes e que os homens representam a população mais atingida (78,3%) enquanto que mulheres representam (21,7%). A região Sudeste concentra 44% do total de internações e as maiores taxas ocorreram aos motociclistas (36,4 por 100mil), no ano de 2010. Talvez se possa supor que a maior incidência em motociclistas esteja associada ao fato de as motos serem utilizadas como meio de transporte, mas também de trabalho5.

No Estado de São Paulo o número de óbitos por residência/ano e acidente de trabalho (segundo CID10: mortalidade anual em acidente de transporte) no ano de 2010, foi de 43, de um universo de 1680 acidentes. Deve-se considerar que no momento do atendimento de urgência os dados sobre acidentes do trabalho não são preenchidos, havendo uma sub-notificação de informações6.

Está dividido em três partes: a primeira teve por finalidade de fazer um relato histórico sobre a evolução do capitalismo, ainda que muito resumido, na tentativa de tornar mais clara a origem de nossa pressa social. A segunda buscou demonstrar como é o trabalho dos motociclistas profissionais ou “motoboys”. Por fim, faz-se a conclusão.

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2. Métodos/metodologias de análise que se aproximam pelo aspecto social
2.1. Breve histórico sobre o desenrolar do sistema capitalista

Este item tem por objetivo realizar uma breve ilustração histórica sobre o desenvolvimento do sistema capitalista de produção e as relações de poder que foram se criando/estabelecendo, bem como, compreender a relação ou interferência de fenômenos financeiro-econômicos no mundo do trabalho.

Uma ressalva se faz necessária, a história se passa por acontecimentos concomitantes. Os eventos não ocorrem ordenadamente em linha reta e, tampouco rapidamente como são descritos. O modo sistematizado e organizado de narrar acontecimentos — que se entrelaçam quase como em uma espécie de rede — visa apenas permitir a recapitulação de fatos históricos marcantes para atingir nosso objetivo.

O capitalismo teria começado a se desenvolver a partir do século XI, passando por um longo período de transição entre o feudalismo e o próprio capitalismo. Seguido de intensas lutas, tensões, disputas de todos os tipos. Talvez, uma das principais tensões tenha sido a da divisão do trabalho marcada de modo distinto em cada época, por exemplo: na Antiguidade pela escravidão e no Feudalismo pela servidão. Esse período de transição, aos poucos vai se configurando numa nova forma de organização social e, um de seus ajustes foi o modo de organização do trabalho livre, como no caso das corporações de ofício e das guildas (SOUTO MAIOR, 2011, p. 67/106).

Uma das políticas que impulsionou o sistema capitalista foi a dos “cercamentos” que grosso modo era a formação de grandes latifúndios, desconstituindo os pequenos proprietários. Com...

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